O Amor Vai Nos Dilacerar escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 3
Lyanna




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O Amor Vai Nos Dilacerar
Lyanna

 

 Lyanna umedeceu os lábios com a ponta da língua, mesmo que não pretendesse dizer nada. Apertava os dedos tão forte na borda do elmo que pensou que fosse entortá-lo. Ele vai me arrastar de volta. Vai me entregar ao Rei porque desobedeci a suas ordens, e então será o fim. Seria o fim de seu noivado com Robert e da honra da Casa Stark.

 Se tivesse obedecido ao pai e se afastado de problemas e ideias perigosas, não estaria metida naquela bagunça. Mas era tarde demais para arrependimentos. Ela precisava permanecer de queixo erguido, sem transparecer medo, suportando as consequências de seus atos. Os lobos não temem, os lobos enfrentam.

                — Monta melhor que muitos cavaleiros que conheço, senhora — Rhaegar sorriu, abaixando-se para apanhar a espada.

 Não estava sendo irônico, nem tinha dito que ela era tão boa quanto um cavaleiro. Seu tom era sincero, como se falasse com um legítimo companheiro de cavalaria.

 Hesitante, Lyanna relaxou os dedos. Seus olhos se arregalaram minimamente, diante da constatação de que suas habilidades tinham sido reconhecidas – e do fato de ele saber seu nome. O próprio Príncipe Dragão estava a elogiando, um dos melhores cavaleiros dos Sete Reinos, o campeão favorito no torneio; aquilo era mais do que poderia esperar.

                — Obrigada, Vossa Graça — sua voz saiu levemente estremecida.

 Os raios de sol lambiam os cabelos prateados e a pele pálida de Rhaegar, parecendo ser absorvidos pela negritude de sua armadura. Ali, com as maçãs do rosto coradas da perseguição e a expressão exausta pelas justas, Lyanna pensou que era ainda mais belo do que um príncipe tinha direito de ser.

                — Eu a feri? — Ele perguntou subitamente alarmado.

                — N-Não, Vossa Graça, eu estou perfeitamente bem — respondeu ligeira, embora os joelhos estivessem ardendo por baixo das calças de lã.

 O silêncio soprou sobre os dois, deixando-a incomodada. Sabia que uma pergunta havia sido feita, mas não lembrava o que era exatamente. Grilos cantavam em algum lugar por perto, enquanto os pássaros voltavam aos seus ninhos. Lyanna ajeitou os cabelos timidamente, pensando por quanto tempo mais aquilo se estenderia antes que Rhaegar a levasse de volta.

 Dessa vez Brandon não a perdoaria. Ser perseguida a mando do Rei, com certeza, era meter-se em encrenca – especificamente a única coisa que o irmão pedira que não fizesse. Papai vai ficar terrivelmente desapontado quando souber.

                — Então, Lady Lyanna — Rhaegar agachou-se na relva, sentando-se sobre os calcanhares —, vai me contar por que decidiu ser um cavaleiro hoje? E talvez, se não for pedir demais, possa ter a bondade de dizer por que desafiou aqueles cavaleiros.

 Lyanna ponderou sobre sentar-se ou não. Seu instinto de sobrevivência lhe aconselhou a desistir da fuga e responder às perguntas do Príncipe. Pode ser que ele faça vista grossa sobre minha ousadia.

                — Como quiser, Vossa Graça — ajeitou-se sobre as tíbias com a espinha muito ereta, mantendo uma distância segura.

 Então, como se narrasse um dos contos da Velha Ama, discorreu sobre como havia salvado Howland Reed dos escudeiros e todas as artimanhas das quais dispusera para conseguir montar a armadura e subir num cavalo que não era seu. Rhaegar ouviu-a atentamente, dando-lhe confiança o suficiente para suavizar a postura e descrever como se sentira ao derrotar os cavaleiros. Tinha certeza de que os deuses antigos haviam ouvido suas preces e concedido força ao seu braço.

                — Eu poderia vencê-lo também, Vossa Graça, mas estava nervosa demais para me concentrar direito — as palavras jorraram de sua boca com soberba. Então, ela se lembrou de que o homem à sua frente não era um de seus irmãos, ou dos serviçais de Winterfell; era seu soberano, Príncipe Rhaegar Targaryen de Pedra do Dragão. — Peço perdão, Vossa Graça — baixou o rosto, mordendo a parte interna das bochechas.

                — Poderia, senhora — disse Rhaegar, e ela sabia que não eram palavras vazias apenas com o intuito de agradá-la, ou não soar grosseiro. — Podemos justar se for de seu agrado. Gostaria de ver essas suas habilidades impressionantes de perto.

 Lyanna murmurou um agradecimento, sentindo as orelhas queimarem pelo constrangimento. Estava acostumada a ouvir reprimendas quase toda vez que empunhava uma lança ou espada. Ser levada honestamente a sério era algo novo.

                — Por que fugiu da arena?

                — Porque eu não podia revelar meu rosto, meus irmãos ficariam humilhados. Além disso, estou prometida ao Lorde Baratheon — sua voz tornou-se pesada, como se estivesse comunicando seu luto. — Ele não é o tipo de homem que apreciaria uma noiva... selvagem.

 Rhaegar não disse nada por um instante demorado. Lyanna pensou na Princesa Elia, esbelta e bondosa, exalando gentileza mesmo com o olhar apimentado dos dorneses. Talvez o esposo também desgostasse de moças audaciosas.

