After The Rain escrita por Jan


Capítulo 3
02. Yellow




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02. Yellow

Rachel sentiu quando o chão embaixo de seus pés desapareceu e foi substituído de forma brutal pelo vazio. Seu corpo começou a despencar pela escuridão, pareceu-lhe que seus braços e pernas fossem se distender de seu corpo, e a velocidade da queda era tamanha que não conseguia emitir nenhum som. Era como se tudo dentro dela fosse oco, e ela própria fosse mole, sem órgãos, músculos ou ossos.  

A garota sentiu como se seus olhos fossem se soltar de seu crânio, todavia, conseguiu observar uma terra lamacenta, que se aproximava cada vez mais rápido, abaixo dela, e os fechou para não ver seu corpo sendo esmagado, apenas esperou pelo impacto. 

— Rachel!

Quando despertou, levantou-se exacerbada, respirando com a boca aberta. Parecia que seu corpo tinha ficado horas sem receber oxigênio, como se estivesse se afogando, toda vez que tentava fazer com que o ar invadisse sua caixa torácica, falhava miseravelmente. Era como se estivesse se debatendo entre ondas, cada vez mais altas e perigosas, não conseguindo ficar muito tempo na superfície, sentindo um gosto salgado em sua boca e água nos seus pulmões.

Sentiu um corpo contra o dela, murmurando algo em seu ouvido, quente, forte e confortável, bem diferente do desespero que estava enfrentando, um contraste perfeito para si, que tinha o próprio corpo suando frio. Aos poucos, foi recuperando a respiração, ainda com a boca aberta e os lábios secos, até que finalmente retomou a consciência, percebendo que estava apenas em sua cama no dormitório da faculdade, com Andrew Matters ao seu lado.

O silêncio do quarto foi apenas preenchido pela respiração instável de Rachel. Expira e inspira, expira e inspira. Quando ela finalmente se acalmou nos braços do monitor e parou de tremer, afastou-se dele com cuidado e o observou, curiosa, enquanto sentia algumas gotas de suor escorrendo dos seus cabelos para suas costas.

— O que aconteceu? –Ela conseguiu balbuciar.

Andrew a encarou por uns segundos, piscando, quando finalmente tirou o braço dos ombros da garota e levantou-se apressado da cama. Limpou a garganta antes de responder:

— Parece que você teve um pesadelo. Eu estava tentando te acalmar e fazer com que você percebesse que tudo era apenas um sonho. – Rachel observou que, mesmo com o bronzeado invejável, o garoto estava vermelho das suas bochechas às suas orelhas. – Estava tentando lembrar algumas dicas importantes que eu sabia sobre ataques do pânico, sobre tentar dizer coisas para as pessoas relaxarem e mostrar que estão em um lugar seguro. Como você não teve uma resposta agressiva, achei que não teria problema em te abraçar...  Infelizmente, não é incomum jovens sofrerem com ansiedade.

 A garota tentou absorver tudo que Andrew havia acabado de lhe contar, quando finalmente tinha estabilizado sua respiração e seus batimentos cardíacos, embora ainda estivesse grudenta por causa de todo o suor e ainda sentisse algo salgado em sua boca. Os pesadelos confusos sobre o passado dos semideuses eram muito frequentes, entretanto, já bastava para Rachel não ter mais tantas previsões sobre o futuro e nenhuma profecia a ser dita.

Quando se desligou de seus pensamentos e percebeu que Andrew ainda estava plantado ao lado de sua cama, como se, agora, ele não conseguisse respirar, entendeu que precisava formular uma resposta coerente para que o garoto não ficasse preocupado com sua saúde:

— Foi só um pesadelo, isso acontece às vezes. – Ela sorriu para o seu monitor, mas imaginava que tinha parecido apenas assustada e sombria, conseguia imaginar que seu rosto estava pálido, e seus olhos provavelmente ainda continham um vestígio de medo. – Obrigada pela ajuda, de qualquer jeito. – Rachel esfregou os olhos e bocejou, seu corpo estava dolorido, era como se tivesse corrido uma maratona. – O que veio fazer aqui?

