DeH; Rubi escrita por P B Souza


Capítulo 1
Rubi




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A casa vibrava com o vento. O teto feito com folhas secas trançadas não deixava vento ou chuva entrar. As paredes eram ripas de madeiras, grossas e talhadas em machadinhas de pedra lascada, com folhas grandes de buomas, uma árvore gigantesca que tinha folhas tão grossas que os Antaki usavam tanto como parede para suas casas, tanto como cobertores para os dias frios.

Lá fora a noite avançava depressa com as estrelas assistindo a cada um deles, mas ali dentro havia apenas um par de olhos, olhos grandes e inchados, vermelhos, chorosos.

Em cima de uma mesa feita com madeira de buoma estava o corpo da mais bela menina que já havia sido tocada pelo sol e pelo luar. Os olhos fechados e o peito imóvel, a pele já fria, sua mãe chorava ainda sem entender como.

Chorou ao lado do corpo de Rubi por toda a noite até o alvor, e ainda no alvor, chorava. Foi quando o sol já entrava pela abertura da casa que Esza notou que, além do sol, uma sombra era jogada contra o chão de terra batida. Olhou para trás, era o chefe da tribo.

— Venha ter sua justiça. — Ele disse para Esza, que esfregou os olhos.

— Como?

— Venha!

Virou-se e deixou a casa de Esza.

A mulher olhou para a filha novamente, para os cabelos vermelhos e os olhos delicados, os lábios finos e as bochechas antes coradas, o nariz pequenino e as sobrancelhas tão finas. Era a mais bela menina de todas as tribos ao longo de todo o rio. Cobiçada por todos os guerreiros, Rubi tinha apenas doze ciclos e sempre fora muito prendada em todos seus afazeres, sabia colher plantas de cura entre as mais variadas, sabia tingir roupas, havia aprendido costurar fazia pouco tempo e estava começando a treinar os feitiços simples. Mas tudo aquilo havia findado depressa.

Há três dias Esza chegara em casa depois de colher ameixas o dia todo e encontrara Rubi, ensanguentada e suja com a sujeira do prazer dos homens, a menina chorava copiosamente, tinha marcas roxas nos braços e no rosto e dois dentes quebrados, em sinal de resistência a violência sofrida, um tudo de cabelo havia sido arrancado de sua cabeça na parte de trás, deixando a pele na carne viva e um dedo da mão tinha sido quebrado, tal como ambos os joelhos estavam ralados bem mais do que uma criança costuma se ralar.

O culpado desaparecera, obviamente, mas não fora disto que Rubi morrera. Nos primeiros dois dias ainda estava viva, se recuperando isolada de todos, envergonhada demais. E Esza buscava justiça pela filha, o chefe da tribo prometera justiça. E assim o fez, encontraram o nome do culpado, mas o homem sumira. Woti, um guerreiro muito conhecido na tribo, era o acusado, visto por muitos indo até a casa de Esza quando ela não estava, saindo de lá sujo de sangue depois de quase duas horas sozinho com Rubi. Woti era descompromissado, cobiçava Rubi desde os nove anos, pois desde tenra idade a menina mostrava traços de beleza jamais vista nem nas mais formosas donzelas.

Mesmo assim, Esza nunca permitiu que Woti se aproximasse de Rubi, e ele o fez de qualquer forma. Mas não foi disso que ela morreu.

Esza pensou parando na frente de uma multidão, quase quarenta pessoas da tribo formavam um semicírculo, no meio estava uma mulher de joelhos, seus braços até os cotovelos eram vermelhos de sangue seco e ela olhava para Esza com uma expressão de lamento.

— Woti violou-a, mas foi Penna quem a matou! — O chefe da tribo disse, puxando de sua cintura, entre sua vestimenta longa e a corda que usava amarrada na cintura, a adaga de lâmina feita em pedra amolada com os feitiços que apenas os mais hábeis haviam aprendido entre os Antaki.