                — E a senhora não parece o tipo de donzela que dispensa certas selvagerias, ou homens como Robert Baratheon.

 Ela o encarou encantada, como se finalmente alguém tivesse escavado o gelo sob sua pele.

                — Não — aquiesceu, não havia necessidade de atuar naquela situação.

                — Costumo ouvir que os Stark têm sangue de lobo e gelo correndo nas veias — Rhaegar ajeitou-se na relva, esticando as pernas. — Acreditam que há fogo e sangue de dragão nas dos Targaryen. Ambos somos selvagens, mas é mais corajosa do que eu poderia ser, senhora.

 Havia um sorriso nos lábios finos dele. As íris refulgiam como pedras preciosas na claridade que se dissipava. Não parecia com alguém que fosse arrastá-la como uma prisioneira até Harrenhal.

                — Gentileza sua, Vossa Graça - ela o reverenciou com um aceno de cabeça.

                — Se dependesse de mim, e tão somente de mim, eu a sagraria um cavaleiro aqui e agora. Mas temo que nós dois perderíamos a cabeça quando meu pai descobrisse — um riso nervoso escapou dos lábios dele.

                — Prefiro manter minha cabeça sobre o pescoço — Lyanna o acompanhou com uma risada leve.

 O Príncipe a fitou intensamente quando o riso se encerrou. Parecia ver através do metal da armadura, das malhas e da pele. Parecia conhecê-la há tempos, conhecê-la além do rosto agradável e dos modos quase comportados. Mas Lyanna nunca havia sido desvendada daquela maneira, e desviou o olhar para disfarçar o embaraço. O cavaleiro apercebeu-se de seu desconforto, e então rompeu o contato sem jeito.

                — De qualquer forma, seu ato foi heroico, Lady Lyanna — Rhaegar falou calmamente, como se estivesse fazendo muito esforço para juntar as palavras. — Mereceu sua vitória com dignidade.

 O havia começado a se pôr, fazendo as sombras das árvores formarem aglomerados escuros sobre a relva. O bosque ia escurecendo gradativa e silenciosamente. Um dos cavalos relinchou a um ou dois metros de distância, sobressaltando os dois.

                — Suponho que vá me levar de volta a Harrenhal e...

                — E dizer ao meu pai que não encontrei o Cavaleiro da Árvore que Ri — Rhaegar a cortou num tom que não permitia contestações. — Seria bom se eu pudesse levar seu escudo como espólio — ele indicou a peça de madeira com a cabeça.

 Lyanna apanhou o escudo e bateu a terra de sua superfície. Delineou os traços do desenho da árvore-coração com os olhos, pensando no trabalho que tivera para conseguir tintas e pintá-la ali. Entretanto, detalhes como esse eram desimportantes, uma vez que o Rei Aerys provavelmente mandaria queimar seu pequeno tesouro.

                — Precisamos voltar para o castelo antes que a noite caia — Rhaegar colocou-se de pé ao receber o escudo e foi buscar os cavalos.

                — Vossa Graça — Lyanna levantou-se depressa, seguindo-o até seu cavalo manchado. — Eu preciso me trocar — informou, tirando um vestido do alforje.

 Tinha certeza de que seu rosto estava tão vermelho quanto os rubis na armadura do Príncipe, mas fingiu que não se importava. Sob o olhar dele, caminhou até um amontoado de arbustos para se trocar. Demorou tanto no trabalho de abrir as fivelas da armadura e atar as amarras do vestido, que Rhaegar teve de chamar por ela para checar se não tinha fugido.

                — Obrigada por ter esperado, Vossa Graça — Lyanna evitou os olhos púrpuros enquanto montava o cavalo, e sentiu-se ligeiramente tola por ter agradecido.

                — Disponha, senhora — mas ele sorriu, deixando-a um pouco melhor.

 Rhaegar fez gesticulou para que tomassem o caminho para Harrenhal, assumindo um galope contido. O sol escorria rapidamente além do bosque, o que demandava mais cuidado na trilha forrada por raízes e desníveis no solo. O cheiro de terra úmida, cavalos e metal os acompanharam até a Vila de Harren.

 Lyanna tornou-se subitamente consciente do Príncipe cavalgando ao seu lado. A garota dentro dela que ansiava por romance, arrepios na boca do estômago, canções e danças estava em polvorosa. Rhaegar Targaryen parecia ser o companheiro que, involuntariamente, idealizara tantas vezes. Era garboso, gentil e compreensivo, um exímio cavaleiro e um músico habilidoso, além de alto e bonito. Transpirava encanto e aventura assim com ela – e o melhor de tudo, não a censurara por isso.

 Se papai tivesse me dado um noivo assim, eu não estaria com tanto receio de me casar. Mas era um pensamento sujo. Rhaegar tinha esposa e filhos, e ela, Robert Baratheon.

                — Estou tentando imaginar que cara seu noivo faria ao descobrir que o Cavaleiro da Árvore que Ri é a senhora — o Príncipe permitiu-se uma risada rouca.

                — Ele não ficaria feliz.

                — A maioria dos lordes que conheço não ficaria — ele suspirou pesadamente.

