Pupilo escrita por Edward blake


Capítulo 4
Capítulo 04: Cinza


Notas iniciais do capítulo

Se você chegou até aqui, fico realmente feliz de estar lhe prendendo á trama.
não se esqueça de dizer o que está achando, sentindo ou o que pensa sobre isso tudo.
opiniões e críticas.
Agradeço enormemente.



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Cinza. Capítulo 04

Eu estou em casa.

No caminho até aqui, que não foi rápido pois tive que vir a pé, lembrei do meu Opala encalhado na garagem por falta de grana para o conserto.

Lembrei de mim mesmo.

Eu estou confuso, confuso e bastante triste.

Quando eu aceitei meu trabalho, um dos objetivos era esquecer de mim.

Demorei pra entrar em casa.

Eu já estava com as chaves na mão há bastante tempo.

Na verdade eu as tirei do bolso várias vezes.

Eu sinto como se criasse a ilusão de eu já estar perto de casa.

Eu demorei a entrar, literalmente.

Fiquei parado em frente a porta como quando eu chegava em casa tarde enquanto morava com meus pais.

Ás vezes eu acho que me sinto mais em casa no banco de uma viatura ou carro velho por aí.

Tudo parece bem pior agora... Agora que lembrei de mim.

Lembrei que sou casado.

Que a porta está torta por causa da umidade e é difícil abri-la.

O trinco fica solto, dando a impressão que alguém está o puxando para baixo, mas ele apenas não suporta o próprio peso.

Assim como eu.

Lembrei do meu tapete escrito: ”... EM V..ND... ” por conta das vezes que limpei as botas nele.

Está tudo pior agora.

Parado de para o meu reflexo escuro na tela da TV eu consigo ver minha sala, fico feliz que Ana não esteja aqui me esperando, afinal eu passei um dia inteiro fora, ela ficaria muito irritada.

Oh, Ana...

— O que eu fiz...?

Minha voz está tão cansada quanto eu mesmo.

Eu deixei Ana, minha esposa, sozinha nesta casa.

Nem eu mesmo ficaria bem neste forno.

Eu devia...não, ainda não estou pronto para ir vê-la. Ela está no quarto, assim como estava ontem.

Me sento na poltrona regulável.

Ela era...regulável.

Estico um pouco minhas costas sobre aquele pedaço mofado e macio do estofado.

Retiro meu chapéu e coloco em cima do abajur, deixando  o ambiente ainda mais escuro.

Fica melhor nele que em mim.

A sala não é tão grande, uma lâmpada resolve o problema, ou mesmo a luz que entra pelas venezianas.

Meus olhos mortos rodam pelas paredes agora contendo listras negras contrastadas por conta da veneziana, fico feliz que meus olhos estejam posicionados em uma das listras sem luz.

Atrás de mim tem a cozinha, sinto fome, mas não tenho vontade de fazer comida agora.

— Nem um pouco...

Usando o apoio dos meus próprios pés eu tiro minhas botas, uma de cada vez.

Eu não lembrava como é bom sentir os dedinhos do pé se mexerem livremente.

Neste cubículo pequeno de subúrbio eu olho para a parede do quarto onde Ana está.

É o único cômodo com porta e ar-condicionado. É o lugar favorito dela.

Era o meu também.

O meu copo de Amarela ainda está na pequena mesa, na mesma que está o abajur, eu o deixei aqui na noite passada.

Não sei há quanto tempo tenho bebido neste copo sem o lavar.

Penso nisso enquanto bebo os últimos dois goles que restavam nele.

Por deus, como eu vim me enfiar neste buraco?

Têm alguns quadros nas paredes cinza de concreto quase sem reboco.

Eu e Ana, alguns amigos nossos, uns oficiais amigos da Ana.

Ela está tão feliz nessas fotos.

Ela nunca realmente quis que eu me tornasse um detetive.

Eu sei disso.

Não lembro há quanto tempo esse copo está aqui, mas quando o levantei percebi o circulo marrom claro que ficou na mesa sem poeira.

A pia deve estar um amontoado de sujeira.

Merda, Ana estaria uma fera se soubesse. É melhor eu fazer alguma coisa.

— Se você parar de nadar, você morre, garotão.

Ela costumava me dizer isso quando eu a pedia para ficar em casa.

Algumas noites eu me sentia só.

Agora que ela está aqui, me sinto mais solitário.

Me levanto usando uma força gigantesca e ando com passos lentos em direção á cozinha.

Meu casaco vai ao chão quase instantaneamente ao me empreguiçar.

Desabotoo uns botões da blusa após afrouxar minha gravata.

A pia não está uma montanha.

Não há louças o bastante para isso.

Subo as mangas mas sei que não faria diferença se as molhasse.

Um suspiro forte, pego o pano branco que agora parece muito mais manchado que o comum.

