Noturna - A Maldição dos Criadores escrita por RunningWolfs


Capítulo 10
Saciada


Notas iniciais do capítulo

Heey! I'm back!

Aproveitem a leitura ;)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/740960/chapter/10

Todas as turmas reuniam-se no refeitório, separadas por extensas mesas de madeira nas quais comidas e bebidas de todos os tipos eram repostas a todo instante. Garçons-robôs, em sua rapidez inumana, faziam este trabalho com perfeição flutuando graciosamente por entre as pessoas que se deliciavam com banquetes de frutas, carnes, saladas e sobremesas.

As conversas variadas misturavam-se aos sons dos talheres colidindo contra os pratos. Todos os alunos pareciam empolgados em devorar tudo. Mal se permitiam terminar o que tinham nos pratos e já se serviam de mais comida. Todos menos Kass, que encarava o prato à frente cutucando a carne com o garfo sem conseguir encontrar vontade de prová-la. Apesar de não ter problema em comer comida humana, Kass preferia esperar para saciar sua sede corretamente depois de um longo tempo.

Absorta em seus pensamentos, congelou ao sentir um toque suave na coxa esquerda e franziu a testa ao ouvir uma risada baixa.

— Perdão — sussurrou Lya, contendo uma risada. — Acho que você deveria encontrar Simon. Amanda pode me levar para o dormitório e, acredite, estou bem segura aqui.

Kass bufou tentando ignorar a mão ainda pousada em sua coxa.

— Não se preocupe. Consigo esperar até levar Vossa Alteza para o quarto. — Kass se aproximou do ouvido de Lyanna. — E se continuar com sua mão aí, vou continuar o que não terminamos nas escadas.

As bochechas da princesa tomaram um tom avermelhado diante das palavras de Kass. As duas se encararam por alguns longos segundos até Amanda pigarrear do outro lado da mesa. Kass se esquecera de onde estavam; ficou descontraída imaginando seus lábios contra os da princesa caso Yass não tivesse aparecido naquela hora. Seriam tão macios como aparentavam? Ela suspirou e voltou a cutucar a comida com tédio.

— É vegana, Coelhinha? — perguntou Amanda com um sorriso zombeteiro nos lábios. — Não se preocupe. A maioria dos seguidores de Rachel também são e, se for como dizem os boatos, você estará ao lado deles em breve.

Kass estava pronta para retrucar, porém sentiu que estava sendo observada. Discretamente ergueu o olhar e encontrou, numa mesa afastadas das demais, olhos cinzentos lhe observando atentamente. Rachel tinha os braços cruzados na altura dos fartos seios. Todos ao seu redor conversavam tranquilamente, mas ela parecia ter achado mais interessante olhar a novata.

O encontro das duas tinha sido rápido demais, e Kass imaginava se a Presidente não teria mais nada a falar. Se fosse sobre sua integração ao grupo, já tinha a resposta na ponta da língua: não. No entanto, se fosse outro assunto, sua curiosidade era grande o suficiente para querer ouvir Rachel Owen de bom grado.

— Droga! — sibilou Ben ao lado da Presidente. Ele pegou o guardanapo de tecido e enrolou no dedo rapidamente.

Mas o cheiro já havia adentrado nos pulmões de Kass, torturando-a dolorosamente. Sentia como se milhares de garras — as garras de seu demônio — arranhassem sua garganta de dentro para fora. Ela curvou-se levemente na mesa, desviando o olhar da mesa do Mariposas.

— Kass? — Lya parecia ter percebido a mudança de seu comportamento.

— Estou bem! Só preciso sair daqui — rosnou antes de se levantar abruptamente, quase derrubando sua taça cheia.

Sarah e Amanda pareciam prontas para seguir Kass, inclinando os corpos para que se levantassem da mesa, porém a princesa ergueu a mão para impedi-las. Alguns alunos que estavam por perto tinham parado de comer e agora observavam o desenrolar de tudo.

— Podem terminar o jantar. Kass não está se sentindo muito bem, então vou levá-la até o hospital — explicou Lya rapidamente enquanto tentava alcançar a novata. - Vamos, Yass!

Naquele momento Kassandra não estava se importando com os empurrões ou pisões que distribuía aos alunos em seu caminho. Queria apenas sair dali o mais rápido possível. Resmungou um palavrão quando viu um dos Federais do lugar sair de seu posto e caminhar na sua direção. Cerrou os punhos, tentando pensar numa maneira de escapar do agente, quando o corpo da princesa entrou no seu campo de visão.

— Aqui. Deixe-me te ajudar. —- Ela se curvou levemente e passou o braço ao redor da cintura de Kass com firmeza. — Yass, consegue abrir o caminho?