                — Com quinze dias de seu nome, os garotos são ditos homens-feitos e sagrados cavaleiros — Lyanna manteve o olhar fixo no caminho à frente. — Porém, as donzelas são colocadas em idade de se casar; ganham noivos e perdem a liberdade. Às vezes eu gostaria de ter nascido homem e poder decidir meu destino, como meus irmãos.

 Rhaegar não teve resposta para aquilo.

 O resto do trajeto se seguiu com uma brevidade reconfortante. Quando as tendas do acampamento se tornaram visíveis, ele se deteve com um olhar sem brio.

                — Vamos nos separar aqui, Lady Lyanna. Se for vistos juntos, a história pode ficar um pouco suspeita. Eu entrarei pelo Portão Leste com o escudo e irei direto ao salão.

                — De acordo, Vossa Graça.

 Rhaegar ajeitou-se na sela para continuar seu caminho, mas ela o deteve. Foi um impulso ingênuo, mas talvez estivesse tudo bem. Lyanna inclinou-se para alcançar o alforje, remexendo os dedos por seus pertences até enlaçar um cordão de couro. Puxou-o para fora, exibindo um pingente de dente de lobo.

                — É um favor para lhe dar sorte nas justas, Vossa Graça — sua voz era tímida e hesitante. — Embora não precise de tanta sorte assim.

 O pingente ficou suspenso no ar por tempo o suficiente para que ela se arrependesse de tê-lo oferecido. No entanto, Rhaegar esticou os dedos para alcançar seu favor, resvalando a pele na sua ternamente. Um arrepio correu por suas veias, arrepiando os pelos de seu braço.

                — Um dente de lobo? — O Príncipe adivinhou, colocando o colar ao redor do pescoço alvo. — Tenho certeza de que me dará força, Lady Lyanna — ele a agradeceu com uma reverência.

 Lyanna sorriu enquanto o observava afastar-se a galope, sentindo-se culpada pela felicidade que invadia os poros de seu corpo. É um pecado, tem de ser um pecado. Mas ela já não estava tão propensa a se censurar – e que os deuses a perdoassem. Depois que o torneio fosse encerrado, ela voltaria para Winterfell e Rhaegar, para Porto Real; dificilmente se veriam de novo. Trocar alguns olhares açucarados e desabafos discretos enquanto tinha a chance não mataria ninguém.

 Foi reconfortada com esse pensamento que ela se sentou entre os irmãos no jantar daquela noite, ignorando as provocações de Benjen sobre seu paradeiro naquela tarde. Sem cheiro de fumaça, Brandon fizera vista grossa mais uma vez. Se soubesse a verdade, provavelmente já teria mandado recolher a tendas sem demora e colocaria a comitiva na Estrada do rei antes do amanhecer. No entanto, Lyanna desconfiava de que ele juntara as peças e descobrira sobre sua aventura, mesmo que não estivesse falando sobre. Além dos Stark e de Howland Reed, ninguém mais parecia ter motivos para desafiar aqueles três cavaleiros especificamente.

                — Você acha que Ned é o Cavaleiro da Árvore que Ri? — Ben perguntou-lhe num sussurro.

                — Como poderia? — Lyanna chiou, erguendo uma sobrancelha. Tentou não parecer ofendida, mas quase não podia suportar a ideia de ter seus créditos surrupiados daquela forma. — A justa de Ned foi a última antes do cavaleiro misterioso aparecer, não? A menos que consiga se dividir em dois, ele não pode ser o Cavaleiro da Árvore que Ri.

                — Ben, eu posso te ouvir — Eddard suspirou do outro lado da mesa, tomando um gole de seu hipocraz. — Além disso, eu estava ao seu lado quando ele apareceu.

                — Oh, é mesmo — as bochechas de Benjen se ruborizaram, enquanto os irmãos riam de sua teoria. — Mas... Bran! Pode ter sido Bran!

                — Você viu o tamanho dele? — Brandon revirou os olhos, divertindo-se. — Não é preciso ser muito esperto para saber que sou maior, irmãozinho.

 Benjen deu um muxoxo enquanto o grupo gargalhava. Lyanna não conseguia se decidir entre ficar frustrada por não ter reconhecimento algum, ou sentir alívio por não terem apostado nela. Mas Rhaegar tinha dito que ela seria um cavaleiro digno, e cavaleiros dignos deveriam se preocupar simplesmente em fazer o bem, e não em louros e glórias.

                — Howland, então! Ele não estava conosco no pavilhão — Benjen declarou como se fosse um palpite muito bom para ser contestado.

 Os irmãos Stark se entreolharam em silêncio e então o esquadrinharam atentamente.

                — Eu tenho o tamanho do cavaleiro, mas não a coragem — Howland ergueu os ombros, sorrindo como se pedisse desculpas.

 Seus olhos encontraram os de Lyanna e ela se sentiu encurralada. Ele sabe. Uma comichão desceu até a base de sua coluna, fazendo-a tremer com o espasmo. Por um instante, temeu que o cranogmano a denunciasse, mas ele lhe ofereceu uma piscadela discreta e moveu os lábios num agradecimento mudo.

                — Howland só está sendo humilde. Não quer nos contar a verdade porque você se sentiria muito patético, Ben — ela cutucou o irmão nas costelas, provocando-lhe cócegas. — Imagine só, todos nós fazendo coisas incríveis aqui e você voltando para casa de mãos abanando.

