O Amor Vai Nos Dilacerar escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 1
Lyanna


Notas iniciais do capítulo

Querida amiga secreta, espero que o presente esteja do seu agrado. ♥
Tinha tantos shipps legais na sua tabela que eu quase não soube qual escolher. Alguns detalhezinhos podem não corresponder às suas preferências, mas, se tratando desse shipp, eu não tive saída. So sorry~

Para os demais leitores, espero que se divirtam por aqui. ♥

Boa leitura!



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O Amor Vai Nos Dilacerar
Lyanna

 

 Não foi preciso uma segunda olhada para que Lyanna entendesse o que estava acontecendo. Reconhecera o garoto que Brandon apontara como Howland Reed, mas não sabia quem eram os escudeiros que o cercavam. O que importava era que o Reed estava sendo jogado para o chão, à mercê de risadas maldosas e palavras ásperas. Um dos garotos o cutucou nas costelas com o bico da bota, desferindo um chute em seguida.

                — Meu pai disse que os cranogmanos são fracos e covardes — ele troçou com os amigos. — Este aqui não o deixa mentir.

 Lyanna cerrou os punhos com força e tentou respirar fundo. As recomendações do pai não paravam de rodopiar em sua mente, pesando em sua consciência antes mesmo que tomasse alguma atitude. Você foi prometida em casamento. Precisa se portar mais como uma dama e menos como uma loba selvagem pela honra de sua Casa, lembrou-se, travando o maxilar.

 Desde que sua mão fora prometida a Robert Baratheon, ela vinha tentando não ser tão impulsiva – mesmo que o senhor seu noivo não merecesse tamanho esforço. Porém, depois de se deparar com aquela situação, era praticamente impossível que se contivesse. Não podia se conter. Sua honra como Stark uivava muito mais alto do que as regras de etiqueta para moças bem-nascidas.

 Sabia que o pai a perdoaria. Talvez Lorde Rickard nem sequer precisasse tomar conhecimento daquilo.

 Decidida, Lyanna correu os olhos pelo amontoado de arcas e caixotes da tenda ao seu lado. Agarrou uma espada de torneio e avaliou o peso nas mãos. Os escudeiros não deveriam ter mais de quinze anos e ela julgava que só precisavam de um bom susto.

                — Vejam, ele nem ao menos tenta se defender — um dos garotos gargalhou, empurrando Howland com o pé. — Acho que devemos dar-lhe uma boa surra para mostrar como os papa-rãs são desprezíveis.

                — Esse que chutam é vassalo de meu pai! — Lyanna uivou, avançando para eles com a espada em punho.

 Os olhos dos garotos quase saltaram das órbitas. Um deles abandonou Howland e voltou-se para ela com o peito estufado. Lyanna o atingiu no ombro com o lado da espada sem hesitar.

                — Ora, sua... — ele fez menção de enfrentá-la, mas os amigos o seguraram.

                — É uma senhora — disse um deles, puxando-o para trás.

                — É uma Stark — o outro apontou para o broche no manto de Lyanna.

 O escudeiro valente comprimiu os lábios, de repente desvestido de sua arrogância. Sem demora, o trio se dispersou entre as tendas do acampamento, sumindo de vista.

 Lyanna saboreou o momento ainda estupefata de que havia conseguido afugentá-los. Mal podia esperar para narrar seu heroísmo aos irmãos. Benjen com certeza ficaria invejado, mas Brandon e Eddard a advertiriam sobre os modos.

                — Você está bem? — Ela largou a espada no chão e ajeitou as saias do vestido para abaixar-se ao lado do Reed. — Acha que consegue se levantar?

 Howland protegia a cabeça com os braços, tremendo levemente. As roupas tinham se rasgado em alguns pontos e havia arranhões em seus cotovelos. Lembrava Benjen na época em que mal sabia segurar uma espada.

                — Estou bem — devagar, ele descobriu o rosto e se sentou com um gemido de dor. Quando seus olhos encontraram os de Lyanna, as bochechas ficaram tão vermelhas quanto o sangue que escorria de sua testa. — S-Senhora Lyanna!