Andrew estava brincando com o zíper do seu casaco, distraído, no entanto, voltou seu olhar à garota quando ela falou.

— O nosso passeio, lembra? À noite, vocês vão ouvir algumas palavras do diretor e, depois, terão uma festa de boas-vindas, então, achei que esse seria um bom horário. E desculpe-me por ter entrado no quarto de forma tão invasiva, mas você não atendia a porta, então... fiquei preocupado.

 Rachel espreguiçou-se, jogando a cabeça para o lado e realizando um alongamento com suas mãos e braços, o que fez com que a sua blusa desbotada de tie-die, que usava como pijama, levanta-se um pouco e deixasse sua barriga em evidência. Para o alívio da garota e de seu corpo cansado, suas costas estralaram, produzindo um barulho característico.

Ela pegou Andrew a observando com uma certa intensidade e não desviou o olhar. Ele não estava mais culpado ou preocupado, era um sentimento diferente, terno e calmo, parecia aliviado. O garoto ergueu a sobrancelha para Rachel, como se estivesse a convidando para um jogo, mas, depois do susto que havia levado, a garota só conseguiu rir, um pouco aliviada de estar bem e viva em Nova Iorque.

—  Tudo bem! Vou tomar um banho e te encontro lá embaixo, pode ser? – perguntou a garota, enquanto levanta-se da cama, grata pelas suas colegas de quarto ainda não terem aparecido.

   Andrew assentiu com a cabeça e abriu a porta do recinto, porém, antes de fecha-la, alertou:

 – Não tente fugir de mim de novo, Elizabeth.

 – Eu vou tentar, mas eu te conheço há apenas um dia e está cada vez mais difícil te suportar.

  Após seu banho relaxante e um pouco demorado, a garota vestiu-se com suas roupas grandes usuais e sua calça jeans rasgada de maneira desajeitada, enquanto tentava pentear os cabelos rebeldes e escovar os dentes ao mesmo tempo. Não queria deixar Andrew esperando por muito tempo, uma vez que ele estava sendo tão legal e paciente com Rachel. Fora as pessoas com quem havia criado laços no Acampamento, não tinha grandes amigos.

Ela nunca tinha sido uma criança muito popular na escola, todos a achavam esquisita nos colégios em que estudou, depois de ter sido possuída e, consequentemente, aceitado o Espírito de Delfos, e ter começado a andar com “figuras estranhas”, então, os rumores de que era louca só aumentaram. Chegou um ponto em que Rachel era tão evitada, que as pessoas não tentavam se aproximar dela nem por causa do dinheiro de seus pais. Ao longo dos anos, acabou criando uma bolha à sua volta para se proteger, por isso, simplesmente congelou quando teve que conversar com os outros universitários, por mais que demonstrasse estar sempre despreocupada. Era bom ter um amigo para variar.

Apenas verificou seu celular para ver se não havia nenhuma mensagem de seus tios, que poderiam ter informado alguma novidade sobre o estado de seu pai, e seu coração se acalentou quando viu que não tinha nenhuma ligação perdida. Por fim, antes de sair do dormitório e descer as escadas do prédio, decidiu levar, além de seu caderno e seus lápis, sua câmera profissional para tirar fotos, afinal, o dia estava ensolarado e parecia fornecer uma ótima luz.

Encontrou Andrew conversando com alguns alunos quando chegou ao pátio, próximos da entrada de seu prédio, e observou como o Sol tornava seu cabelo mais belo e dava à sua pele um ar mais saudável e brilhante. Aproveitando que o garoto riu alto de algo dito, enquanto os demais o acompanhavam, decidiu focar sua câmera e tirar uma foto dele.

— Está gostando tanto da vista que precisa de uma foto para guardar embaixo de seu travesseiro, Elizabeth? – Andrew praticamente gritou, fazendo com que todos os olhares se voltassem para Rachel.

— Não, claro que não! – exclamou, aproximando-se do grupo. – Eu não quero ter pesadelos, os de hoje já foram mais do que suficientes.

