Liberdade escrita por Semideusa de Papel


Capítulo 1
One Shot


Notas iniciais do capítulo

Para quem quiser uma trilha sonora, aqui está a minha sugestão:

Superestação (Amsteradio)
Death of A Bachelor (Panic! At The Disco)
Silhouettes (Aurora)

Os links seguem abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=n5dXj5x9QW0
https://www.youtube.com/watch?v=mY2Jxy-brqU
https://www.youtube.com/watch?v=SgDS2p8E7Jg



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As pessoas têm essa estúpida mania de se prender. Mesmo depois de cortado o cordão umbilical, procuramos algo para nos prender: sestro, sons, paixões, bebidas, masturbação, assassinatos, ressacas. E ainda assim, cismamos com o slogan da liberdade. Criamos uma dependência desse conceito que tanto odiamos. Fingimos gostar para que aquele vizinho que nos dá bom dia toda manhã tenha inveja de nosso orgulho. Mas esse mundo é cruel, cheio de desfalques.

Foi com esse pensamento formado que conheci uma menina peculiar. Ela dizia gostar da liberdade e não o dizia da boca pra fora. Era notória sua paixão. E ela realmente precisava ser livre. A pobre garota nasceu amaldiçoada, o que a tornava ainda mais atraente. Ela gostava de camélias, mas era alérgica. E não adiantava, seu jardim era lotado delas, por isso andava sempre com o nariz vermelho. Ela nunca conseguiu se afastar desse mal que lhe fazia tão bem. Suas roupas eram exageradas. Decotes grandes demais, espartilhos em pleno século XXI, colares extravagantes e as saias mal lhe cobriam as nádegas ou vendavam-lhe os pés.

 E vamos combinar: que estudante nunca sonhou acordada olhando aquele alguém que a excita tanto? Agradeça à Santa Hipocrisia, pois ninguém tem a cara a tapa para comentar. E não comentamos porque não temos a liberdade. E não temos porque não queremos, não gostamos. Afinal, se todos fossem livres, todos poderiam apoderar-se do seu sonho. Seria um caos, uma anomia. E os homens odeiam anomias. Mas como disse, ela era diferente. Se esse era seu desejo, ela tentava. Podia ser uma operação suicida, mas ela prefere isso a ter de viver ao som de sequer uma corrente.

Ela atraía olhares que a julgavam dos pés à cabeça, não que isso lhe importasse. Ela sabia que era uma daquelas músicas que não se gosta de primeira. São raros os que teimam em ouvir pela segunda vez. É quando começam a ouvir os encantos, os acordes escondidos e a prestar atenção na letra embolada. Repetem uma, duas, três vezes e quando veem, já não conseguem parar de escutar, dormem e acordam com ela na cabeça. São esses poucos azarados que ficavam perto daquela mulher.

Ela se cansava fácil das pessoas e tinha mania de descarte. Era uma menina egoísta que só pensava em sua própria liberdade. Era teimosa e ficava com as bochechas vermelhas de raiva quando brigava com alguém. Cortava-se logo a amizade, afinal, ela encontraria outra com facilidade. Outra mania irritante era a de querer sempre aquilo que não tinha ou não podia ter. Seduzir era um de seus jogos preferidos. Ah, Deus, e como era boa naquilo. Vinha com aquele papo de quem não quer nada, toda cheia de mistérios e te faz acreditar que será o único capaz de revela-los. Ela é uma boa ouvinte, afinal, se alimenta de histórias alheias (outro hobbie perturbador). Você não sabe o porquê, mas confia naqueles olhos cor de mel. Talvez seja por todo aquele charme que ela faz quando para em toda e qualquer floricultura para comprar uma camélia. Não demora muito para seu nariz estar todo vermelhinho, realmente uma graça.

Era comum que ela recebesse uma ou outra mensagem dizendo: “Você me ensinou como partir um coração”. Ela não se importava, se achava no direito. Não queria se apegar a ninguém, então assim que seu coração dava uma leve palpitada, ela recuava. Não perderia sua liberdade para tornar-se propriedade alheia. Abominava a palavra esposa e mesmo assim, tornou-se uma. A minha esposa. Eu cortei-lhe as asas e a coloquei em uma gaiola. Eu a vi definhar e largar sua felicidade por mim.

Ela estava muito bonita vestida de noiva. Minha mãe insistiu para que usasse branco, mas claro que ela resistiu com todas as forças. Desfez-se do vestido que a senhora comprara e apareceu na cerimônia de azul-turquesa e com um buquê de camélias. Mamãe torceu o nariz e emburrou-se durante todo o discurso. Ela jamais entenderia porque eu escolhi essa mulher.