 O garoto colocou-se de pé desajeitadamente para lhe prestar uma reverência. Ela levantou-se também, abafando um riso com o dorso da mão.

                — Peço perdão, senhora — a voz de Howland era um murmúrio tímido. — Como vassalo, eu é que deveria lhe proteger. Mas não fui capaz de defender a mim mesmo.

                — O senhor meu pai costuma dizer que nossos vassalos são nossos amigos — Lyanna pousou a mão em seu ombro —, e os Stark protegem os amigos.

 Howland abriu um sorriso sem jeito, não ousando fitá-la diretamente nos olhos. Era menor e mais fraco do que ela, mesmo que fosse quase um homem-feito; seu embaraço era perfeitamente compreensível.

                — Por que não me acompanha até as tendas da minha família? Posso limpar seus machucados — Lyanna apanhou a espada do chão e fez sinal para que ele a seguisse.

 Quando as tendas sob o estandarte com o lobo gigante cinza dos Stark entraram em seu campo de visão, ela engoliu em seco. Brandon estava lá com os braços cruzados e as sobrancelhas arqueadas. Ao lado dele, Benjen sorriu matreiro assim que pôs os olhos em Howland.

                — Eu não disse que ela iria arrumar confusão? Ned me deve uma moeda e prata!

                — Não arrumei confusão alguma! — Lyanna abandonou seu convidado e partiu para cima do irmão mais novo.

                — Lyanna, você prometeu que iria se comportar — Brandon colocou um braço entre os dois, livrando Benjen de um cascudo.

                — Mas eu acabei com a confusão — ela protestou. — Pergunte ao Howland.

 Os irmãos voltaram-se para o cranogmano, que mantinha os olhos no chão.

                — Howland? — Benjen franziu o cenho.

 Lyanna trouxe o convidado até eles pela mão e o fez entrar na tenda de Ned. Os baús estavam perfeitamente empilhados e a armadura para o torneio já havia sido separada. Quase se sentiu envergonhada ao pensar no quanto sua tenda parecia um chiqueiro se comparada com a do irmão.

                — Bran, Ben, este é Howland Reed — ela abriu um sorriso animado, enquanto fazia o garoto se sentar sobre um caixote. Ned apareceu no instante seguinte, olhando para os irmãos com um ar confuso. — Oh, Ned, este é Howland Reed.

                — Sabemos quem ele é, Lyanna — Bran aproximou-se dos dois. — Por favor, não me diga que os machucados dele são obra sua. Eu dei minha palavra ao senhor nosso pai de que você se comportaria.

                — Já disse que não arrumei confusão — Lyanna bufou.

                — E como arranjou essa espada? — O irmão indicou a arma em sua mão com o queixo.

                — A senhora Lyanna me ajudou — Howland levantou-se para intervir. O silêncio na tenda veio de imediato e sua voz baixou um tom. — Fui molestado por alguns escudeiros e ela me defendeu. Envergonha-me admitir, mas essa é a verdade, senhores.

 Bran estava com a mão esticada para a espada, mas recuou ao ouvir aquilo. Lyanna sorriu orgulhosamente, fazendo um floreio com o manto creme.

                — Bom, se foi isso que aconteceu, você fez por merecer a espada — o irmão afagou o topo de sua cabeça carinhosamente com uma piscadela.

 Parte dela já esperava que ele relevasse sua desobediência. Apesar de ser o mais velho dos herdeiros de Winterfell e precisar se portar como um adulto, Bran sempre se mostrara um verdadeiro arrumador de problemas. A única diferença entre os dois – além do óbvio fato de que ele podia portar uma espada sem receber olhares tortos – era o discernimento para saber quando se dobrar e quando deixar ferver o sangue de lobo nas veias.

 Lyanna custava a se dobrar, mas estava aprendendo que nem tudo poderia ser resolvido segundo suas vontades. O casamento com Robert era um belo e lamentável exemplo. Se ao menos o pai tivesse permitido que defendesse sua própria mão por duelo...