— Claro, Alteza.

O robô se adiantou para liderar o caminho, então começou a pedir licença para os alunos. Alguns soltaram resmungos, outros acataram o pedido tranquilamente e a maioria olhava na direção de Kass como se quisessem entender o que estava acontecendo.

Ao ver a princesa resgatar a notava, o Federal perdeu o interesse de abordá-la, então voltou para seu posto tranquilamente. Com isso elas saíram do refeitório sem maiores problemas.

Não havia ninguém nos corredores naquele horário, apenas as câmeras vigiando silenciosamente através de suas lentes detectoras de movimento. Elas seguiram o trio emitindo ruídos baixos enquanto giravam lentamente.

Lya a segurava com dificuldade. Era um pouco mais baixa e não tão forte. Seu rosto vermelho demonstrava a quantidade de esforço que fazia para carregar Kass. Faltavam alguns passos para que alcançassem o pátio do colégio, mas os braços da princesa falharam quando Kassandra se curvou abruptamente para frente e caiu de joelhos.

— Deuses! — Lya segurou o rosto da amiga com ambas as mãos. — Aguente mais um pouco, por favor. — Os cabelos de Lya caíram para o lado, deixando o pescoço exposto.

Kassandra fechou os olhos. Imaginar seus dentes perfurando aquela pele fina novamente e se lembrar do gosto do sangue de Lya a deixava na beira do descontrole.

— Por favor, volte ao refeitório e fique longe de mim. — Kass nunca foi de implorar, mas estava a ponto de fazê-lo para não machucar Lya. Fora imprudente ao não cuidar de sua fome, achando ser forte o suficiente para ficar longos períodos sem saciar sua verdadeira sede. Lya tinha o poder de fazê-la esquecer sua verdadeira natureza, e deixar de lado sua essência era perigoso.

— Eu vou te ajudar, Kass, independentemente da situação. — A princesa fez menção de aproximar-se, mas foi empurrada com força contra a parede do corredor.

Os olhos de Kass brilhavam vermelhos e veias negras começavam a subir por seu pescoço lentamente. Parecia outra pessoa, outro ser. Suas presas estavam aparentes, e ela emitia um constante rosnado que vinha do fundo de sua garganta. Ela deslizou a mão lentamente pelo rosto da princesa até agarrar seu pescoço num aperto leve, porém firme.

— Iniciando protocolo de segurança — anunciou Yass numa voz diferente. Ele ergueu seu braço direito e disparou um dardo.

— Yass! — Lya envolveu o corpo de Kass na tentativa inútil de tentar segura-lá.

Kass resmungou ao sentir uma picada em suas costas. Ela olhou na direção do robô, pronta para descarregar toda sua fúria nele, mas suas pernas falharam miseravelmente e seus olhos se fecharam num desligamento completo.

 

O cheiro de álcool despertou Kass imediatamente. Seu primeiro impulso foi tentar levantar-se, mas mãos fortes seguraram seus ombros e pressionaram-nos na tentativa de mantê-la deitada. Ela ergueu o olhar e encontrou um homem de aparentemente trinta e poucos anos de idade com uma juba ruiva bagunçada, corpo esguio e algumas cicatrizes em ambos os braços. Ele sorriu amigavelmente e, vendo-a mais calma, sentou-se num banquinho ao lado de seu leito.

As palavras dele encontravam os ouvidos confusos de Kass. Ainda flutuava num estado de torpor, acordando lentamente,  com a boca seca e língua áspera. Ela observou o lugar por alguns segundos, percebendo que estava em um consultório médico. Além de limpo e branco, o ambiente possuía uma organização impecável. Livros de várias matérias estavam dispostos em duas grandes prateleiras que cobriam as duas paredes laterais. A maioria era sobre medicina, porém Kass reconheceu alguns exemplares que falavam sobre os Criadores. Uma mesa de carvalho branco ficava na extremidade mais distante  do consultório. Sobre ela, brilhava uma plaquinha na qual se lia o nome de Dr. Simon. Havia, também, alguns retratos, de bordas prateadas, exibindo os inúmeros títulos e cursos conquistados pelo médico. E, por fim, uma ampla janela atrás da mesa que fornecia uma vista privilegiada da Capital Emblemática.

Estavam apenas os dois naquela sala. Não havia sinal de Lyanna ou Yass, e era melhor assim. Kass não fora levada até ali para uma consulta qualquer, e a possibilidade de transformar o robô em sucata continuava muito grande depois do que ele fizera.