 Os amigos de Andrew, que estavam sentados de forma descontraída na escadaria em frente à entrada, riram e cumprimentaram Rachel, dizendo seus cursos e nomes rapidamente, enquanto faziam algumas perguntas sobre a própria garota. Depois das devidas apresentações, os dois novos amigos seguiram a pé e conversando até o Washington Square Park, o destino escolhido fez Rachel duvidar da criatividade de Matters, mas não o contestou.

O caminho era tranquilo e não muito demorado, passando por algumas lojas e restaurantes pequenos, o que fazia com que as ruas não fossem tomadas por turistas. A luz do Sol agradava a pele de Rachel, mesmo que o tempo tivesse ameno, e ela estava começando a apreciar a companhia de seu monitor.

 Andrew lhe contou sobre seus amigos, três do curso de Matemática, que ele dizia que estava longe de ser muito concorrido, e dois com os quais dividia o dormitório, que ele adorava por serem calmos e engraçados, como o próprio. Expôs, também, que nunca tinha sido aceito em nenhuma fraternidade, porque, aparentemente, não fazia o tipo dos “caras” e porque seu college leader era um babaca que o tinha feito ir a uma festa de uma fraternidade com a camisa da sua  rival. Andrew confessou que era capaz de ainda ter as cicatrizes da surra que levou.

 Rachel riu da história, mas se identificou, sabia, melhor do que ninguém, como era ser a novata odiada. Até o pessoal no Acampamento tinha demorado a se acostumar com sua presença, por mais que a garota, com certeza, fosse mais agradável do que um corpo em decomposição.

Ao chegarem no parque, Rachel se encantou com a paisagem, assim como o Central Park, o Washington Square Park era um pedacinho de verde em meio a diversos prédios, lojas, restaurantes e bares. Por mais que a imagem fosse um pouco estranha, como uma pausa na cidade monocromática, como um pingo de tinta verde que, acidentalmente, havia sido derrubado em uma tela em preto e branco; era reconfortante para ela ver que nem todo o verde em Nova Iorque havia sido destruído.

A forma como a luz do Sol atravessava a copa das grandes árvores, o cheiro de grama molhada, as crianças se divertindo em playgrounds e o som de um piano distante fizeram Rachel se sentir mais leve. Ela era apenas uma garota aproveitando um dia de Sol, sem um pai doente e sem um Espírito, queria agradecer a Andrew por essa experiência.   

A garota entendia, agora, porque era tão comum ver grandes empresários fugindo para aquele lugar, era como se estivessem em outro país, em uma terra escondida e mágica, onde podia se permitir alguns minutos de sossego.

Andrew e Rachel caminharam alguns minutos em silêncio, com as mãos se roçando levemente às vezes, no entanto, em nenhum momento a situação se tornou desconfortável. Ela aproveitava para tirar várias fotos, contrastando os prédios altos com as árvores, que pareciam minúsculas se comparadas às construções. E ele aproveitava a situação para observar o sorriso na garota enquanto fotografava, especialmente uma menininha, que sorriu animada com os dentes faltando quando percebeu que era o foco da lente.

Os dois aproveitaram bastante a tarde, riram até conseguirem aquela sensação gostosa e anestesiadora de se ter a barriga doendo e o ar faltando, sem contar com as lágrimas que brotavam dos olhos e os rostos vermelhos. Andrew ganhara 15 dólares em uma espécie de xadrez relâmpago, que ele chamou de “Las Vegas dos Nerds”, e Rachel perdeu 20 quando tentou ganhar de um velhinho, que disse não precisar do dinheiro, mas o garoto insistiu em pagá-lo.

Depois da derrota vergonhosa da garota, agora, se arrependia de não ter prestado atenção às aulas de xadrez do pai, os dois sentaram-se em um banco para tomar um sorvete de massa, com o sabor de várias frutas tropicais que não eram encontradas com grande facilidade nos Estados Unidos. Ambos estavam morrendo de fome, principalmente Rachel, que não tinha colocado nada no estômago até então.

Enquanto comiam, Andrew contou à garota que seus pais eram donos de um comércio em Sidney, que, apesar de não ser grande, estava percorrendo por sua família há anos. Seu pai gostaria que ele continuasse tocando as lojas de roupa, mas o sonho de Andrew era ser professor, resposta que surpreendeu Rachel na mesma hora.

