Sombras no tempo; Os mortos-vivos escrita por P B Souza


Capítulo 1
Mortos-Vivos na Paulista




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Abriu os olhos no banco do carro e sentiu a respiração lhe faltar.

João se virou para a porta, abriu-a e se pendurou para fora do carro vomitando o almoço inteiro. Na sua visão o mundo balançava. Ele tremia e sentia frio, tanto frio.

Do lado de fora do carro, na Av. Paulista, o sol fazia o asfalto ferver e as pessoas amontoadas suarem em bicas.

— Você tá bem? — Ouviu a voz de Evaristo, no banco do carona. Evaristo não sabia de nada, apenas viu João desmaiar em um segundo, acordar no outro, vomitar no segundo seguinte.

— To. — João limpou as lágrimas, fungou sentindo o gosto ácido do vomito pela garganta e o caminho nasal todo. — Só passei... acho que a pressão caiu.

Evaristo sequer desconfiava do que havia acontecido, mas João... João sabia até demais.

.....

Trezentos e oitenta e dois metros à frente havia um perímetro de isolamento. Os mais sortudos corriam dali enquanto podiam, mas como esperado do ser humano, a grande maioria se aglomerava ao redor do cordão de isolamento, curiosos, ávidos por qualquer visão de qualquer coisa incrível.

Para os que procuravam algo incrível, estavam no lugar certo!

Centenas de pessoas observavam atentas ao redor da entrada do prédio da farmacêutica OBLT, fundada há décadas por Gregory Obyl, um refugiado da II guerra mundial. O que observavam, nem elas sabiam, mas observavam mesmo assim. O cordão de isolamento principal era com viaturas da polícia militar, a primeira a chegar ali. Mas já era possível ver agentes da polícia federal e outros com coletes escrito “COAB” nos ombros e nas costas. Além de cavaletes e fita de “não ultrapasse” por todos os lados.

O transito havia parado dos dois lados, todos os carros estavam imóveis e seus proprietários, em sua maioria, tinham descidos para ou reclamar ou observar melhor. Havia até mesmo alguns em cima do capô ou do teto dos carros. Buzinas, gritos por informação e o som dos helicópteros eram mesclados em uma cacofonia perturbadora juntos das sirenes e das ordens desobedecidas dadas pelos oficiais.

A PF sequer se incomodava, enquanto a PM prendia, batia com seus cassetetes, e ameaçava todos que tentavam quebrar o limite. No centro de tudo isto, os agentes da COAB estavam ao redor do capô de uma das viaturas observando um mapa e conversando uns com os outros como se o mundo ao redor sequer existisse.

Quando finalmente chegaram a uma conclusão, o exército já havia sido acionado.

— Todas essas pessoas precisam sair daqui imediatamente. — Um deles disse, segurando o rádio na mão. — Evacuem a área toda em um raio de setecentos metros...

— Você está louco? — Gritou acima da cacofonia um dos federais.

— Você tem noção do que está acontecendo lá dentro? — O agente da COAB identificado como Caio Quantim perguntou. — Eu dei uma ordem.

— Não estou questionando sua ordem, senhor, mas sim a nossa capacidade de cumprir ela. São milhares de pessoas, centenas de prédios...

Quantim olhou ao redor, frustrado. Seu crachá lhe deva autorização tão elevada quanto possível, trabalhava para o governo, um grupo ainda mais poderoso que a própria ABIN. O Comando de Operações e Apoio Bélico deveria supervisionar, conter, e eliminar qualquer ameaça a segurança pública, mas aquilo era fora de escala. Eles estavam sem tempo. Pessoal tinham, poderiam mover milhares de soldados e conter qualquer um dos terroristas da Jahan-ko. Mas o tempo...

Então ouviram disparos no térreo.

As pessoas ao redor se abaixaram, berraram, histeria completa.

Quantim fechou os olhos. Estava começando, e eles estavam despreparados.

Poderia ter se preocupado em perder seu trabalho, mas duvidava muito que qualquer um deles sobrevivesse até o fim da tarde.

.....

As paredes nos corredores estavam repletas de respingos do sangue das vítimas.

Inocentes em conluio com o inimigo. Pensava Hans enquanto montava guarda na porta do laboratório no subterrâneo. O prédio da OBLT era uma fortificação fantasiada de escritórios. Existiam laboratórios ali criando e pesquisando coisas que nem mesmo eram da terra. Para Hans, isto era só mais um sinal dos estragos que gente como Gregory Obyl podia fazer no mundo.

Seu povo sofrera o bastante nas mãos de gente como Obyl desde a guerra fria, alguns chamavam vingança, mas Hans sabia que sua causa era nobre! A Jahan-ko não quer fazer mal a ninguém.