 Benjen ficou emburrado até que trouxessem as travessas de tortas de maçã e bolos de limão. Lyanna deu uma mordida generosa em seu bolo, deleitando-se com o sabor tranquilamente. Esperava que o assunto do cavaleiro misterioso finalmente tivesse se encerrado - pelo menos na sua mesa -, mas seu sossego não durou.

 Antes que pudesse chegar na metade do doce, um arauto pediu a atenção de todos no salão. Finalmente o Rei Aerys havia decidido participar do jantar, sendo seguido de perto pelo filho, que trazia um escudo. Lyanna reconheceu o seu desenho da árvore-coração e precisou se segurar para não reclamar seu pertence.

                — Infelizmente, não pude alcançar o Cavaleiro da Árvore que Ri - o Príncipe anunciou, colocando o escudo à frente do corpo. — Ele deixou isto pendurado numa árvore e foi tudo o que encontrei.

 Houve um momento para que a notícia fosse absorvida pelos convidados. O Rei não escondia seu desgosto, retorcendo os lábios e o nariz. Mais tarde, Lyanna ouviria o noivo se gabar para Ned que o Cavaleiro da Árvore que Ri teria sido arrastado de volta à arena se ele fosse o perseguidor.

                — Então as justas prosseguirão como se ele nunca tivesse aparecido? — Alguém perguntou sem pedir licença.

                — Não. Os cavaleiros derrotados foram derrotados, suas posições não serão revogadas — o arauto interveio.

 Um burburinho inflamou-se pelo Salão das Cem Lareiras. Outro cavaleiro Frey tentou se impor contra aquela decisão, porém, não recebeu o apoio que esperava. A não ser pelas espadas juramentadas à sua Casa e alguns poucos simpatizantes, ninguém tinha muito apreço pelos filhos das Gêmeas. A exclusão dos três cavaleiros das chaves foi aclamada pelos convidados discretamente.

 O arauto declarou que o jantar deveria continuar, incitando um brinde aos campeões do dia. Os nortenhos se levantaram para saudar Brandon pela vitória na corrida de cavalos. Harwin, o cavalariço de Winterfell, gracejou que o amo era metade cavalo, levantando uma onda de gargalhadas.

 Os músicos voltaram a tocar, fazendo o salão se preencher ao som de O Urso e a Bela Donzela. Lyanna levantou-se para dançar com Howland e os irmãos, espalhando suas saias ornamentadas com flores de pedraria a cada giro. Seu olhar esbarrou com o de Rhaegar uma dúzia de vezes, o suficiente para que seu coração fosse acometido por uma quentura agridoce.

 Os convidados estavam ocupados demais se empanturrando de pernil e vinho, dançando e jogando para prestar atenção em seus flertes. Os cavaleiros da Campina haviam aberto apostas para descobrir o rosto sob o elmo do Cavaleiro da Árvore que Ri, e Lorde Mace Tyrell sugeriu que talvez fosse Jaime Lannister tentando deixar sua marca no torneio sem desrespeitar as ordens do Rei Aerys. Internamente, Lyanna divertiu-se com a suposição, crente de que conseguiria derrotar o Jovem Leão se tivesse a oportunidade.

                — Você parece estar se divertindo com uma piada interna, senhora — disse Ned, quando a recebeu para a última dança.

                — Oh, Ned, é um segredo — ela sorriu, guiando-o pelo salão com desenvoltura.

 Seu segredo permaneceu aceso durante todo o torneio de Harrenhal. Os olhares furtivos se tornaram mais frequentes e recíprocos ao longo dos dias. Bastava virar o rosto e lá estavam as íris lilases de Rhaegar acompanhadas por um sorriso discreto. À noite, após o jantar, se os cavaleiros não reclamassem a companhia do Príncipe para os jogos, ou Lyanna não ficasse presa aos irmãos ou às senhoras do Norte, os dois se encontravam no bosque sagrado. Eram momentos doces e singulares, tão deliciosamente mágicos que quase não pareciam pertencer à realidade.

 Rhaegar lhe ensinou novos golpes de espada e pequenas artimanhas para se vencer um adversário mais alto na luta corpo a corpo. Conversaram sobre música e poesia e sobre os momentos mais divertidos do torneio. Lyanna narrou lendas do Norte e de Para Lá da Muralha, contos sobre alcateias ferozes correndo na Mata de Lobos e episódios corridos no pátio de treinos de Winterfell – em que, invariavelmente, ela saía com vencedora.

 Na última noite, quando ela disse que lamentava não ter podido dançar com Rhaegar no salão, ele a tomou pela mão com um sorriso. Dançaram sobre a grama com passos lentos, sentindo o atrito delicado dos corpos. A única música provinha dos lábios do Príncipe, sussurrada tão suavemente quanto uma prece. Lyanna permitiu-se fechar os olhos e sonhar com coroas e passeios a cavalo, tronos e caçadas na Mata de Rei, lobos e dragões.

 Nada parecia poder atingi-la, nem mesmo a consciência de que só lhe restava mais um dia de sonho. Seu coração permaneceu tranquilo durante a última competição de arco e flecha e também no torneio de cantores. Ela riu e aplaudiu com Benjen e Eddard como se estivesse tudo perfeitamente bem.

                — Acha que Bran vai conseguir vencer o Príncipe Dragão? — Ben lhe perguntou enquanto a liça para a última rodada de justas era montada na arena.