                — Agora tenho que cuidar dos ferimentos de Howland — ela se forçou a sair de seus devaneios.

 Ben trouxe uma bacia com água e Ned, o pequeno baú de remédios que Meistre Luwin havia preparado para eles. Lyanna limpou os braços de Howland e enfaixou os machucados em linho. Para o pequeno corte na testa, usou uma pasta de ervas e recomendou que o garoto não se esquecesse de lavar bem o local.

 Assim que terminou, um servo de Harrenhal surgiu na entrada da tenda. Ele informou que o banquete para a abertura do torneio começaria ao cair da noite, e que Lorde Walter Whent fazia questão da presença dos Stark. Bran lhe cochichou algo e Lyanna percebeu, pelo canto do olho, o momento em que duas moedas deslizaram para sua mão.

                — É hora de nos aprontarmos para o banquete — o irmão esfregou as palmas das mãos uma na outra, sorrindo ardilosamente. Aproximou-se dela e se inclinou para sussurrar em seu ouvido: — ficará feliz em saber que Robert Baratheon não se sentará conosco.

                — Estão de segredinho agora? — Ben emburrou-se com eles.

                — Talvez, quando você for mais velho e menos irritante, poderemos compartilhar segredos com você — Lyanna mostrou-lhe a língua.

 Howland levantou-se dos caixotes, apertando a barra da camisa de malha. Timidamente, caminhou até a saída da tenda e fez uma mesura aos irmãos.

                — Agradeço por ter terem me acolhido, meus senhores. Devo deixá-los agora e voltar para meu lugar com os cavaleiros comuns da comitiva.

 Lyanna estreitou os olhos para ele.

                — Ora, mas você vai ao banquete conosco.

                — Senhora, eu não —

                — É de nascimento elevado — ela o interrompeu, cruzando os braços. Assumiu um olhar inflexível e determinado, o mesmo que os lobos da Mata de Lobos no Norte ostentavam. — Tem tanto direito de estar no banquete quanto qualquer convidado bem-nascido. Vai sentar e comer conosco.

 O pequeno Reed titubeou. Parecia cada vez mais envergonhado pela situação em que se encontrava.

                — Sabe — Brandon passou um braço pelos ombros do garoto com um sorriso amigável —, minha irmã não aceita um “não” como resposta.

 Ned concordou com leve menear de cabeça.

                — Eu posso lhe emprestar vestes adequadas — Ben ofereceu de prontidão.

 Howland fez menção de falar algo, mas Lyanna foi mais rápida. Fechando o baú de remédios, ela ajeitou o manto nos ombros e adiantou-se para fora da tenda.

                — Então está decidido, Reed — sorriu, encorajando-o a fazer o mesmo. — Recusar nosso convite será uma desfeita terrível.

 Mas não houve desfeita alguma no final das contas.

 Depois de meia volta de ampulheta, Lyanna encontrou Howland Reed devidamente vestido com seus irmãos do lado de fora de sua tenda. Bran, Ned e Benjen vestiam belos gibões com o lobo gigante dos Stark bordado no peito e calções de couro. O vassalo tinha conseguido um novo colete de couro fervido com rebites de ferro, e se não fosse pela linha vermelha em sua testa, não se pareceria em nada com o garoto surrado de minutos atrás.

 Tomaram suas montarias com o cavalariço e partiram para o Portão Principal de Harrenhal num trote sossegado. Os muros do castelo eram tão grossos quanto Lyanna imaginou que seriam. Uma dúzia ou mais de seteiras ladeava o corredor da entrada até o pátio do outro lado. Talvez, se não estivesse na companhia dos irmãos e não soubesse que aquela era uma ocasião pacífica, teria sentido medo ao penetrar naquele lugar assombrado.

                — Senhora — Brandon lhe ofereceu o braço com um sorriso convencido ao descerem dos cavalos.

 Na breve caminhada até o Salão das Cem Lareiras, o irmão fez um gracejo sobre encontrarem uma dama para Eddard desposar. Lyanna riu com ternura, pensando em que tipo de mulher o agradaria. Julgava que alguém de beleza simples e modos afáveis, que pudesse lhe dar filhos seria o bastante.