Hans entendia, porém, que às vezes um pouco de maldade era necessário para um bem maior.

Então saíram de dentro do laboratório Savoisk, Ian e Sergey. Ian era o único com Três ampolas nas mãos, e passou uma para Hans.

— Se deixar cair, todos morremos! — Ele disse para Hans, que fez que sim, passando sua submetralhadora para as costas, pegando a ampola e na mão livre armou-se com o revolver.

— Vamos explodir tudo! — Hans sorriu com a ideia de destruir o legado de Obyl.

— Não! — Savoisk interveio.

Falavam em um forte e característico alemão enquanto subiam as escadas,

— Eles lucram com a doença. Criaram a próprio morte! — Hans argumentou. — Viemos...

— Levar a bactéria. — Savoisk completou se virando de frente para Hans.

Um encarou o outro.

Hans era novo e cheio de energia, de Minsk, mas havia conhecido a Jahan-ko quando se mudou a trabalho para a Alemanha. Não demorou para que seu já existente ódio por determinados grupos florescesse ali, vendo o neonazismo e o extremismo crescer, odiava também alguns governos e principalmente hipócritas que desejavam apenas poder e dinheiro, tal como o judeu Obyl, e encontrou abrigo para suas frustrações entre irmãos que lhe entendiam. e defendiam o lado certo da história. Hans abraçou a causa sem questionar nada. Sentiu pela primeira vez como se pertencesse há algo. E esse sentimento lhe trouxe... algo que nada nunca conseguiu. Era como ser completo!

Savoisk era mais velho, vivera uma década toda infiltrado nas forças da Rússia, conhecia os planos do inimigo e sabia o que eles fariam. Entendia de política e era esperto demais para estar ali, mas a missão precisava ser executada com alguém esperto o bastante. Savoisk passara quatro meses com os outros da equipe, todos eles só conheciam aquele seu rosto, mas por baixo da falsa pele aplicada cuidadosamente sob seu rosto, existia sua verdadeira feição. A máscara era tão parte da missão quanto todo o resto. Tanto quanto era destruir o prédio, e ele estava ali justamente por isto; às vezes é necessário cérebro e não fanáticos como Hans.

— Se destruirmos o prédio centenas de vírus serão liberados. — Savoisk explicou depressa. — A bactéria é nosso alvo principal. Devemos destruí-la na oportunidade correta, em casa. Mas destruir o prédio feriria o orgulho deles, mas mataria milhões em consequência. Não falhem!

Então voltou a andar.

Quando chegaram no salão o diretor da OBLT estava ainda rendido, de joelhos, algemado.

— Espero que eles não atirem, doutor, ou será seu fim! — Savoisk disse em português.

Existiam mais de duzentos reféns, o saguão estava repleto de pessoas ajoelhadas. No teto as claraboias deixavam a luz entrar e eles podiam ver os helicópteros, de emissoras e da polícia. Era um saguão de disparo, estavam todos vulneráveis ali.

— Pedi encarecidamente para que não atirem. — O diretor — Mas escute-me, a bactéria precisa ser mantida resfriada... o calor ajudará em sua proliferação, caso as ampolas sejam trincadas, será impossível...

Uma coronhada com o rifle.

O diretor caiu no chão, a testa com um rasgo, sangue escorrendo.

Savoisk grunhiu para ele.

— Eu sei o que estou segurando, doutor. Se não queria riscos, não deveria ter criado uma arma.

— É uma cura, precisa ser revertida...

— Hitler também estava curando. — Sergey bradou. — Mas matar e curar são coisas diferentes!

— Vocês estão matando.

— Por necessidade. — Savoisk replicou.

Então Hans apontou para cima.

— Sniper! — Gritou.

Tarde demais.

Todos os associados da Jahan-ko se jogaram para os lados. Dezenas de cabeças surgiram por toda a claraboia. O prédio da OBLT só possuía aquela entrada, aparte pelo estacionamento, mas não havia nenhum veículo neste que fosse bom para fuga.

Os disparos acertaram o chão e alguns dos reféns.

Os soldados da Jahan-ko se viraram, submetralhadoras nas mãos. Disparos.

Savoisk percebeu que era aquela a hora. Tocaram os reféns como um boiadeiro com sua boiada.

Centenas de pessoas se levantaram, despencando, correndo para a saída, desespero total.

Savoisk era uma delas, enfiou a mão para dentro de seu colete, agarrando a prótese colada a sua pele e puxou-a, a pele falsa subiu enquanto ele se jogava no chão como se fosse um dos reféns, soltando o colete, tinha segundos para fazer toda a encenação.