                — Vamos torcer para que sim — Lyanna desconversou, torcendo os lábios ao se sentir dividida.

                — Sor Barristan, o Ousado, foi derrubado pelo Príncipe Rhaegar — Ned observou, cruzando os braços contra o gibão. — Essa vai ser a justa mais difícil de Bran.

                — Brandon é um bom cavaleiro, deve se sair bem — Howland opinou com uma confiança generosa.

 Pouco a pouco, o número de campeões foi diminuindo. Quando chegou a vez de Brandon, Lyanna fez o possível para resistir ao impulso de fechar os olhos. A armadura do irmão levava as cores frias da Casa Stark, com um manto cinza descendo das ombreiras até os quartos traseiros do corcel. Na outra ponta da liça, Rhaegar uma escultura forjada no fogo, trajando vermelho e preto. O peito dela se apertou ao imaginar a ofensiva entre os dois, mas o impacto aconteceu num piscar de olhos. Na segunda volta, tão violenta e rápida quanto a primeira, Bran foi ao chão.

                — Bem, ele tentou — Benjen tinha uma expressão desapontada, como se tivesse perdido um herói.

                — Quem sabe num próximo torneio — Lyanna procurou consolá-lo com um quê de culpa, enquanto vibrava por dentro.

 Sor Arthur, a Espada da Manhã, foi derrubado por Rhaegar na justa seguinte em duas voltas. A plateia se levantou da arquibancada em ondas para aplaudir o vencedor, e Lyanna teve a impressão de que era como se estivesse chovendo na arena. A pele de sua mão chegou a arder, tamanha era a intensidade de suas palmas.

                — O irmão da garota de Ned também não teve muita sorte no final — Benjen sorriu largo.

                — A senhora Ashara não é minha garota — Eddard murmurou, avermelhando as orelhas pelo embaraço.

 O Príncipe galopou pelo perímetro da arena para cumprimentar seus torcedores, exibindo um sorriso afável. Um pajem aproximou-se para lhe entregar uma coroa de rosas azuis, e Lyanna sentiu uma ponta gélida no âmago.

                — Agora, o Príncipe Rhaegar vai coroar a rainha do amor e da beleza! — O arauto anunciou, fazendo os aplausos se intensificarem.

 O ar da arena ainda retumbava com brados ao Príncipe quando o pajem amarrou a coroa à ponta de sua lança. Lyanna observou seu garanhão descrever uma curva na areia e galopar rente ao limite da arquibancada. No estrado, a Princesa Elia começou a se levantar com um sorriso, mas sua graça morreu quando Rhaegar passou direto pela plataforma que sustentava os cadeirões. As palmas começaram a morrer gradativamente, dando lugar a um silêncio sepulcral – como o que reinava nas criptas de Winterfell.

                — O que está acontecendo? — Benjen quis saber, sussurrando.

 Lyanna pensou em responder, mas sua boca tinha secado. Seus olhos se arregalaram quando o coração perdeu o compasso das batidas. A mente ficou em branco por alguns segundos, tempo o bastante para que Rhaegar Targaryen se aproximasse da seção de bancos para os convidados do Norte.

                — Ned? — Ela ouviu Benjen chamar alarmado.

 O garanhão do Príncipe parou de frente para o estandarte da Casa Stark que pendia sobre a amurada da arena, exatamente de frente para Lyanna. A donzela sentiu que todos os olhares estavam voltados para si, especulando e cochichando. De repente, o vestido era muito quente e os cabelos caindo sobre a nuca a incomodavam. Suas mãos suavam frio sobre o colo e o corpo não parecia capaz de se mover.

                — Lyanna da Casa Stark — Rhaegar ergueu a voz e a lança — eu a coroo rainha do amor e da beleza do torneio de Harrenhal.

 Ela estava petrificada.

                — Queira aceitar minha humilde devoção — ele a reverenciou, esticando a lança para que a coroa de rosas azuis de inverno fosse depositada em seu colo.

 Nenhum aplauso, nenhum grito de torcida. O mundo parou por um instante tortuosamente longo.

                — Lyanna — Ned murmurou, tirando-a do transe.

                — E-Eu... Estou honrada, Vossa Graça — curvou o pescoço num movimento mecânico, resvalando os dedos pelas rosas da coroa para se certificar de aquilo era real.

 O Príncipe então fez o cavalo se voltar na direção dos pavilhões, deixando-a embasbacada na mira furiosa das outras senhoras na arquibancada. O arauto puxou um breve coro de aplausos educados, tentando fazer a situação um pouco menos tensa.

                — Ele humilhou a esposa — Lyanna ouviu alguém comentar a alguns bancos atrás.

                — A donzela-lobo não está prometida ao Senhor da Tempestade?

                — O maior problema aqui é o compromisso do Príncipe.

 O estômago dela estava embrulhado num misto de deleite, medo e vergonha, tão amargo quanto fel. Aquilo com certeza deveria contar como arrumar confusão para os parâmetros de Brandon e do pai.

 O resto do torneio passou como um borrão. Os prêmios foram entregues aos campeões, e Lorde Whent e o Rei Aerys agradeceram a presença de todos. Rhaegar permaneceu ao lado da esposa com o semblante muito sério, enquanto a Princesa se mostrava perfeitamente serena. Se Lyanna não estivesse sentindo as pétalas das flores nos dedos, teria pensando que a mente lhe pregara uma peça.

