Como não esquecer essa garota escrita por mstonks


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/741327/chapter/1

Estação de King’s Cross, Londres. Primeiro dia do mês de setembro, 1993.

 

Após tantos anos e incontáveis empregos frustrados, pode-se dizer que possuo certa familiaridade com o primeiro dia em um novo emprego.

Foram incontáveis as vezes em que me vi obrigado a começar do zero, sempre em lugares e povoados extremos onde ninguém soubesse a respeito da maldição que flui em minhas veias. Há muito eu já me adaptara a tirar meu sustento de empregos descartáveis, como eu mesmo os apelidei. Acostumei-me a passar horas atrás de balcões de mercearias, cuidando de estoques em armazéns ou orientando pessoas em bibliotecas; sempre ocupações fáceis, que requerem contato diário com dezenas de pessoas. A complicação não tardava a chegar –  às vezes bastava uma lua cheia e eu já estava no olho da rua. Nem sempre porque descobriam minha condição, na verdade o motivo mais recorrente era ninguém querer empregar um funcionário que vez ou outra aparece para trabalhar em farrapos e com hematomas pelo corpo, como se andasse brigando na rua. Eu nunca durei mais de 4 meses em uma cidade.

Levando esse tipo de vida por tantos anos, nunca sequer me ocorreu a possibilidade de algo grande como lecionar em Hogwarts. No entanto, uma semana após uma coruja pousar em minha janela com uma correspondência de aspecto oficial, lá estava eu a caminho da estação de King’s Cross. Agora, como um professor. Professor Lupin. Soava tão estranho ter meu próprio nome ao lado do título “professor” que eu sequer conseguia ler tais dizeres em voz alta.

Contudo, é preciso que primeiro eu esclareça que o meu real posto naquele castelo não seria efetivamente lecionar, mas vigiar Harry Potter e zelar pela sua proteção. O arranjo foi que eu viajasse no Expresso de Hogwarts, o que não é usual para um professor, mas certamente Dumbledore havia previsto que eu teria dificuldades financeiras em me locomover por conta própria até a Escócia. Cheguei à estação muito antes das onze horas naquela primeira manhã de setembro, com o intento de evitar a bagunça dos numerosos alunos que passariam por lá, eufóricos, prestes a iniciar o ano letivo.

Acomodei-me em um banco ao canto dos corredores, de onde era possível observar quase toda a estação de ponta a ponta. Uma vidraça de cabine logo  à frente me ofereceu uma visão privilegiada do meu próprio estado – olheiras e palidez, cortesia da última lua cheia, há meros dois dias. Eu não conseguiria descrever o tamanho da minha exaustão e como parecia que todos os ossos do meu corpo doíam.

Com o passar da manhã o movimento se acentuou. Era bom ter algo a mais para observar além do homem que vendia flores cujo perfume ele jurava que duraria seis meses – pensei comigo mesmo que o autor de um feitiço tão bom poderia curar licantropia com as mãos amarradas. Olhei as horas, nove e meia. Uma família discutia sobre estarem andando na direção errada há uma hora, e eu até teria prestado mais atenção para descobrir como eles puderam se perder em uma estação cheia de placas de orientação, mas eles não eram importantes no momento. Eu estava prestando atenção nela.

Não era a primeira vez que eu a avistava naquele dia. Entre olhadas superficiais, à primeira vista a jovem de cabelo rosa não me pareceu alguém interessante o suficiente a ponto de ser observada duas vezes. Mas eu a olhei, mais de duas vezes. Não me entenda mal, havia algo muito errado – na verdade, era o que não havia. Na terceira vez, ela não tinha mais cabelo rosa. Estaria eu ficando louco e ela sempre fora ruiva?

Afinal, por que eu estava me importando com aquilo?

Boa pergunta. E mais, por que a ruiva agora parecia tão impaciente? Checava todas as direções a cada cinco segundos, talvez esperando algum retardatário aparecer; o semblante irritado que distingui era o oposto da jovem casual e distraída de minutos atrás, mas eu certamente não estava enganado, era a mesma garota.