Em nossa lua de mel, viajamos para a Tailândia e seguimos para o Tibet. Ela sempre quis conhecer o mundo, então levou seu caderno e anotou tudo o que achava interessante: o nome das flores exóticas, o sabor da comida, as danças e as festas. Não importava o país, ela chamava atenção com aquele batom vermelho e as roupas extravagantes. Eu gostava de observá-la, pois era como assistir a um filme. Ela era espontânea, engraçada e tirava foto de cada detalhe que achava digno de ser lembrado.

Em cerca de um ano, tivemos nosso primeiro filho. Ele tinha o mesmo nariz arrebitado e olhos grandes da mãe. Assim que ela chegou da sala de parto, a família já esperava no quarto com balões e sorrisos. Ela pareceu incomodada e não demorou para que brigasse com todos e os mandasse sair para que a criança pudesse descansar. Fiquei triste, ela não queria mais tirar fotos, nem mesmo de momentos como aquele, dignos de serem emoldurados. Nos meses que se sucederam, ela aparentava exausta. Parou de frequentar o teatro; começou a usar roupas sem decote e calça jeans; não usava mais o batom vermelho, nem pintava o cabelo de cores alegres; não chamava mais atenção na rua e nem falava mais em conhecer o mundo.

Quando Thiago completou dois anos de idade, ela se desfez do jardim de camélias. Dizia que era muito arriscado, ele poderia ter alergia. Doou sua coleção de espartilhos, disse que estavam fora de moda a quase um século. Mas desde quando ela seguia a moda alheia? Ela se convertera e passou a frequentar a Igreja com a minha mãe. Duas semanas depois, ela afirmou com aquele tom autoritário que queria apenas uma posição durante o sexo: a única posição que o padre dissera ser correta aos olhos de Deus. Ela não gemia mais e não haviam mais fantasias ou palavras sacanas.

Sete meses depois, ela resolveu largar o emprego. Disse que eu ganhava o suficiente para sustentar-nos e que queria mais um filho. Concebi seu desejo, tivemos duas menininhas lindas, gêmeas. Não diferentes do primeiro, eram a cara da mãe. Ela passava o dia inteiro em casa lustrando os móveis e cuidando das crianças. Seu cabelo vivia em um rabo de cavalo torto e as roupas sempre cheiravam a produto de limpeza. Ela dispensou a empregada, mas por mais que eu insistisse, ela dizia que a casa era dela e ela deveria cuidar.

Minha esposa resolveu dar um jantar em uma quinta-feira. Convidou as amigas da Igreja e seus cônjuges. A comida na mesa deixou um aroma divino no cômodo e como sou impaciente coloquei a coxa do peru em meu prato. Os convidados murmuraram surpresos: eu acabara de cometer uma heresia a seus olhos. Ela me lançou um olhar de reprovação e com as bochechas já vermelhas pediu desculpas pelos meus atos. Os demais rezaram enquanto eu encarava a coxa do peru esfriando em meu prato. Assim que todos se serviram, abocanhei aquela carne suculenta. O assunto monótono na mesa me fez ficar sonolento, então dispersei-me  algumas vezes. O jantar acabou mais tarde do que eu imaginava. E quando os convidados foram embora, ela me lançou mais um olhar de reprovação. Suas bochechas voltaram a corar e ela gritou comigo como fazia com cada vez mais regularidade. Reclamou de minhas atitudes à mesa e da minha falta de atenção. Chamou-me de nomes rudes e por pouco não me deu um tapa. Quem era aquela mulher? Eu estava magoado, não conseguia olhar para a casca do que um dia fora aquela garota incrível.

Nos meses que se seguiram, tentei ama-la, pois meus pais me ensinaram que quando algo quebra, devemos conserta-lo e não jogar fora. Mas eu tinha repulsa do que ela se tornou. Foi quando percebi que jamais a amei. Eu amava a ideia daquela mulher que não existia mais. A ideia que matei. Era impossível que ela se casasse sem acabar com um pedaço daquele ser divino. Eu devia ter percebido que a existência dela dependia de sua própria solidão e liberdade. Eu matara aquele ser e a transformara em mais uma mulher padronizada e neurótica. O problema de se desfazer de seus defeitos é que nunca se sabe qual deles é o seu pilar...