                — Vamos encontrar Bran no pavilhão — Ned ditou assim que o anfitrião deu licença para que os convidados se aprontassem para o banquete de encerramento.

                — Por que o Príncipe coroou a Lyanna em vez da Princesa? — Benjen ergueu as sobrancelhas.

                — Porque... — Lyanna titubeou, mordendo o lábio inferior. Ela mesma gostaria de saber. — Porque, veja bem, ele pode escolher quem quiser.

                — Robert não deve estar nada contente — Ned suspirou.

                — Acha que não devo usá-la no banquete? — Lyanna apontou para a coroa sobre os cabelos.

                — Entre desagradar o Príncipe e desagradar seu noivo, acho que a segunda opção é a mais segura.

 Quando chegaram ao pavilhão, Brandon estava terminando de guardar a armadura numa arca. Eddard e Benjen o parabenizaram pelas justas com tanta empolgação que era como se ele fosse o campeão, e não Rhaegar.

                — Sinto muito — Lyanna sussurrou na sua vez de abraçá-lo.

 O irmão a encarou com as feições retorcidas, recolhendo o cinto da espada e a bainha.

                — Pelo quê? O Príncipe é um adulto, já conta vinte e quatro dias do seu nome, deve saber o que está fazendo — Bran deu de ombros. — Você não fez nada de errado. Mas Robert com certeza está fervendo de ódio agora.

                — Eu sei — murmurou, enquanto tomavam o caminho para fora da arena.

 Fez menção levantar os dedos até a coroa para retirá-la, mas o irmão segurou seu pulso.

                — Você pode usá-la se quiser, Lyanna — ele garantiu.

 Mesmo assim, não parecia certo. Ela esteve ciente do peso suave da coroa sobre os cabelos ao longo de todo o banquete. Imaginava como a Princesa Elia estaria se sentindo e como conseguia transparecer plenitude apesar de tudo. A coroa sobre os cabelos dela, forjada com ouro e folhas de prata, era muito mais bela que a de Lyanna. Além disso, Elia ainda seria uma princesa depois que o torneio terminasse, enquanto seu reinado se findaria ali. Aquilo, provavelmente, era consolo suficiente.

 Já para consolar Robert, Lyanna ceder-lhe todas as danças e também suportar sua presença na mesa dos Stark. Não ousou buscar pelo olhar de Rhaegar uma se quer, ao passo que sua mente trabalhava em juntar peças para compreender o porquê de ter sido coroada rainha do amor e da beleza. Preciso que ele me diga antes de partirmos, ou isso vai me corroer por dentro até chegarmos a Winterfell.

                — Pelo menos são suas flores favoritas, não? — Robert abriu um sorriso forçado por trás da barba crespa. Os olhos azuis estavam furiosos, como no dia em que desafiou o Cavaleiro da Árvore que Ri. — Ned me contou sobre sua paixão pelas rosas azuis de inverno.

                — Sim, pelo menos isso — anuiu à contragosto, segurando-se para não demonstrar seu repulso ao noivo.

 Ela pensou em arranjar uma desculpa qualquer e esperar pelo Príncipe no bosque sagrado. Porém, depois de todo o alvoroço que sua coroação havia causado, era arriscado demais. Os olhos dos outros convidados mal tinham abandonado suas costas, seguindo cada um de seus rodopios no Salão das Cem Lareiras. Esperar por uma oportunidade melhor era o mais prudente a se fazer.

 Teve de aguardar por uma chance até a aurora do dia seguinte. Estava escovando os cabelos quando Sor Arthur Dayne surgiu à entrada de sua tenda.

                — Lady Lyanna?

 Um tanto surpresa, Lyanna levantou-se de seu banco e puxou a aba da tenda para ver a visita.

                — Bom dia, sor — cumprimentou-o flexionando os joelhos. — O que deseja?

                — O Príncipe Rhaegar pede que tenha a gentileza de se juntar a ele no bosque da Vila de Harren — Sor Arthur ofereceu-lhe um sorriso, fazendo a armadura parecer ainda mais branca e radiante.

 Ela abriu e fechou a boca um par de vezes, achando difícil que sua experiência do torneio ficasse ainda mais inacreditável.

                — Será uma honra, sor — respondeu, dotada de toda uma formalidade.

 Sem demora, apanhou a coroa de rosas e o manto de viagem azul-marinho, e caminhou com o cavaleiro até sua égua. Sor Arthur a escoltou até a entrada do bosque, dando-lhe instruções de quais trilhas seguir. Conforme ela penetrava nas passagens por entre árvores e arbustos, deu-se conta de que Rhaegar a esperava no local onde tinha desmascarado o Cavaleiro da Árvore que Ri.

 Lyanna engoliu em seco, sentindo os dedos trêmulos ao redor das rédeas. Fez a égua parar ao alcançar o ponto indicado, lutando para reunir mais fôlego e coragem. Cogitou a possibilidade de dar meia volta e correr de volta ao acampamento. Com sorte, os irmãos não perceberiam sua ausência e perguntas incômodas não seriam levantadas. O Príncipe não poderia ir atrás dela para cobrar explicações sobre a recusa do encontro, seria perigoso para sua reputação. Além disso, Bran planejava levantar o acampamento nortenho o quanto antes para que tomassem a estrada de volta à Winterfell.