Quando a busca guiou seu olhar em minha direção, instantaneamente desviei os olhos. Eu tentava parecer casual ao constatar que estivera de olhos cravados em uma jovem de vinte e poucos anos por mais tempo que o bom e velho respeito permitiria, e ela havia percebido.

Mas que diabos, Remus?

A discussão daquela família perdida que fazia o mesmo caminho pela enésima vez se tornou um alvo de observação infinitamente mais interessante, enquanto eu tentava mostrar naturalidade no ato de olhar para qualquer lado, menos na direção da moça de cabelo... rosa?

Certo, agora com certeza eu não estava louco. Claramente seria uma missão impossível não olhar para ela. Posso declarar que não só era a mesma garota, como também seu cabelo estava de volta ao rosa chiclete. E antes estava ruivo. Eu estava a ponto de ir ao banheiro jogar água no rosto quando uma luz súbita iluminou minha dúvida, e eu quis acertar meu próprio queixo por ser tão estúpido. Mas é claro!

Como não havia desconfiado antes?

Metamorfomagia é um dom muito raro, comparado por muitos a um trevo de quatro folhas. Só se vê um metamorfomago uma vez na vida, e eu já havia visto uma há muitos anos, ainda um bebê, na família de Sirius. A maioria dos bruxos só ouve histórias sobre algum parente há dez gerações de distância que possuía tal habilidade congênita, mas encontrar um desses manifestando sua magia em plena estação de trem no meio de Londres era algo incomum, para dizer o mínimo.

Depois de confirmada a peculiaridade da jovem, se tornou impossível não notar o quanto ela parecia singular naquele ambiente. A moça não dava a mínima importância às pessoas que transitavam ao seu redor, por vezes olhando torto na direção de seu cabelo chamativo ou de suas muitas pulseiras bizarras ou de seu colar estranhamente grande. Claro, sem mencionar a maquiagem nos olhos, um pouco pesada demais para aquela hora da manhã. Em contraste a tudo isso, suas roupas eram bem neutras, talvez um uniforme. Aquelas vestes cinza-claro eu reconhecia de algum lugar. Usei isso como um pretexto para prestar mais atenção nela, uma justificativa para mim mesmo e para minha consciência arredia, que já se punha na defensiva e me condenava por observar a moça com tanto interesse. Então, quando ela me olhou pela segunda vez, eu não desviei o rosto. Mesmo que ela pudesse pensar que eu era um pervertido.

Quando a moça sorriu para mim após alguns segundos, senti meu próprio corpo retornando o gesto e precisei admitir, com o perdão da audácia, como ela era linda.

Aquele contato visual durou, contínuo e capcioso, até que uma mão em seu ombro capturou sua atenção. Era um rapaz, não muito mais velho que ela, trajava as mesmas vestes. Talvez fosse um colega de trabalho, ou um amigo, ou quem sabe seu namorado. Era duvidosa a relação dos dois, pois se por um lado ela parecia casual e despreocupada, por outro ele parecia estar com os nervos à flor da pele. Um primeiro encontro, talvez? Estaria eu prestes a testemunhar uma declaração pública? Foi quando me perguntei como ainda não havia reparado no presente que ele escondia às costas.

Sorri breve e involuntariamente quando vi a moça sorrir, exultante, ao abrir o presente e erguer a camiseta preta a uma altura exagerada, onde qualquer um poderia ler “The Weird Sisters” escrito em roxo reluzente. Se a intenção do rapaz fora impressioná-la, é preciso admitir que ele acertou em cheio. A satisfação dela pareceu tranquilizá-lo quando ela pulou em seu pescoço, dando-lhe um abraço apertado e um tanto desajeitado em agradecimento.

Observando a expressão do rapaz, claramente apaixonado pela garota em seus braços, me perguntei brevemente se algum dia seria possível alguém como eu ser digno de ter alguém dessa forma. Ter também um bom emprego, criar raízes em algum lugar, poder fazer alguém feliz assim como um dia, em meus tempos de adolescente, idealizei fazê-lo com Meadowes.

Dorcas Meadowes... Céus, como aquela jovem diante dos meus olhos me lembrava Dorcas. Talvez a forma com ela exalava liberdade, os trejeitos despreocupados de quem tem o espírito jovem e sempre será assim, independente de quanto tempo passe. Cheia de cores, cheia de vida.