Há um urso nele e algo escrito. Não consigo ler, mas suspeito que seja ”sexta-feira”.

O coloco no ombro enquanto abro a torneira para enfrentar o demônio que jaz nas entranhas da louça suja.

Um motivo a menos para que alguém crie um furacão.

Acho que enquanto abro a torneira e vejo a sujeira ressecada se despregar dos pratos me sinto um pouco melhor do que desgrudando pessoas do chão.

Me faz querer assoviar.

Mas não o faço, não quero acordar Ana.

Ela... Nunca quis que eu assumisse esse cargo.

Que tivesse que fazer patrulhas e me arriscar.

Mas alguém tinha de sustenta-la.

Seus pais... Droga, seus pais eram tão escrotos.

Termino de limpar um dos pratos e o separo.

Tivemos que começar tudo do zero, sem a ajuda de praticamente ninguém.

O prato escorrega para dentro do amontoado de sujeira.

— Como um homem pode manter a índole que lhe é obrigada enquanto rasteja em meio á podridão de pessoas mesquinhas e cruéis? Como alguém pode se manter integro neste mundo?

Enquanto tento o retirar de dentro da pia suja e um tanto entupida e cheia de uma água cinza, escorrego meus dedos lentamente contra a lâmina de uma faca nos alicerces daquele monte.

Retiro rapidamente minha mão.

Fazendo com que o corte se repita.

— ARG! COMO EU PODERIA ME MANTER DA MESMA FORMA?

Jogo o prato no chão fazendo-o se dividir, assim como o corpo da cigana desconhecida.

— EU SEI, ANA, EU SEI QUE VOCÊ DETESTA QUANDO SAIO E DETESTA QUANDO CHEGO, EU SEI QUE EU NÃO SOU PERFEITO MAS TENHO QUE FAZER ALGUMA COISA.

Me viro contra uma parede.

A parede do quarto de Ana.

Ainda consigo o ver da cozinha e apontar meu dedo, agora vermelho e gotejando, eu grito como um animal.

Como um...eu não sou assim, Ana.

— EU NÃO SOU ASSIM, ANA... – Eu me calo e meu tom baixa tanto quanto minha cabeça, como um animal, ferido. -  Eu sou o único filha da mãe sarnento que está tentando fazer alguma coisa.

Caminho até a sala.

Existe uma bancada com gavetas onde a TV está em cima.

Eu a abro e no meio dos entulhos e baratas encontro uma fita crepe.

Vai servir por enquanto.

Meu dedo parece ter sido mumificado.

Não sei como usarei minha mão direita dessa forma.

Caminho até a parede cinzenta do quarto.

Tento ouvir algo.

Ouço seu respirar.

A gaveta permanece aberta.

Eu seguro o trinco... Eu o sujo e sangue, mas não ligo.

Eu demorei muito para abrir a porta.

Tiro a mão do trinco.

Uso meu indicador direito para bater na porta.

Só consigo uma vez, lembro da dor. Lembro de mim.

Lembro de Ana.

Abro a porta lentamente enquanto um pouco de luz preenche o quarto mais gelado que seu exterior.

— Ana, meu amor, me perdoa... Eu não quis te deixar só...

Ana é tetraplégica.

Ela não se move, ela não fala.

Antigamente ela costumava sorrir pra mim.

Agora ela não sorri.

Nós só... Nos olhamos.

— Ana, eu...estou aqui agora...eu não quis demorar tanto mas eu...eu... Veja. – Retiro o pano que estava no meu ombro, o pano que usei para enxugar os copos e talheres. – Eu lavei a louça.

Eu estico o pano alto o bastante para que ela possa ver enquanto me sento ao lado dela.

Me acomodo no colchão.

Assim como uma gota salgada se acomoda em meu rosto.

A chuva não havia cessado.

Viro meu rosto rápido o bastante para que Ana não veja.

Ela não merece mais disso.

Eu não quero piorar tudo agora que voltei pra casa.

Eu...

— Eu... Acho que deixei a torneira aberta...

Me levanto um tanto bruscamente apenas encostando a porta ao sair.

A torneira estava fechada.

Nenhuma gota caía.

Quero fazer o mesmo com meus olhos.

Mas não consigo, mesmo fechados, vejo Ana.

Eu choro.

Como chorei nas outras noites.

Com a testa contra aquela parede, mudando sua cor, a deixando mais escura.

A listra de luz ilumina meus olhos.

Meu rosto brilha com as lágrimas.

Meus dentes se pressionam, travo meu rosto.

Não posso fazer barulho.

Tenho que chorar em silêncio e nem mesmo sei se me escuta.

Eu sinto tanto, meu amor.

Eu odeio lembrar de como nosso mundo virou de cabeça pra baixo.


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