                — Senhora?

 Ela se sobressaltou com o chamado repentino, fazendo a égua se agitar.

 Rhaegar estava montado em seu garanhão logo atrás dela.  As mechas dos cabelos prateados dançavam ao sabor da bisa matinal. Havia bolsas escuras sob seus olhos, mas ele parecia perfeitamente desperto.

                — Espero que não esteja tramando uma fuga — a expressão no rosto dele sugeria angústia.

                — De modo algum, Vossa Graça.

                — Fico feliz que tenha aceitado meu convite — Rhaegar desmontou o garanhão, incitando-a a fazer o mesmo.

                — Vossa Graça, meu irmão Brandon espera colocar nossa comitiva na Estrada do Rei após o desjejum — disse com a voz instável. — Não posso me demorar.

                — Oh, eu não vou tomar muito de seu tempo. Aliás, depois que conversarmos, espero que possamos desfrutar de bastante tempo juntos no futuro.

 Os dois caminharam até uma clareira sob uma quietude apreensiva. Lyanna apertava as mãos na frente do vestido, vasculhando a mente atrás de alguma pista que a preparasse para aquela conversa. É sobre a coroa? Sobre o Cavaleiro da Árvore que Ri?

                — Por que você deu a coroa para mim e não para a Princesa? — Saiu de seus lábios antes que pudesse se censurar. — O-O senhor... — corrigiu-se depressa.

 O Príncipe estancou os passos perto do centro da clareira, virando-se para ela. As feições se retorciam com uma sombra de dor e medo.

                — Você, não precisamos mais de tanta formalidade — ele respirou profundamente, expirando o ar de uma vez só.

                — Você — Lyanna repetiu, assegurando-o do novo tratamento.

                — Você não podia competir nas justas para vencer o torneio, então... — ele gesticulou ansiosamente. — Bem, você merecia alguma espécie de prêmio.

 As palavras soaram como música aos seus ouvidos, bombeando seu coração com uma lufada de orgulho e paixão.

                — Fico honrada com a gentileza... Rhaegar. Mas... a Princesa —

                — Elia é uma mulher admirável. Compreendeu a situação quando expliquei os pormenores, e concordou que a coroa deveria ser sua — o Príncipe aproximou-se, fitando-a de maneira penetrante. — Ela também entendeu que... — ele se deteve por alguns segundos, como se as palavras tivessem sido apagadas de sua mente — que eu preciso estar com você.

 Lyanna recuou um passo, sentindo um arrepio agridoce correndo por suas veias. Definitivamente, aquilo era um sonho. Um sonho tremendamente perigoso, com a ameaça de decapitação pairando sobre o ar.

                — Meus pensamentos estão contigo desde o banquete na primeira noite do torneio, Lyanna — Rhaegar correu para tomar suas mãos, visivelmente desesperado para se explicar. — Tentei me livrar deles, oh, céus, como tentei. Mas encontrar uma donzela tão única e corajosa, uma poesia viva... Meu coração simplesmente não pôde suportar.

 O frescor da manhã primaveril desapareceu para Lyanna. Um calor mavioso fez torvelinhos dentro de seu peito. A pele formigava sob o toque de Rhaegar, trazendo-lhe a noção de que era um sonho vívido. A vontade sôfrega de confessar seus sentimentos a fez balbuciar, ganhando nexo e firmeza apenas quando as costas de suas mãos foram acariciadas.

                — Eu me apaixonei por você naquela mesma noite, mas ambos os nossos corações têm compromissos com outras pessoas. Decidi que iria superar esse sentimento assim que o torneio se encerasse, mas você não colaborou com meus planos, e está tornando as coisas ainda mais difíceis agora — sua voz se embargou pelos espasmos do prenúncio do choro. — Nós não podemos ficar juntos! — Ela se desvencilhou, percebendo as primeiras lágrimas que desceram queimando por suas bochechas. — Você é o Príncipe de Westeros e eu sou filha do Protetor do Norte, compromissada ao Senhor da Casa Baratheon. Temos posições importantes demais para nos dar ao luxo de viver uma paixão de amantes.

                — Eu me inspirei em sua coragem para falar com Elia, para vir até aqui hoje, para confessar os segredos do meu coração como um garoto imberbe, mesmo sabendo do peso da coroa que ostento — Rhaegar avançou para ela, encurralando-a entre o tronco nodoso de duas árvores. — Sei que não podemos ficar juntos pela vida toda, não sou tão ingênuo.

                — Então, por que —

                — Só estou pedindo por alguns meses com você, Lyanna — os olhos púrpuros estavam marejados. — Alguns meses em Dorne longe de responsabilidades e dores de cabeça, e depois seguiremos nossos destinos.

                — E o que te faz pensar que nossos destinos ficarão intactos enquanto damos uma pausa? — O nervosismo a engolfava vorazmente. — Nem Robert nem nobre algum vai querer minha pretensão depois que me tacharem de amante do Príncipe, Rhaegar.

                — Eu não sei como as coisas estarão depois disso — ele segurou seu rosto entre as mãos, limpando as lágrimas com os polegares. — Nós podemos fugir de nossas responsabilidades, mas não das consequências que isso acarretará, Lyanna. Há um preço a se pagar por tudo nessa vida.

 Ela soluçou, engasgando-se com o choro.