 O sorriso murchou em seus lábios com amargura. O senhor seu noivo a via exatamente assim e esperava que fosse bela, doce e amável quando estivessem casados. Era claro que ele não podia enxergar o ferro sob sua pele e sua natureza selvagem. O pensamento a fez se sentir sufocada o suficiente para ponderar sobre voltar para a tenda.

 Porém, aquela não era uma opção. Fugir para o acampamento depois de já ter avançado até ali seria no mínimo desonroso.

                — Meistre Luwin disse que esse salão é capaz de abrigar uma frota inteira — Benjen sussurrou para ela.

 Não havia dúvidas naquilo. O Salão das Cem Lareiras deveria ter pelo menos o dobro do Grande Salão de Winterfell – embora Lyanna duvidasse que possuísse mais de trinta lareiras. O piso era de ardósia polida, mais confortável do que as pedras do pátio. Havia degraus para dois lances de galerias acima, num dos quais músicos entretinham os convidados com melodias instrumentais. Ao fundo, o estrado abrigava a mesa para os Whent e a família real, guarnecida pelos cavaleiros da Guarda Real. A parede atrás deles tinha sido decorada com as bandeiras das Casas convidadas. A maior delas exibia o dragão de três cabeças sobre fundo negro dos Targaryen, depois vinham os brasões das Casas principais – o lobo cinza gigante sobre fundo branco pareceu ligeiramente imponente para ela.

 O mesmo servo do acampamento os guiou até uma longa mesa já tomada pelos vassalos de Lorde Rickard. Os irmãos Stark foram recebidos com brindes de canecas de cerveja e pequenas mesuras. O peito de Lyanna encheu-se da sensação quente de se ter um pedaço do Norte mesmo ali nas Terras Fluviais. Ela se sentou entre Brandon e Benjen, de frente para Ned e Howland e recebeu logo uma taça de hipocraz das mãos de um serviçal.

 Quando a maioria das mesas já estava ocupada, dois criados de pé no estrado de honra pediram silêncio. Entre eles, Sor Gerold Hightower deu um passo à frente em seu manto branco da Guarda Real. A música cessou e as conversas no salão foram minguando até se tornarem burburinhos. O som dos bancos sendo arrastados enquanto os convidados se colocavam de pé preencheu as paredes de pedra numa sinfonia arranhada.

                — Aerys Targaryen, o Segundo do Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território — o Senhor Comandante da Guarda Real voltou-se para o Rei sentado no cadeirão do senhorio e se curvou.

 O salão todo reverenciou o Rei Aerys e levantou suas taças a ele. Depois de ter fantasiado tanto sobre aquele momento, Lyanna o achou uma coisa ligeiramente decepcionante. Esperava que o Rei de Westeros fosse um homem robusto com uma aura inegável de poder. No entanto, o soberano tinha unhas e cabelos compridos e braços muito magros. Seus lábios finos abriram-se em um sorriso soberbo quando se pôs de pé para receber o clamor dos súditos.

 Enquanto ele discursava – agradecendo a hospitalidade e elogiando a filha de Lorde Whent, que recebia as honras do torneio –, Lyanna pôs-se a observar os outros membros da mesa. Seus olhos foram capturados pelo homem com gibão de veludo negro sentado ao lado do Rei. Tinha as madeixas longas e prateadas dos Targaryen, sobre as quais trazia uma coroa. Mesmo àquela distância, ela soube que era o Príncipe Dragão, tão formoso quanto as criadas que a tinham servido pela manhã disseram que seria.

                — Não olhe agora, mas seu noivo não para de nos encarar — Brandon sussurrou num tom de voz que sugeria que estava achando graça na situação.

 Ela buscou Robert pelas mesas da fileira em frente a deles com discrição. O encontrou com os irmãos a vários bancos de distância com uma cara amarrada. Parte dela ficou aliviada em saber que as moedas de Bran valeram a pena, mas a outra – aquela que entendia que era chegada a hora de ser mais donzela do que loba – sabia que deveria estar se esforçando para aceitar a ideia de se tornar uma Baratheon por casamento.