Nem Hans, nem Sergey, nem Ian, nem ninguém sabia. Iludidos com ideais falsos, uma bactéria cruel, mas necessária. Armas como estas não podem pertencer ao inimigo.

Savoisk ouvia o tiroteio, as claraboias resumidas a cacos, o vidro despencando do teto junto dos atiradores da polícia federal e da COAB. E ele estava de rosto novo, uma camiseta comum e um jaleco amarrotado escrito “OBLT” na borda, sequer parecia com o dos outros funcionários, mas quem notaria na correria?

Savoisk já era outro homem quando atravessou a porta. Lançou um último olhar para trás.

Dentro do prédio Hans era baleado, sua mão com a ampola se abriu. Savoisk prendeu a respiração ao ver o fraco girar no ar enquanto Hans caia junto deste.

O diretor levava as mãos à cabeça. Policiais gritavam para que eles parassem.

.....

— Contenham, não deixem sair! — Quantim gritava no rádio. — Permissão para abrir fogo. Detenham todos!

A ação levou menos de um minuto. Dezenas de corpos caíram na porta do prédio. Os degraus da entrada estavam pintados de vermelho.

— Agente. — O policial federal passou um telefone para Quantim então. — É o diretor da OBLT.

— Diretor eu sinto muito pela ação... — Então antes que Quantim pudesse falar qualquer outra coisa, o diretor disse apenas duas palavras “eles conseguiram”.

Quantim desligou sem sequer responder. Pode ver seus homens subindo as escadas, pode ver o diretor lá dentro do saguão iluminado, resplandecente em vermelho sangue, em pé, solitário no meio de defuntos. Quantos terroristas haviam fugido? Quantos haviam sido derrubados?

Ele pediria que impedissem o diretor de fazer o que faria, mas por que?

O diretor da OBLT pegava um revolver no chão enquanto os próprios dedos começavam a desmanchar-se em sangue e bolhas de forma grotesca. Colocou contra sua própria cabeça, em pé, solitário no saguão, observando Quantim de longe como se culpasse ele por aquilo. Ele pediu para não atirarmos.

Então tudo aconteceu muito depressa e na cabeça de Quantim apenas uma frase surgiu;

“A bactéria que a Rússia pediu para ser criada se desenvolve em tempo recorde. Se liberada é impossível ser detida, evoluirá como jamais se viu antes e porá fim em tudo que é conhecido. Um exército por maior que seja será tão inútil quanto uma bomba nuclear. Se falhar, o mundo está acabado, pois a cura não está sequer próxima de ser sintetizada”.

Todos os corpos, sem exceção, se levantaram. Todos os mortos já não estavam mortos, e então o último disparo.

A cabeça do diretor da OBLT se abriu pela têmpora direita, mas seu corpo sequer caiu, o crânio, o cérebro, tudo se refez com a mutação acelerada, a bactéria agindo.

Os mortos-vivos ainda desorientados, mas o diretor era diferente... ele estava em contato direto com a bactéria e Quantim viu o homem atirar contra a própria cabeça, cambalear de um lado para o outro enquanto seus braços se rasgavam, os músculos inchavam, a cabeça se reconstruía com três ou quatro olhos e todos aqueles mortos de pé... todos eles vinham contra os vivos.

Fechou os olhos. Pensou em sua filha... havia falhado com todos, mas principalmente com ela!

Poderia ter se matado tal como fizera o diretor. Ouviu todos os policiais e agentes disparando contra todas as criaturas, revolveres, escopetas, metralhadoras, rifles de precisão... mas ele sequer moveu sua mão ao coldre. Falhara, e merecia aquele fim inevitável.

A primeira mordida doeu. Caiu no chão, olhos fechados, a segunda mordida pareceu lhe arrancar um pedaço, e então foram tantas mais.

Perdeu as contas quando perdeu o controle. Ainda estava vivo, sentia-se vivo, mas não podia se controlar, se deteriorava em si mesmo, se fragmentava internamente, e os olhos se abriram, mas era como enxergar pelos olhos de outrem. As criaturas escalavam os prédios, atacavam umas às outras, se digladiavam com protuberâncias de massa vermelha sanguinolenta, e então separavam-se de forma ainda mais grotesca, com garras, chifres, asas, pelos, antenas, rabos... e ele não era diferente.

Ele não era ele. Habitava dentro, mas não controlava. Um espectador da própria desgraça.

Caio Quantim então sentiu inveja do diretor da OBLT. Se pudesse, teria se matado.

Mas agora era tarde. Para si mesmo, para todos aqueles miseráveis. Para o mundo todo.


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