— Senhorita Zaskov, esperava que vê-la menos.... — Dr. Simon cruzou os braços, incapaz de dar continuidade a seu pensamento, e suspirou. — Tem sorte de minha irmã ser uma hacker para conseguir apagar as imagens ou você acordaria em algum lugar bem desagradável.

— Nem nos conhecemos direito, Dr. Simon, e já está me ameaçando? — zombou Kass.

Ela, então, jogou suas pernas para fora do leito e se levantou ignorando o olhar reprovador do médico. Kassandra esperou breves segundos, testando seu equilíbrio, e começou a cambalear pela sala.

— Avisando — corrigiu observando-a se recostar em sua mesa. — Nunca ameaçaria a filha do meu melhor amigo e a responsável por salvar minha irmã na simulação.

— Sarah? —

Ele assentiu e se levantou da cadeira.

— Ótimo. Agora ela sabe sobre mim?

— E Amanda. Mas posso garantir a fidelidade delas.

Kass respirou fundo.

— Mas não estamos aqui para discutir isso, não é mesmo?

Dr. Simon caminhou até a estante, afastou alguns livros para o lado e girou uma maçaneta secreta. Uma porta se abriu e uma fumaça saiu do compartimento secreto dela. Era, Kass pensava, uma geladeira contendo bolsas de sangue, tubos de ensaio e pequenos frascos com líquidos escuros e que pareciam serem densos e pegajosos.

— Pegue. Deve ajudar — disse ao jogar duas bolsas de sangue, uma de cada vez, para Kass. Simon a observou apanhá-las no ar sem dificuldades. — Estarei do lado de fora se precisar de alguma coisa.

Seus olhos vidrados nas bolsas de sangue em suas mãos nem notaram quando o médico se ausentou. Não havia motivos para ela controlar sua natureza naquele momento, porém desejava ser melhor que a sede maldita.

Mas não conseguiria.

Quando perfurou a bolsa com seus caninos e sugou a primeira vez, Kass rosnou de satisfação. Parecia um animal devorando sua presa de maneira esfomeada, cujas veias negras levemente sobressaltadas subiam pelo rosto, contrastando com a pele pálida e os olhos brilhantes. Sujou a camisa do uniforme conforme apertava a bolsa com força, querendo mais e mais.

As duas bolsas de sangue ficaram sem uma única gota em questão de minutos. Um silêncio tomava conta da sala; nem mesmo o zumbido dos carros voadores podia ser ouvido. Ela estava de joelhos, as mãos espalmadas nas coxas e a respiração irregular. Noturna materializara-se ao lado de Kass, com suas veias esverdeadas pulsando em contraste com sua lâmina negra.

— Estou bem — resmungou com os olhos vidrados nas bolsas vazias na sua frente.

As veias de Noturna brilharam duas vezes de maneira rápida.

Ninguém podia ouvir a pergunta de sua espada. Na verdade não havia uma voz na cabeça de Kass, mas uma sensação ou pressentimento vindo de Noturna. Era assim desde que uma fora designada a outra. Unidas num laço invisível e eterno.

— Não. O cheiro de Lya está longe, então deve estar no dormitório. — Ela olhou para o lado antes de segurar a espada com firmeza. — Sim. Como nos velhos tempos. A mesma energia, a mesma força, mas não podemos voltar. Não depois de tudo. Não depois dela.

Sorriu fraco.

— Sua sede também será saciada. Eu prometo.

Noturna foi novamente encantada em seu braço. Kass usou uma pia pequena que ficava aos fundos da sala para limpar o sangue de seu rosto e mãos e, então, seguiu para a porta. Bateu três vezes antes de abri-la e encontrou Dr. Simon conversando com alguém no corredor. Kass não conseguia ver quem era até ele sair da frente.

— Amanda — murmurou.

— Coelhinha. Você é bem mais interessante do que eu imaginava.  Vamos? Lya está a esperando no dormitório.

Ela assentiu e voltou-se para o médico.

— Obrigada.

Simon sorriu amigavelmente.

— Não hesite voltar caso precise.

Kass acompanhou Amanda em silêncio.

Apesar de ter tentado limpar o sangue de sua camisa, não resolvera muita coisa. Ela tentava passar despercebida entre as pouquíssimas pessoas presentes no hospital, mas os olhares a seguiam facilmente. Estava prestes a tentar fazer alguma coisa quando Amanda desamarrou o moletom azul de sua cintura e lhe ofereceu.

— Vai ajudar com seu probleminha.

Kass aceitou o moletom e o vestiu rapidamente na tentativa de afastar os olhares curiosos.