                — Não precisamos de um plano muito elaborado, ou de temores lampos. Basta um pouco de coragem e fé em nossos sentimentos e ficaremos bem.

 Lyanna segurou-o pelos pulsos, tentando controlar as lágrimas. Os cabelos grudavam no rosto molhado, e ela só podia imaginar a figura penosa que estava transparecendo naquele momento. Seu interior era bagunça, revirando por uma batalha violenta entre medo e bravura, culpa e prazer. Suas pequenas aventuras em Harrenhal haviam tomado proporções gigantescas, que agora amarravam seu coração num impasse pungente.

                — Ah, Rhaegar, eu não —

 Seus lábios foram calados num beijo afoito, que tinha gosto de lágrimas, pecado e paixão. Rhaegar escorregou uma mão pelas por seu vestido de camurça azul até a base de sua coluna. Por sua vez, Lyanna apertou-lhe a frente do gibão de couro negro, tentando acompanhar os encaixes da boca. A coroa escorregou do topo de sua cabeça e ficou presa nos cabelos que desciam por suas costas.

 As coisas que a prendiam evaporaram como se nunca houvessem existido. O mundo e todas as suas preocupações se resumiram em Rhaegar, no beijo que partilhavam calidamente. Era o seu primeiro de toda a vida, mas o Príncipe fazia parecer que os lábios de ambos se conheciam desde sempre.

 Foi assim que Lyanna soube que necessitava daqueles meses que Rhaegar lhe oferecia. Tê-lo por algum tempo ainda era melhor do que nunca. Poderia lidar com os planos que o pai tinha para ela, com Robert Baratheon e as prováveis ruínas de sua reputação depois, quando Elia recebesse o marido de volta.

 Esse pensamento lhe deu força o suficiente para encarar a súbita mudança de rumo em sua vida. Quando deixaram o bosque da Vila de Harren e encontraram Sor Arthur, o cavaleiro a acompanhou de volta à sua tenda para reunir seus pertences. Não havia tempo para se despedir dos irmãos, precisava partir com a comitiva do Príncipe enquanto o torpor do vinho do último banquete ainda enevoava os sentidos dos outros convidados.

                — A senhora ficará bem, Lady Lyanna — Sor Oswell Whent intentou reconfortá-la quando a comitiva assumiu sua formação no Olho de Deus.

 Porém, o peso dentro de Lyanna fazia seu coração afundar como uma âncora. Só conseguiu um gole de alívio quando Rhaegar emparelhou o cavalo com sua égua já na Estrada do Rei.

                — Vai gostar de Dorne e da Torre da Alegria, milady — ele garantiu com um sorriso doce e amoroso. — Suas amadas rosas azuis de inverno não crescem lá, mas encontrará outras belezas.

                — Se estivermos juntos, tenho certeza de que tudo ficará bem, milorde — devolveu o sorriso, sentindo o coração se derreter.

 Harrenhal tinha ficado para trás, junto com o Rei Aerys, a Princesa Elia, Robert e seus irmãos. Lyanna se perguntou quando veria a família novamente; se voltaria a cavalgar com Bran, dançar com Ned, treinar golpes de espada com Ben e colher rosas com o pai. Mas sua decisão fora tomada e os arrependimentos não conseguiriam um espaço tão cedo. Pensar em coisas que estavam ficando distantes não ajudaria em nada.

 No entanto, meses depois, quando Robert, furioso pela audácia de Rhaegar, levantou aliados numa rebelião ao Trono, as consequências de sua fuga apaixonada fizeram Westeros sangrar. Rhaegar teve de responder ao chamado do pai em Porto Real, deixando-a grávida sob a guarda de Sor Arthur, Sor Oswell, Sor Gerold Hightower e algumas criadas na Torre da Alegria. Então ela compreendeu que o sonho chegava ao fim.

 Dias depois, Ned, seu irmão amado, venceu os guardas reais e a encontrou no topo da torre, num leito que exalava o perfume de sangue e rosas. As lágrimas brotaram de seus olhos escuros num reflexo, enquanto os braços apertavam o fruto de seu amor por Rhaegar. Num baque insuportável, Lyanna soube que seu Príncipe Prateado estava morto. Porém, garantir a sobrevivência do filho era mais importante do que sofrer o luto.

 Ela entregou o filho recém-nascido a Ned, sucumbindo à febre. Não tinha forças para pedir desculpas, perguntar pelo pai e pelos irmãos, ou dizer o quanto o amava. Pôde apenas rogar ao irmão para que cuidasse do bebê como a um filho, provendo-lhe amor.

                — Prometa-me, Ned — foram suas derradeiras palavras.

 Então, como um sonho que se esvai, sua visão se escureceu e o corpo tornou-se pesado. Lobos corriam sob as asas de dragões em sua mente ao som da canção triste que atraíra seus olhos à Rhaegar naquela primeira noite em Harrenhal. Um sorriso doloroso bailou em seus lábios, enquanto sua alma se desprendia para encontrar o amado onde quer que ele estivesse.

 O amor deles continuou soando por anos, como uma bela canção consumida entre gelo e fogo.


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Notas finais do capítulo

Querida amiga secreta, espero que você tenha gostado do seu presente. Foi feito com muito carinho (e uma dose de desespero). ♥

Se você chegou até aqui, seria muito legal me deixar um review dizendo o que achou da fic. ^^

Obrigada pela leitura!



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