Por alguns segundos, a idéia de existir uma realidade em que eu não vivesse sentindo pena de mim mesmo pareceu quase palpável diante dos meus olhos. Então, em meio ao abraço apertado, algo se desprendeu das vestes da jovem e caiu no piso da estação. O objeto ricocheteou em um banco e parou a pouca distância de mim. Não foi difícil reconhecer a origem do pequeno emblema, tampouco os escritos brilhantes gravados nele.

Quando o rapaz veio e o apanhou do chão, observei que ele possuía outro idêntico, parcialmente visível pela abertura do casaco. Ambos os seus distintivos dourados do Ministério da Magia exibiam o brasão de um departamento específico, e eu não soube definir de onde exatamente veio a frustração que substituiu a esperança de que eu desfrutava há pouco mais de um minuto. Talvez a tonelada que pressionou meu estômago fosse meramente o peso da verdade. Eu nunca seria digno de uma mulher tal como aquela.

Aurores são treinados para caçar e exterminar lobisomens, e não para flertar com um deles na estação de trem.

Até hoje me pergunto se, quando eles se retiraram de mãos dadas em direção à saída, de fato ocorreu a ela que eu ainda existia, parado do outro lado da estação. Pergunto-me se ela de fato se virou em minha direção e acenou brevemente em despedida – ou se eu apenas imaginei isso também. Tudo aconteceu no exato momento em que o relógio da estação bateu dez horas e o tempo do susto foi o suficiente para que ela desaparecesse sem que eu pudesse retornar o gesto. Uma quantidade considerável de alunos já havia chegado e o emaranhado humano bloqueava a visão da saída.

Achei melhor ir logo à Plataforma 9 ¾. Eu não tinha mais o que fazer ali. Porém, o rosto dela permaneceu comigo desde então. Até os dias de hoje, quando me perco em devaneios, ainda consigo enxergar seu sorriso. Inocente, tranquilo, cativante. Como quem só espera da vida o que puder levar consigo dentro da alma.

Sim, eu nunca a esqueci, mas acho importante deixar claro que eu não estou e nem nunca estive apaixonado por aquela moça, e com certeza eu evitaria tal coisa com todo o meu bom senso. Desde que notei sua semelhança nata à Dorcas, venho tomando isso como um lembrete constante da impossibilidade de, um dia, poder me relacionar com alguém como ela. Ou com ela, não faz diferença. Quem sabe o que o destino me reservaria se eu não fosse o que sou? Quem sabe como seria o meu futuro ao lado de alguém, se ele não houvesse sido tirado de mim tão cedo?

Eu estava por perto quando Dorcas deu seu último suspiro, e foi bom eu estar distante quando aquela moça desapareceu pela saída da estação, de mãos dadas com alguém que eu desejo, de coração sincero, que a faça feliz.

Uma lembrança, enquanto lembrança, traça um limite tal qual não se submete à vontade humana de atravessá-lo ou não. Eu sei que as chances de que ela volte a cruzar o meu caminho são quase nulas. Enquanto for assim, tudo estará bem, pois ao contrário de Dorcas, sei que ela está viva por aí, e não apenas nas memórias de todos que


— Remus! Estou falando com você, homem!

Era Sirius dando tapas na escrivaninha, impaciente.

— Você quase me fez derrubar o tinteiro! Mas que diabos aconteceu?!

— Aconteceu você, escrevendo nesse negócio o dia inteiro — apontou Sirius, entediado, para o livro à minha frente — Você me lembra uma daquelas garotas do segundo ano, que ficavam até a madrugada lá na sala comunal escrevendo baboseira em seus diários.

— Isso não é um diário e também não são baboseiras. Faz muito bem para a mente express-

— Blá, blá, blá. Já entendi o quanto você é culto e não estou com vontade de ouvir a sua ladainha hoje. Um dia, talvez, eu sigo o seu conselho e escrevo minhas memórias. Imagine só, um best seller sobre como foi grandiosa a maldição da morte que o ex-traidor Sirius Black lançou bem nas partes baixas de Peter Pettigrew. Será campeão de vendas, “Por Trás das Grades do Bonitão, Sirius Black” – anunciou, com uma atuação exagerada de algo parecido com Gilderoy Lockhart posando para uma câmera dentro de uma piscina de galeões.