A garota não culpava as pessoas que sentiam ambição, sabia que desejos e objetivos eram importantes para que todos pudessem crescer, ela mesma queria conquistar algumas coisas durante sua vida, como começar a vender suas próprias obras e abrir uma galeria de arte. Porém, ao longo dos anos, especialmente na idade em que se encontrava, viu muitas pessoas desistindo de seus sonhos por causa do dinheiro; por isso, era bom que ver que Andrew estava se aventurando, o garoto poderia ter continuado na Austrália, com um emprego seguro, mas decidiu ir para uma das melhores universidades do mundo para, logo, poder lecionar lá e iniciar sua participação em trabalhos e pesquisas. Transmitir conhecimento era um sonho louvável.

O Sol começava a se pôr, quando era a vez de Rachel falar sobre suas expectativas sobre o futuro. Os amigos aparentavam ser duas crianças, com os beiços sujos de sorvete e os dedos melados, rindo alto e fazendo com que qualquer pessoa que passasse por ali, olhasse para eles com curiosidade.

  – Grafite me encanta e eu gostaria muito que esse tipo de arte fosse menos marginalizada nos Estados Unidos, é uma forma tão única e expressiva de mostrar o que está de errado na sociedade. – Rachel não sabia por quanto tempo estava falando, mas Andrew fazia perguntas e comentários na hora certa, o que fazia a garota acreditar que ele estava prestando atenção. – Tenho muita vontade de fazer um projeto com jovens de bairros mais periféricos, oferecer-lhes uma nova visão e colocar suas obras em um local em que serão vistas e terão sua devida atenção, mas, ao mesmo tempo, tenho medo de tirar a essência de seus trabalhos... Faz algum sentido?

Andrew dá uma risada baixa, aparentemente fascinado.

— Claro! Inclusive, você deveria sugerir esse projeto para a faculdade quando já estiver no seu terceiro ano, eles adoram esse tipo de coisa. Ah, esqueci que você prefere a The Cooper Union...

Rachel respondeu apenas com um soquinho em seu braço, entretanto, rapidamente voltou sua atenção para o céu e pegou o braço de Andrew para ver o horário em seu relógio chamativo.

— Podemos ver o Arco de Washington? – questionou ao garoto, mas já havia se levantado. – Acho que ele junto ao pôr do Sol irá resultar em uma ótima imagem para minhas fotografias.

Andrew concordou, lambendo os dedos melados, enquanto deu uma piscadela para a garota, fazendo com que ela revirasse os olhos. O garoto logo se levantou e começaram sua caminha até o Arco.

Era um fim de tarde perfeito de um dia que, Rachel se arriscava a dizer, havia sido perfeito também. Ela imaginou que Andrew estava deveras acostumado com momentos como aquele, que ia ao parque com os alunos diversas vezes e que isso já deveria ter se tornado tedioso. No entanto, a garota só saía sozinha, eram raras as vezes que tinha companhia, ainda mais uma tão bem-humorada e que emanava alegria como seu monitor.

A última vez que se lembrava de ter sentido aquela sensação gostosa preenchendo seu peito, como se tudo estivesse certo no mundo, havia sido em uma despedida que seus amigos do Acampamento tinham organizado antes dela ir embora para a faculdade, com todos em volta da fogueira, rindo e contando histórias de sua infância como os adolescentes normais que, finalmente, eram.

Os dois amigos estavam sentados nas escadarias perto da fonte, observando o Arco com toda sua majestade e magnificência. Rachel se concentrava nos detalhes cuidadosos da estrutura e como ela conseguia transmitir todos os grandes feitos de George Washington sem dizer uma única palavra, tão poderoso e importante quanto a própria estátua gigante do presidente. Essa era a beleza da arte.

O céu estava colorido em uma mistura curiosa e única de laranja, rosa e azul, que parecia abençoar o Arco de Washington, deixando os prédios atrás de si em segundo plano, como se fossem insignificantes naquele momento. Rachel debruçou-se para perto de Andrew para tirar suas fotos, todavia, ela não se afasto dele quando terminou.


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