 O Rei terminou seu discurso agradecendo ao Lorde Whent pela cortesia de ceder seu castelo. As portas laterais se abriram e criados escorreram pelo salão com travessas de pato e cordeiro assado ao molho de laranja com batatas. Os músicos voltaram a se fazer ouvir, tocando as primeiras notas de Belas Donzelas do Verão. O ar era uma profusão de cheiros doces e quentes e gargalhadas, tal como a garota em Lyanna que ansiava por festas e danças havia imaginado.

 Ela estava rasgando um pão quando o olhar esbarrou numa camisa de linho com um porco-espinho no peito. Observou o rapaz que a vestia se sentar entre um com o desenho das torres gêmeas dos Frey no sobretudo e outro com o brasão de uma forquilha nas costas. Reconheceu neles os agressores de Howland, e migalhas voaram para fora de sua boca na pressa de falar.

                — Bran, veja — indicou os garotos imberbes com o queixo.

 Ben, Ned e Howland também torceram os pescoços para ver o que ela mostrava.

                — Foram eles que bateram em Howland.

                — São rapazes verdes ainda — Bran avaliou. — Quer ajuda para dar um troco neles, Reed?

                — Não é uma boa ideia levantar desavenças assim — Eddard suspirou. Entre os irmãos, era o mais tranquilo, o lobo silencioso. — Nosso pai não aprovaria.

                — Ora, Ned, é só um pequeno acerto de contas. Uma vaga ameaça será o bastante — Bran tocou o braço de uma serva para receber mais uma dose de vinho.

                — O porco-espinho na capa do garoto mostra que ele pertence aos Blount, vassalos dos Frey, que por sua vez são vassalos da Casa de sua noiva — Ned lembrou-o com os olhos cinzentos mais sérios do que sua idade permitia.

                — Às vezes você me parece tão velho quando a Velha Ama, irmão — Bran riu-se, sorvendo um gole de sua taça.

                — Eu poderia lhe emprestar minha armadura, Howland — Benjen inclinou-se para o vassalo, animado com a perspectiva de ajudar na vingança.

 Ned desistiu de argumentar contra aquilo, ocupando-se a carne em seu prato.

                — Agradeço a oferta — o Reed limpou a boca com o dorso da mão depressa. — Mas eu não teria como vencê-los. Não sou um cavaleiro, nenhum cranogmano o é.

 Lyanna lhe deu um sorriso compassivo, compreendendo que o garoto ainda precisava vencer a si mesmo antes de enfrentar alguém. Ben soltou um muxoxo e Bran deu de ombros, mas o alívio nos olhos de Eddard era quase palpável.

                — Nós entendemos, Howland — ela garantiu, arrancando um pedaço do pão.

 Depois que os doces foram servidos, os músicos se puseram a tocar músicas de baile e as senhoras foram tiradas para dançar. Lyanna engoliu em seco ao se dar conta de que o banquete avançara até ali e, a qualquer momento, Robert poderia estar bem ao seu lado, pedindo uma dança com seu olhar trôpego. Colocou-se em alerta, procurando pelo rapaz por entre as mesas do salão.

 Porém, descobriu que não precisaria se preocupar tão cedo com isso. Robert estava particularmente entretido numa batalha de copos de vinho com Richard Lonmouth. Ela encontrou um pouco de paz para apreciar os vestidos e os gibões de gala rodopiando pelo Salão das Cem Lareiras. Ansiava por absorver cada pequeno detalhe, uma vez que banquetes tão vivos como aquele eram raridade no Norte.

                — Ned, sua favorita está aqui — Bran sorriu malicioso, apontando para uma bela garota que dançava com um membro da Guarda Real.

                — Sor Barristan Selmy já está em posse dessa dança — Ned baixou a cabeça timidamente, deixando que os cabelos escondessem seu rosto.

                — Mas o que te impede de pedir a próxima?