— A moça novata não deveria ter chegado às seis? – mudei de assunto, conferindo o relógio – Espero que pontualidade não seja um problema para ela.

— Deixe de ser tão chato, Remus – Sirius rolou os olhos, impaciente – A moça nem apareceu e você já está implicando com ela. Ser a mais jovem da Ordem não quer dizer ser incompetente.

— Quer dizer que ela não tem experiência alguma em uma guerra bruxa e sequer deve saber o que está fazendo. Se não fosse uma escolha de Dumbledore, eu teria me colocad-

Um estrondo irrompeu no andar de baixo. Parecia que algo havia despencado , mas era impossível discernir qualquer outro som além dos gritos de Walburga retumbando pela casa inteira.

— Ela deve ter chegado. – constatei o óbvio.

— Droga! Esqueci de avisar sobre aquela tábua solta perto da porta. Você cala aquele quadro idiota enquanto eu vou checar se alguém se machucou. Vê se não banca o ancião pra cima dela logo de primeira, está bom assim?

Sirius saiu apressado antes que eu retrucasse. Eu não o culpo pela empolgação, ele está assim desde que pôs os pés nessa casa. Não se engane, isso nada tem a ver com essa estrutura velha e cheia de lembranças da parte da família que ele faz questão de esquecer. Isso tudo é relativo às pessoas que aqui ele pôde reencontrar, conhecer e ter a companhia. Eu sei o que é viver um pedaço da vida sozinho, e enquanto o quadro de Walburga gritava a mim palavras como imundo, maldito e aberração, permiti-me um breve sorriso ao constatar que, após todos esses anos e tudo o que já se passou, não há no mundo duas pessoas que entendam melhor o significado de carregar esses adjetivos nos ombros do que Sirius e eu.

Enquanto descia as escadas, já em meio ao silêncio mórbido da Mui Antiga e Nobre Casa dos Black, pensei por um momento que, talvez, pouca idade realmente não significasse pouco juízo. Dumbledore não teria permitido que alguém desqualificado tomasse tamanha responsabilidade. Talvez Sirius estivesse com razão. Talvez...

Ah...

Não.

Merda.

— ...não acredito em como esse mundo é pequeno! Diga-me, como estão Andrômeda e Ted?

Não poderia ser a mesma. Simplesmente não poderia.

— Aluado, desça logo! Adivinha só quem é da família?

Ela está de costas, pode não ser... Por favor, não seja...

— Aí está você! – Sirius estava exaltado demais para sequer notar o meu assombro – Remus Lupin, conheça minha prima e mais nova integrante da Ordem da Fênix, Nymphadora Tonks – completou com um gesto exagerado.

A moça riu de Sirius, depois ralhou algo sobre seu primeiro nome que eu não fui capaz de compreender. O som de sua risada encheu o ambiente, acordando as milhares de borboletas em meu estômago que agora se remexiam feito loucas querendo sair, enquanto eu mesmo não era capaz de me retirar do terceiro degrau.  

— E aí, Remus, beleza?

Quando fui recebido com uma mão estendida e um sorriso cativante ao pé da escada, eu não soube se realmente havia visto algo a mais em seus olhos, logo no instante em que encontraram os meus. Eu sabia como era remota a possibilidade de ela ainda se lembrar, então com certeza não seria eu a abordá-la com esse assunto.

Ou com qualquer outro assunto. Somente um tolo consideraria uma aproximação pessoal estando em meus sapatos.

Sequer considerei ir ao seu encontro quando ela tropeçou e se estatelou no corredor, causando o maior tumulto, e tampouco me dispus a calar os gritos de Walburga que preencheram a mansão inteira. Era como se a algazarra daquele quadro não penetrasse mais em meus ouvidos, tão alheio estava eu ao que acontecia no cenário.

Eu só conseguia pensar em como ela estava linda, e em como eu estava perdido.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Não deixe de me contar o que achou.

Um grande obrigada a Ly Anne Black, beta reader dessa one! ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Como não esquecer essa garota" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.