Pupilo escrita por Edward blake


Capítulo 2
Capítulo 02: Preto




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Preto. Capítulo 02

 

 

 

—Morta?

 

—Sim, morta. Eu... Não esperava por isso, mas... é isso.

 

— Você tem certeza?

 

Queria não ter, é uma situação desconcertante ao extremo.

O que iria acontecer no resto da noite?

Como tudo ia ser daqui pra frente?

Eu não tenho ideia.

Eu sinto tanta dor na porra da minha cabeça.

 

— ... Sinto muito criança.

 

Ela não me olhou nos olhos e eu fico realmente feliz por isso.

Seria terrível ficar com aquele olhar preso em minha alma pelo resto da semana.

Bom, acho que algum assalto à mão armada ou bala perdida no bairro dos negros vai me fazer esquecer isso uma hora ou outra.

Afaguei uma última vez seus cabelos pretos.

Era como um maldito déjà vu.

O céu está tão escuro como o asfalto.

A lua era como os postes sendo a única cor na escuridão.

Preto como o asfalto.

Era como andar num chão feito de água refletindo o que há em cima.

Será que o céu é tão sujo quanto aqui?

 

— Vai ficar parado aí esperando amanhecer?

 

Thomas parecia um rato, rápido e silencioso.

Do carro sua voz parecia mais baixa.

Talvez uma tuberculose estivesse querendo levar o velho Tommy para o túmulo.

 

— Anda, guri. Eu estou me sentindo forte como um touro que escapou de ser castrado.

 

Talvez fosse querer demais.

Aonde ele pensa que está indo, nós devíamos voltar à delegacia.

É quase certo que o caso da mãe encontrada no rio vai acabar chamando atenção demais se deixarmos os jornais saberem, mas temos quase 20 viaturas rodando por aí, por que tem que ser a nossa?

Pra onde nós iríamos?

 

— E pra onde nós vamos?

 

Eu estou á no máximo 20 passos da viatura.

Ponho minhas duas mãos ao redor da boca.

Não quero que ele acabe não me ouvindo.

Quanto menos eu falar com esse cadáver...

 

— O quê? O quê você disse, garoto?

 

Velho maldito do caralho.

Ponho meu chapéu e caminho até o carro.

O vidro entre aberto, provavelmente para fugir do frio, reflete um pouco meu rosto.

Quando foi a última vez que me barbeei?

Minha barba falha cresce rala principalmente ao redor do meu queixo.

Ela é estranhamente ruiva, embora meu cabelo seja loiro.

Eu não tenho tempo para entender isso.

Merda, meus olhos parecem buracos escuros.

Aonde eu cheguei?

 

— Aonde nós vamos?

 

— Aonde? Está brincando comigo, garoto? Vamos ver aquela mulher de perto.

 

Meu cenho franzido não era incomum.

Havia muito a olhar naquele rosto que me fazia sentir uma certa repulsa.

O que era aquilo para Thomas? Uma atração?

Uma criança acabou de ficar desamparada.

Não temos nem ideia de onde o pai dela pode estar.

Por deus... Como isso pode soar interessante.

Eu estou á um banco de distância daquele velho maldito.

Meia cidade de distância de um almoço voltando por onde veio.

Maldito... Me sinto curioso como um gato.

Espero não ter o destino de praxe dos felinos.

 

— Indeciso, Pablo? Entre na droga do carro. O que tá esperando, o natal?

 

Meus olhos permanecem estáticos, um leigo diria que estou com um semblante de tédio ou esnobando o velho Thomas.

Olhando aquele sorriso amarelado movendo o bigode, maldito bigode, como uma calda.

Com esses meus olhos cerrados pela metade.

Minha barba pinicando a cada movimento.

Mas não.

Eu estou cansado.

Eu estou cansado pra caralho.

Thomas desligou a sirene, obrigado, isso vai me ajudar com a dor de cabeça.

Sem a luz dela, ou dos postes, ou mesmo da lua que agora está coberta.

O céu mais parece o manto negro que cubro meu fusca velho.

E esse carro preto, mesmo com um brasão...

 

— Tá parecendo um carro funerário.

 

Dobro o punho e o sinto doer de cansaço.

Sento no banco do passageiro.

Pelo retrovisor embaçado eu podia ver a garota sentada no mesmo lugar.