Amanda agia diferente. Seu olhar parecia mais maduro, a postura imponente como se afastasse com somente sua presença os transeuntes enquanto se caminhavam para fora do hospital. Não aparentava estar incomodada com a verdadeira natureza de Kassandra, mas estava visivelmente mais quieta.

Elas atravessaram o pátio principal tranquilamente, seguindo para o prédio onde ficavam os dormitórios femininos. Federais circulavam por ali, assim como os funcionários da limpeza. Estava tarde - o céu estava levemente claro com a lua quase desaparecendo no horizonte -, mas talvez por Amanda ser a Líder Esportiva do colégio ninguém ousou incomodá-las. Em poucos minutos, Kass estava diante da porta de seu dormitório.

— Kassandra.

Kass estava pronta para abrir a porta, mas se deteve ao ouvir o chamado de Amanda e espiou por cima do ombro.

— Não me importo com o que você seja, mas se ferir Lyanna eu mato você.  Boa noite. — Ela passou por Kass e desapareceu no corredor.

Kass suspirou. Não queria admitir, mas gostava do jeito da Líder Esportiva. Algo do jeito dela, talvez a leve arrogância ou o jeito despretensioso, fazia com que ela confiasse um pouco em Amanda.

Tudo estava calmo. A princesa dormia abraçada ao travesseiro com uma expressão preocupada — as sobrancelhas levemente arqueadas — enquanto Yass estava desativado numa plataforma redonda.

Kass pegou um pijama de tecido leve e foi tomar banho. Sem fazer barulho, ela seguiu para o banheiro e ligou o chuveiro. Sentia o corpo renovado, mas cansado. Tantas coisas aconteceram naquele dia, inclusive a aproximação abrupta da princesa. Kass tirou o uniforme adentrando de baixo do chuveiro. Dessa vez não se preocupou em testar a temperatura da água.

Suspirou quando a água morna começou a banhar seu corpo nu. Fechou lentamente os olhos para entrar num estado profundo de meditação, desejando que aquele simples banho pudesse transportá-la para outra dimensão. Encostou a testa no azulejo frio e respirou profundamente. Ficou alguns minutos imóvel, com os olhos fechados, até ouvir tímidas batidas na porta.

— Kass…

— Volte a dormir. Está tudo bem — Kass respondeu rapidamente. Não queria começar uma conversa sobre o ocorrido tão cedo.

— Eu falhei. — A voz de Lya saiu baixa e um pouco trêmula. — Disse que podia cuidar de você, mas sou fraca.

— Pare — rosnou desligando o chuveiro. Não conseguiria mais relaxar.

— Tenho tanto medo de perder você que acabo a afastando de mim aos poucos — confessou a princesa com a voz embargada.

Não queria mais ouvir. Kassandra se trocou rapidamente e abriu a porta. Não permitiu que Lya falasse ou pensasse; segurou seus pulsos a empurrou para a cama. Kass ficou por cima, deixando os braços da princesa acima da cabeça. Dominá-la daquele jeito causava arrepios torturantes no corpo de Kassandra.

— Hm… Realmente você é bem fraca — disse com um sorriso malicioso nos lábios. — Não seja patética a esse ponto, Lyanna. Não sou como suas amigas; não precisa ficar se preocupando comigo tanto assim.

— Mas…

— Você e seu pai já fizeram tudo por mim. Não sei onde estaria hoje sem a ajuda de vocês. — Kass depositou um beijo demorado na testa de Lya, então a soltou sentando-se na cama.

— Obrigada. Acho que eu estava precisando disso.

— Volte a dormir. — Kass estava pronta para seguir até sua cama quando sentiu a mão de Lya segurar seu braço.

— Pode dormir comigo? Por favor?

Apesar de todo seu corpo gritar, de Noturna queimar seu braço num alerta desesperado, Kass ignorou os sinais. Queria se permitir sentir, nem que fosse por uma única vez, como era ter alguém importante em seus braços novamente. Então Kass deitou ao lado de Lya, ficando de frente com ela. Seus olhos conversavam numa língua única e inteligível apenas por elas.

Kass passou os braços em volta do corpo da princesa, trazendo-a para mais perto. Automaticamente inspirou o cheiro da sua droga predileta, fechando os olhos. Subiu a mão direita pelas costas de Lya até chegar em seus cabelos, onde começou a acariciá-los lentamente. O corpo da princesa começou relaxar aos poucos em seus braços até entrar num sono profundo. Poderia ficar daquele jeito para sempre. Até morreria feliz. E depois de algum tempo Kass também adormecera com Lya aconchegada em seus braços.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Até a próxima guys!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Noturna - A Maldição dos Criadores" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.