Pedi o divórcio com os olhos vazios. Deixei claro que lhe deixaria a casa e uma pensão gorda. Eu me mudaria de cidade, mas voltaria periodicamente para ver as crianças. Ela entrou em desespero, ajoelhou-se e rezou, pediu a Deus para que me fizesse enxergar meu erro. Mas ela não sabia que eu já havia feito isso. Eu arruinara a vida dela e não conseguiria viver com esse fardo. Era demais para mim. Ela chorou, agarrou minha blusa e fez menção de se matar. Não levei fé, não acreditava nas loucuras do amor. Esse tipo de coisa só acontece aos outros. Levei uma pequena mala e enfiei uma muda de roupa e outros pertences imediatos.

Enquanto eu saía da casa, ela gritava, arrastando os joelhos pelo gramado. As crianças olhavam assustadas na porta. Dei um beijo na testa de cada um e prometi não demorar. Liguei o carro e fui em direção a um hotel no centro da cidade. Pedi uma suíte e larguei minha única bagagem na cama. Eu precisava de um pouco de liberdade. Fui à boate mais próxima e agi como um adolescente. Bebi como nunca e beijei meninas drogadas. Levei uma até meu quarto no hotel e transei a noite inteira. Dessa vez nas posições que eu queria com uma mulher que realmente gemia e rebolava.

Acordei atrasado para o trabalho. Já eram 15h e a garota estava nua ao meu lado. Minha cabeça girava, levantei um tanto rápido com o estômago embrulhado. Corri para o banheiro e vomitei aquela mistura de tequila com alguma droga que eu ingerira na festa. Tomei um banho quente antes de vomitar um pouco mais. Quando saí do banheiro, a menina já havia ido embora. Eu agradeci em silêncio, não estava em condições de lidar com a situação. Fui até a recepção, comi umas torradas com café e liguei para o trabalho, inventando uma desculpa qualquer.

Deitei novamente na cama macia e coloquei meu celular para carregar. Liguei a televisão e encarei a tela sem prestar muita atenção até pegar no sono. Acordei às 19h com os olhos inchados e a boca seca. Tomei um gole de água e um banho quente e me arrumei para ver as crianças. Durante o percurso até minha antiga casa coloquei um dos CDs que ela deixara ali em nossa última viagem.

Não demorou muito para chegar. Bati na porta. Nada. Toquei a campainha. Ninguém atendeu. Bati com mais força. Meu coração apertou com o silêncio. Ela era muito pontual, não deixava visitas esperando na porta. Procurei pela chave reserva atrás do vaso de planta, lá estava. Adentrei a casa. Tudo estava em ordem. Tudo metodicamente limpo. As luzes acesas e a televisão ligada. Gritei pelas crianças, por ela, mas não obtive resposta.

Fui até a cozinha e minhas pernas vacilaram. Lá estava ela, trajando um espartilho preto, o cabelo recém-cortado com uma mecha rosa, uma saia que lhe cobria os pés e o batom vermelho. Lá estava a minha esposa, deitada no chão. Uma garrafa de vinho quebrada ao seu lado e mais outra vazia na pia. Algumas caixas de remédio vazias acompanhavam aquela cena. Ajoelhei-me ao seu lado e segurei seu pulso frio. Agarrei-lhe a mão e apoiei sua cabeça em meu colo. Acariciei o cabelo macio e beijei os lábios sem vida. Achei um bilhete amassado ao seu lado.

“Querido,

Deixei as crianças na casa da sua mãe. Sei que você não irá voltar e que me tornei alguém que você jamais poderá amar. Eu mudei, me perdi. Meu medo se concretizou e nem consigo mais me reconhecer. Você me prendeu e deixou meu mundo virar ao contrário. Eu preciso da liberdade, meu bem, você sabe. Eu não sei mais como voltar ou como abandonar meus filhos. Esse foi o único meio pelo qual sei que conseguirei seguir meu caminho. Talvez Deus não me aceite, mas tudo bem, porque eu me aceito desse jeito. Vou embora, conhecer o que tem do outro lado, me aventurar pelo desconhecido, ser eu. Adeus, meu amado.”

Nenhuma lágrima escorreu por minhas bochechas. Eu apenas sorri, olhei para o rosto pálido e agradeci por ela ter voltado. Nunca contei às crianças o que aconteceu. Mamãe achou que seria o certo esperar até que fossem mais velhos. Ela mudou minha visão sobre a liberdade e, em sua memória, estou conhecendo o mundo. Descobri que os homens certamente discordam dela, não encontrei ninguém que apreciasse a liberdade como aquela mulher. Nossos filhos já viram muita coisa e aprenderam sobre diversas culturas. Um dia me unirei a ela, mas dessa vez, não prenderei-a, deixarei seu espírito livre vagar pela eternidade e acompanharei de longe como devia ter feito, apenas observando o filme que ela é se desenrolar.


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