 Ned não retrucou e a senhora dançou ainda com mais dois cavaleiros – um deles, Lyanna reconheceu como sendo Jon Connington. A canção da vez estava chegando ao fim quando Bran se pôs de pé no mesmo momento em que Sor Barristan voltava para a garota. Lyanna distraiu-se de sua vigilância para ver o irmão caminhar até o meio do baile e fazer uma mesura a ela. Tinha longos cabelos negros e olhos sorridentes que eram como ametistas, ressaltados por seu vestido lilás que ganhava ondas azuladas à luz das arandelas. Bran apontou na direção de Ned e a garota riu-se suavemente.

                — Eles estão vindo para cá — Lyanna murmurou para o irmão com um sorriso travesso nos lábios. — Talvez você queira levantar o rosto e parecer mais seguro de si.

                — Eddard, esta é Lady Ashara Dayne — Brandon pousou a mão em seu ombro e gesticulou para a moça. — Por que não a convida para uma dança?

 Lyanna esforçou-se para não rir do embaraço do irmão ao se levantar e tomar a mão de Ashara com os dedos trêmulos. Ned não levava jeito para cortejar as senhoras, e estava sempre sendo colocado em situações como aquela pelos amigos.

                — Oh, como é cruel, irmão — Lyanna gracejou quando Bran ocupou o lugar ao lado de Howland.

 Entretanto, seu bom-humor não durou por muito tempo. Vindo de lugar nenhum, Robert apareceu atrás dela com um sorriso que pretendia ser galanteador – mas exalava o cheiro forte do álcool. Trajava uma veste verde com brocados de ouro e trazia o veado dos Baratheon na fivela do cinto.

                — Está graciosa como sempre, minha senhora — ele aproximou os lábios de sua mão e os pelos ásperos da barba arranharam os nós de seus dedos. — Daria a honra de dançar comigo?

 A garganta dela se fechou e lhe pareceu que nem mesmo o doce hipocraz conseguiria descer por ali. Desejou que pudesse repeli-lo como sempre fizera com os nobres que visitavam Winterfell, mas não havia remédio. Bran a tocou com a bota por baixo da mesa, perguntando, mesmo que sem palavras, se precisava de ajuda. Lyanna se espantou consigo mesma quando conseguiu se levantar do banco e ignorá-lo. Com um sorriso neutro, deu a mão a Robert e deixou que ele fizesse suas longas saias de samito azul gelo farfalharem pelo salão.

 Os passos de Robert eram ora arrastados, ora rápidos demais. Não tinha metade do garbo de Brandon, mas mantinha um sorriso presunçoso no rosto. Lyanna julgou que ele gostasse da ideia de atrair olhares enquanto a amassava contra a mancha escura de vinho na frente de sua veste. Entre um giro e outro, acabaram emparelhados com Ned e Ashara Dayne. O irmão sorriu para ela, encorajando-a silenciosamente a aguentar mais algumas danças.

                — Move-se tão elegantemente quanto uma corça, senhora — Robert alisou as costas de seu corpete com os dedos grossos.

 E você tem o donaire de um javali, meu senhor. Ela sorriu da maneira mais doce que seu espírito teimoso e selvagem permitiu. O rapaz a imitou, sem indício algum de que tivesse reparado no desgosto que provocava.

                — É uma joia adorável — Robert indicou o medalhão do lobo dos Stark em seu colo. — Mas tenho certeza de que ficará ainda mais bela com as armas de minha Casa depois que nos casarmos.

 Lyanna não respondeu. Estava ocupada rezando para que a canção terminasse logo e os pares fossem trocados, mas o noivo a monopolizou por várias danças. Em algum momento, Brandon se compadeceu dela e surgiu ao seu lado para reclamar-lhe a companhia.

 Robert soltou-se de seu corpo contrariado, torcendo o nariz e a passando para o irmão. Os ombros tensos de Lyanna relaxaram ao sentir as mãos de Bran, protetoras e quentes.