Nem me dei o trabalho de perguntar seu nome.

Eu disse o meu.

Isso deve contar como algo.

Instantaneamente bato a porta e inclino o acento.

Meu deus... Aquilo era melhor que tudo.

Eu poderia dormir por algumas horas no tremer do carro causado pelo motor.

Eu poderia dormir por um milhão de anos.

Aí talvez eu acordasse com metade da idade do velho Tommy aqui.

 

— Certo, e quem é o defunto?

 

O que?

Minha mente respondeu antes da minha boca.

Era como se ele estivesse contando uma piada que dependesse da minha resposta.

Ele me olhava quase ansiando por alguma reação.

 

— Defunto..?

 

Levanto-me novamente enquanto o carro segue espalhando água pelas ruas escuras e becos estampados de preto.

Percebo que existem mais carteiras de cigarros e tampas de uísque no chão do carro do que cabelos na cabeça dele.

Esse filho da mãe é muito bem tratado no departamento.

A lista negra dos oficiais certamente tem o Tommy no topo.

Mas aposto que todos querem esses benefícios.

 

— Se estamos num carro funerário, quem é o defunto? Eu estou dirigindo.

 

Seus olhos focaram em mim, sua boca se lacrou.

Que bizarro, eu era o defunto?

Aquilo parecia uma espécie de ameaça?

Eu preciso de mais calmantes.

Se eu soubesse que esse trabalho me transformaria num lunático teria morrido nas indústrias como meu pai.

Mas tudo bem: em Roma não faça como os judeus.

 

— Bem... Você não tem mais força nesses braços para por o caixão ai dentro sozinho.

 

Silêncio.

Apenas o motor e o barulho dos pneus sobre a agua acumulada na rua.

Essa chuva não parava?

Um, dois, e cada vez mais gotas escorriam pelos vidros dos carros.

Descendo como numa corrida em prol da pequena poça no fim do vidro.

Tenho quase certeza que o velho gagá se sentiu contrariado.

Ou não.

 

— Grrrtss Ha ha ha, Então vamos buscar o morto.

 

Aquela risada soou mais bizarra ainda quando o cigarro caiu de sua boca.

Já estava quase no filtro então pouco lhe importava, eu acho.

Droga. Que filho da puta.

Só agora percebo que o morto é a mãe da pobre garota.

 

—Escroto...

 

Sussurro enquanto volto a me inclinar cobrindo o rosto com meu chapéu.

Tão molhado quanto o banco estava agora.

Apenas os breves raios de luz entram na brecha que deixei entre meu chapéu e meu nariz.

São faróis, alguns postes, bocas de fumo fechando e algumas padarias abrindo.

É, nós sabemos onde são as bocas.

Sabemos onde é quase tudo na verdade, ainda mais num bairro como esse.

A gente costuma chamar essas bandas de alpendre do diabo. Por que é onde ele pode descansar sem se preocupar com o que tem a sua volta.

Pelo pouco que me restava de visão eu pude ver alguns adolescentes que estavam passando droga para traficantes apenas um pouco mais velhos que eles.

Algumas bocas das quais já visitei, algumas lojas de fachadas.

Nós sabemos onde é quase tudo.

Eu só queria poder ajudar todo esse povo, mas, é perca de tempo.

Nós podemos ajudar uma vizinha que tem o televisor roubado pelo viciado que mora ao lado, mas não podemos evitar que ele volte e a esfaqueie quando sair da gaiola.

Não podemos manter tudo sob controle, não podemos impedir o povo de fazer o que quer.

Uns compram, outros vendem.

Não podemos atrapalhar.

Só ajudar os que precisam.

E ás vezes ajudar os que nos ajudam.

Eu queria poder ajudar todo esse povo.

Queria poder.

Mas acabo perdido pensando que um dia esse esgoto vai transbordar.

E todas as baratas, ratos, tudo que vive da sujeira dessa cidade vai se afogar.

Eu realmente queria poder ajudar esses...

 

— Filhos da puta!

 

Thomas pôs a cabeça para fora da janela e gritou com um grupo de três jovens.

Eu acho, não pude ver muito bem.

 

— Se segura aí, garoto. Jesus não cansa de me mandar presentes nessa noite!

 

— Me segurar em quê, Thomas?!

