Doce permanência escrita por Andy Sousa


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá. Este conto foi originalmente escrito para um concurso aqui de minha cidade. Esta é, na realidade, uma das obras de que mais tenho orgulho, por razões pessoais e porque ela recebeu o segundo lugar na premiação, algo que para mim foi imensamente gratificante.
Boa leitura!



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Dedicado à minha família.

Considerava normal toda aquela estranheza. Quando a vida fora mais fácil de decifrar? Podia quase sensatamente afirmar que nunca. Mas ainda assim teimava em achar que algo estava errado com aquele rosto. Era seu rosto, mas de alguma forma não era mais ela... Estava tão diferente que se espantava ao ver como as pessoas sequer pareciam notar alguma diferença.

Talvez todos houvessem misteriosamente ficado cegos, pensou. Ideia absurda e ridícula. É claro que todos enxergavam muito bem, era ela que via tudo com olhos diferentes...

Deixou de lado o início da sandice e se recompôs aprumando os ombros em frente ao velho espelho. Podia facilmente notar a passagem do tempo apenas olhando para as sombras que se projetavam no pequeno quarto; nenhuma delas estava no mesmo lugar e cada vez mais avançavam cômodo adentro trazendo consigo a presença inegável de mais uma noite.

Decidiu que já havia deixado aquilo se estender por tempo demais. Toda a desconfiança e a dúvida amalgamadas a uma agonia que se tornara presente em sua vida. Perdera a conta de quanto tempo se passara desde que não se sentia mais como ela mesma, era outra pessoa.

Estava cismada com isso quando saiu para o corredor que a levaria de volta à companhia de sua família. Alguns poucos passos pela casa lhe mostraram, porém, que estava sozinha mais uma vez. Havia se esquecido de que naquele dia todos chegavam mais tarde graças aos compromissos. Quando foi que haviam ficado tão responsáveis e solícitos como agora? Até mesmo os mais novos...

Suspirou. E suspirou novamente enquanto se virava para voltar, mas teve sua atenção presa por alguns objetos que pouco notava nas vezes que olhava para as paredes.

Quadros.

Eram imagens antigas em sua maioria, todas de parentes, alguns dos quais ela nem chegara a conhecer pessoalmente. Nunca dera muita bola, mas naquele início de noite solitário sentiu necessidade de ficar perto do conhecido, do aconchegante. Aproximou-se da moldura de que mais gostava, a verde e envelhecida e a retirou com cuidado de onde estava. Levou-a consigo de volta para seu quarto.

Clara se sentou ao tapete e se recostou sobre sua cama sem tirar os olhos um segundo sequer do pequeno quadrado que segurava. Ele ornamentava duas fotografias que haviam sido desajeitadamente colocadas lado a lado. Ela se lembrava claramente da mãe arrumando-as com carinho e, apesar de não ter aprovado o resultado, nada dissera em respeito ao sentimento que havia envolvido aquele momento. Mais de um sentimento, aliás... O amor e a saudade.

Suas avós a olhavam da pequena imagem com timidez e fracos sorrisos. Esta, entretanto era sua única semelhança, ambas eram tão absurdamente diferentes que era curioso que houvessem se tornado família. A família de Clara.

Elvira com sua pele muito branca e de aparência frágil, cabelos da cor da areia e olhos infinitamente azuis era dona de traços fortes, frutos de uma vida difícil ao lado do marido. Já Cecília era de aparência mais branda, pele morena marcada pelo sol e olhos e cabelos de tons distintos de preto. Sua alegria em viver mesmo após os problemas que passara era comovente...

Clara nunca havia pensado de fato no passado. Sempre o tivera como uma memória distante e desgastada, nada que precisasse de verdadeira atenção. Mas isto a fizera até mesmo se esquecer daqueles que um dia amara com tanta ternura. Haveriam eles partido de seu coração?

Pensando pela primeira vez daquela forma notou que viera se sentindo mais sozinha do que nunca, mas não havia percebido que a culpa era sua. Era normal que sua família tivesse que deixá-la em algum momento, ela sabia que era uma consequência da vida, um caminho do qual jamais se escapava. O que a entristecia, porém não era isso. Ela estava triste porque fora ela quem abandonara sua família.

Em um momento silencioso ela trouxe o quadro para mais perto de si e o abraçou fortemente. Queria sentir como se aquelas pessoas tão queridas jamais tivessem partido, apegou-se às lembranças que havia deixado para trás. Os lugares, os instantes, aquele pôr do sol, os sorrisos e até mesmo as lágrimas. Ó meu Deus como pudera se esquecer de tudo aquilo? Como pudera forçar aquela parte de si a ocupar o lugar mais ínfimo em seu corpo?

Com um suspiro enquanto enxugava as poucas lágrimas que havia deixado cair, ela se deu conta de que a dor a fizera isolar aquilo que um dia fora tão belo e presente. Fora mais fácil conviver com a ausência do que com a consciência de que aquelas pessoas já não mais estavam lá.

Mas fora errado esquecê-las e sua maneira de tentar sofrer menos de modo algum funcionara. Ela agora sentia uma saudade tão imensa que era como se a tivesse guardado por anos para se revelar naquela ocasião.

Clara se levantou devagar segurando o pequeno objeto com cuidado, olhou-o mais uma vez por um longo momento admirando as feições nele presentes. Como as amava! Sentiu-se mais leve e repentinamente feliz porque o amor ainda estava presente, sempre estivera. Apenas fora colocado de lado enquanto outras sensações ocupavam seu lugar.

— Me desculpe...

Um só pedido dedicado não somente a elas, mas a todas as pessoas de que se esquecera. Foi feito do fundo do coração!

Uma brisa leve entrou pela janela ainda aberta e sacudiu-lhe levemente os cabelos. Ela olhou a sua volta e seu olhar recaiu sobre o espelho em que estivera se vendo há pouco, caminhou até lá e se sentou à sua frente.

Eram os mesmos cabelos, os mesmos olhos, o mesmo leve sorriso. Como se lembrava de ter visto tantas vezes nos rostos dos que amava.

Sim, era ela. Agora podia reconhecer a si mesma. Nunca mais abandonaria o que era, por mais que encarar a realidade fosse doloroso.

Sentiu a doce permanência da vida aos poucos preenchendo-lhe novamente de alegria a alma...


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Notas finais do capítulo

A você que leu até aqui, meu muito obrigada :)



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