— Não desejava lhe ferir, foi sua cria quem roubou Woti de mim, e por isso ela teve de pagar.

Esza não se importou com aquilo, as palavras da bruxa Penna eram vazias agora.

— Penna, executou o guerreiro Woti em ritual de sangue para alimentar sua magia, e com tal magia ceifou a vida de uma garota inocente...

— Não! — Penna retorquiu interrompendo o chefe da tribo. — Ela vive. Para sempre!

— Esza. — O chefe da tribo entregou a faca para a mulher. — A justiça é sua para ser feita.

A mulher pegou a faca pelo cabo, gelado e rustico, olhou a lâmina em pedra e olhou para a bruxa. Imaginava como Penna poderia ter tido a coragem, como uma mulher poderia condenar outra a morte, uma criança além de tudo, inocente e violada, por ciúmes de um homem que nunca a quis. Olhava para Penna e sentia asco, sentia fúria, sentia a vingança tangível.

Então se aproximou da bruxa, os que ali estavam fecharam os olhos, como dizia a tradição. Uma execução não era algo belo, não devia ser assistido ou aplaudido ou desejado. Mas a justiça jamais poderia ser ignorada. Penna deveria morrer, pois apenas assim Rubi teria sido justiçada.

Então Esza fechou os olhos, colocou a mão no ombro de Penna, e encostou a ponta da lâmina no coração da bruxa.

— Quando terminar olhe para trás — A bruxa começou a falar. — Veja o que causou, você odiará a si mesmo por este momento, pois apenas eu poderei...

Então Esza pressionou a adaga, o sangue escorreu pelo peito de Penna, o corpo caiu para trás, imóvel. Não havia dor naquela morte, os feitiços eram gravados fundo na pedra para trazer o fim, não dor.

Esza olhou para o chefe da tribo, agradeceu para ele, com um aceno, e devolveu a adaga suja até sua metade com o sangue da mulher que usara de magia para se vingar em cima de uma criatura inocente. Minha pobre Rubi.

E ainda naquele dia, após o entardecer, Esza viajou até uma colina aonde Rubi adorava ir para assistir o pôr do sol. Lá, com ajuda de alguns guerreiros, cavou a sepultura para sua prole, e o corpo foi depositado com todos os cuidados, depois coberto com a terra, e a terra foi lavada com mais lágrimas.

Esza sentou-se ao lado do tumulo e ficou ali, até que da própria terra brotasse, em questão de horas, uma pedra transparente, avermelhada, bruta e rija. Então se levantou, olhou para trás, para os lados, para a frente. Centenas de rubis nasciam do chão, brotavam como se por magica.

E Esza pensou ser um milagre, e com isto teve paz.

Retornou para sua casa, e lá viveu seus dias, acreditando no milagre que fazia brotar rubis em homenagem a sua pura filha como sinal de algo bom. Mas todos aqueles que tentavam, movidos por ganancia e cobiça instilada pela beleza das gemas, pegar mesmo que a menor das rubis, eram eternamente infelizes e fracassavam em tudo que faziam.

Penna morrera, encontrando descanso. Mas Rubi... Jamais descansou! enterrada viva em um sono eterno, fadada a brotar de seu corpo as gemas que alimentariam a ganancia dos homens por milhares de ciclos por vir, tornou-se o espírito eterno que protege os limites do Reino de Garfh, e sua história, tal como o paradeiro de seu corpo, se perdeu na Segunda Era.

Rubi foi esquecida na Terceira Era, deixada para sofrer no anonimato de sua dor enquanto assistia, até o fim dos dias, os homens lhe tocar para de ti tirar proveito. Sua história se tornou um conto no qual ninguém acreditava mais na Quarta Era.

E o campo repleto da mais cobiçada joia se tornou tão amaldiçoado quanto a própria rubi, que chora lágrimas de pedras em seu tumulo perdido, a espera da justiça, a que lhe foi prometida, mas nunca entregue.


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