 

A virada que o carro deu foi brusca o bastante para que minha cabeça batesse contra o vidro lateral.

Num balão de 180 graus nós parecíamos um pião em meio à escuridão daquela noite.

A sirene começou a tocar e o vermelho das luzes reluzia no vermelho do vidro.

Porra, essa merda era meu sangue?

 

— Essa merda é meu sangue?!

 

— Como eu vou saber a diferença do seu sangue para o de outra pessoa, porra?

 

A fumaça dos pneus queimando no chão criou um contraste no asfalto preto.

Enquanto a viatura seguia em direção ao grupo como se Thomas fosse atropelar os moleques.

Provavelmente para depois abusar deles ou roubar sua juventude para viver pra sempre como um vampiro.

Nós paramos quase colados aos garotos enquanto o velhote pula do carro subindo as calças.

Eu não vou mexer um músculo.

Nem um.

 

— Mas que bela merda é essa, hein, Robert?

 

— Qual é? Tá querendo embaçar, coroa?

 

Parece que o Tommy conhece aquele moleque.

Que porra tá acontecendo?

Bom, pelo menos um pouco de diversão hoje à noite.

Quase posso dizer que tem alguns saquinhos de pó dentro do sapato do carinha do meio.

Que porra esse velho tá fazendo?

 

— Eu vou embaçar a merda da sua cara, seu bostinha. Engula a porra dessa língua fedida. Se for falar assim de novo com um oficial da lei ou eu te ponho na cela mais apertada te chutando daqui até lá. Vocês acham que podem por suas calças jeans e correntes e sair por aí como se mandassem nessa cidade toda? Os três, agora, esvaziem os bolsos e tirem os tênis!

 

— Nós não vamos fazer merda nenhuma, seu velho de mer...

 

Para um velho eu juro que ele se moveu rápido pra caralho.

Sua mão direita puxou o cassetete preso em sua cintura com a precisão de um cirurgião.

Talvez com o carinho de um lenhador.

Aquele pedaço de madeira acertou o lado esquerdo do garoto que estava falando com ele.

 

— Ei, Thomas. Vai com calma.

 

Eu tentei chamar a sua atenção, saindo do carro e gritando para ele.

Não acredito que ele estivesse bêbado.

Eu não o vi beber o bastante.

E bom, ele é um velho escroto, mas não acho que aquilo era por serem três garotos negros.

 

— Sabe, Pablo, minha mãe me ensinou algo valioso nesse trabalho. Um negro sozinho está vendendo drogas. Dois ou mais estão querendo roubar, estuprar, matar... A lista é muito grande para esses três aqui, entende?

 

Thomas sacou a Magnum do seu coldre e apontou para os dois que estavam de pé ainda.

Pelo tempo que o tal de Robert estava com a cara no chão ele não iria mais levantar.

Com a arma apontada como se tivesse certeza que iria atirar, Thomas parece se sentir muito bem.

Como se os “Que merda é essa, seu velhote?” e os “Abaixa essa porra de arma” estivessem enchendo seu ego.

 

— Eu acho que você devia abaixar essa arma, cara.

 

Eu não poderia estar mais tenso.

Outros já haviam me falado dessas explosões emotivas, mas por que logo agora?

Logo agora que estou tentando subir na droga da carreira?

Ele podia aproveitar essa arma e atirar na própria cabeça.

 

— E eu acho, como comissário, que você deveria revistar eles dois.

 

A mão esquerda segurando aquela pistola prateada enquanto a direita prendia novamente o cassetete.

Em que mão eu estava? Eu não sei.

Mas tinha que fazer algo para não acabar beijando o asfalto molhado.

Um respirar fundo é tudo que posso fazer antes fechar a porta e obedecer.

 

—Sim, senhor. Os dois, de costas. Cruzem os dedos em cima da cabeça e abram as pernas.

Nenhum deles resistiu.

Sempre cooperam depois que tem um exemplo para seguir.

Para que o “Robert beija chão” está sendo útil hoje à noite.

Minhas mãos fazem o que é de costume, procurar por algo que incrimine.

Evitar pegar no saco de alguém.

Cooperar com o comissário racista...

Mas que porra é essa?

 

— Que porra é essa? Parece que alguém aqui tem inveja do senhor.

 

Com a delicadeza de uma mãe brava eu retiro uma Magnum.40 de dentro das calças de um deles.

Um par de relógios dourados e algumas cédulas presas numa liga.

Que merda, eu odeio ter que admitir que isso fez sentido.

Talvez eu esteja andando de óculos na chuva.

Quanto mais eu ando mais eles se molham e distorcem tudo.

E se eu os tirar, voltamos a estaca zero de cegueira.

 

— Vocês não podem nos levar, a gente nem fez dezoito ainda. O mais velho é o Robert e ele tem dezessete, seus porcos. A gente não responde á lei.

 

— A lei que vocês respondem, seus negrinhos é porra da mãe de vocês. Sabe quantas vezes eu recebo ligações e visitas da porra da mãe de vocês? Sabem quantas vezes?- Eu me afasto, assim como um pedestre vendo os faróis de um carro. Apenas para ver o mesmo cassetete cortar o ar a minha frente e a testa do guri do meu lado. – Quantas vezes eu tenho que dizer que conversei com vocês sendo que nunca troquei uma palavra com vocês na vida? É essa a porra da lei, vocês vão voltar pra merda da casa de vocês, abraçar a mãe de vocês e dizer que nunca, nunca mais na porra da vidinha de ratos de esgoto sarnento miseráveis, sem pudor, sem ordem, sem lei, sem moral, coberta de merda e o que há de pior nesses becos sujos, por culpa de vocês mesmo, nunca mais vão sair e fazer esse tipo de escrotisse novamente, seu filho da puta.

 

Ele não respirou.

Ele nunca respira enquanto elogia tão bem assim.

E agora há dois caras no chão, o Robert e outro.

Eles talvez não estejam respirando também.

Cada palavra era uma ênfase para aquele porrete acariciar o crânio daquele garoto.

Talvez fosse algo bom que o primeiro tenha desmaiado com uma porrada só.

Assim ele não viu a bagunça que ficou no chão depois.

A saliva que voa e molha o bigode branco daquele velho se mistura ao sangue que forma uma poça escura junto a água.

O terceiro guri continuou só olhando.

Seu rosto estava sério, mas suas mãos tremiam como se fosse o próximo.

Não dava pra esconder o medo.

Talvez aquela poça tenha ganhado cores mais quentes.

Tão quentes quanto o meu suor, minhas mãos tremiam tanto quanto as daquele garoto.

Mas mais uma vez meu casaco serviu para mais uma coisa além de guardar os meus remédios.

Porra, meus remédios, minha cabeça dói como se fosse a cabeça...

Não foi pra isso que eu virei policial, foi?

Um comprimido a menos.

Eu não podia estar mais tenso.

 

— E você, seu drogadinho. Leva eles dois pra casa e revisa com eles o acordo. Se não podem ir pra cadeia, eu trago o inferno de lá pra cá.

Ele apenas acenou com a cabeça.

Nós voltamos para o carro tão rápido quanto saímos.

Espero que dessa vez eu consiga me inclinar e dormir um pouco.

Eu não olhei pelo retrovisor.

Eu não acho que o que Thomas tenha feito esteja certo, mas... ele é como um xerife.

Conhece todo mundo e acho que todos conhecem ele.

As mães daqueles garotos estão sofrendo por eles enquanto... enquanto outras crianças sofrem pelas mães.

Acho que não ligo se eles irão ficar bem.

Talvez eu não ligue por que eu prefiro me importar com o barulho do motor.

Sim, cada leve lombada, buraco que passamos, cada movimento é um carinho leve no meu cansaço.

O tapete que afunda um pouco com meus pés e...

Até o regulador do vidro que está frio por causa da chuva encostando em minha pele.

Eu me sinto num casulo de despreocupação.

Eu poderia gritar para o mundo o quanto eu estou cansado...

Eu poderia dizer o quanto quisesse...

Eu poderia dormir por um milhão de mulheres mortas, solitárias, encontradas apodrecendo junto ás algas no fundo de um rio sujo.

 

— Pablo? Que porra é essa, cara?

 

 

— O quê?

 

 

— Sua testa, tá sangrando.

 

 

— Ah...vai parar uma hora outra. Me acorda quando tiver perto, eu realmente preciso...

 

 

Uma freada brusca me fez balançar como um chocalho.

O meu cérebro era o que tinha na ponta.

 

— A gente já chegou, flor do dia.

 

 

 

 


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