                 — Eu juro que estou tentando tentar — suspirou, recostando-se ao peito dele. Desejava que ainda fossem crianças em Winterfell, correndo pelo bosque sagrado e brincando nas ruínas da Torre Queimada. As coisas então eram mais fáceis e Robert Baratheon, apenas um amigo de seu irmão. — Ned me garantiu que ele irá mudar depois que tivermos proferido nossos votos, e que vou encontrar muitas coisas para gostar em sua personalidade. Mas algo me diz que a única mudança será a perda da minha liberdade.

                — Se começar a se preocupar com isso agora, sofrerá duas vezes, Lyanna — Bran assumiu um tom mais maduro.

                — Para você é fácil falar — ela deu um muxoxo. — Está prometido a Catelyn Tully, bonita, delicada e agradável. Quando desposá-la, continuará morando em Winterfell, visitando nosso bosque sagrado e rezando em frente ao represeiro para os deuses antigos, cavalgando pela Mata de Lobos... — Parou de mover-se e obrigou Bran a fazer o mesmo. Sentiu os cabelos se assentando sobre a porção de pele que o vestido não cobria em suas costas. — Quando eu for desposada, serei Lyanna Baratheon. Minha casa será Ponta Tempestade, com seu septo para Os Sete e nenhum lobo.

 O irmão franziu o cenho com tristeza e a encarou por demorados minutos, emoldurando seu rosto entre as mãos. Deixou um beijo fraterno em sua fronte e lhe afagou os cabelos.

                — Ainda será uma loba. Será uma loba para sempre.

                — Sim — ela balançou a cabeça suavemente, abraçando-o antes que a música parasse no salão.

 Um arauto fez-se ouvir no silêncio dos músicos, anunciando o Príncipe Dragão. Lyanna e Bran voltaram para o banco, enquanto outros convidados saíam pelas portas laterais para passear por Harrenhal.

                — Ned pisou nos pés da garota — Benjen comentou com ela, sorrindo largo.

                — Oh, é mesmo? — Lyanna não pôde evitar achar graça naquilo, mas também sentiu pena do irmão. — Tudo bem, Ned. Você pode tentar de novo nas apresentações da trupe de cantores nos intervalos do torneio.

 Ao lado de Eddard, Howland também se permitiu uma risada discreta. A donzela-lobo ficou satisfeita ao notar que ele se mostrava mais descontraído do que no início do banquete. Estava prestes a perguntar a Ben sua opinião, mas o som doce de uma harpa fisgou sua atenção.

 Sentado na beirada do estrado da mesa de honra, Rhaegar Targaryen roubava toda a luz do recinto para si. O gibão de veludo exibia tons variados conforme os braços dele se mexiam no manejo da harpa. Os cabelos escorriam pelo peito e pelos ombros em ondas de prata, ornando com sua expressão terna e melancólica. Ele ficou de olhos fechados durante as primeiras notas da música, para então abri-los quando a canção começou a fluir de seus lábios.

 Era uma melodia triste, sobre um amor desconhecido e longínquo, impossível. As donzelas suspiravam, deixando que lágrimas cristalinas corressem por suas bochechas. Por sua vez, os homens como Robert e Richard Lonmouth continuaram bebendo e gargalhando em trovoadas, poluindo a canção do Príncipe. Mas a Lyanna não importava; involuntariamente, estava hipnotizada demais para não ouvir ou ver mais nada além de Rhaegar.

 As cordas da harpa vibraram cada vez mais lentamente, até que a música chegou ao fim e o Príncipe recebeu a ajuda de Sor Arthur Dayne para se levantar. Lyanna teve a impressão que seus olhares se cruzaram pelo salão por um instante, e sentiu o coração dobrar uma batida.

                — Seu coração de gelo derreteu e está escorrendo por seus olhos? — Benjen a cutucou com o cotovelo, rindo-se. — Não creio que está chorando como uma donzela. Parece que não é tão selvagem quanto pensa ser.

 Só então ela se deu conta das lágrimas que maculavam seu rosto. Limpou-as depressa com as mangas macias do vestido. Depois, sem hesitar, esticou a mão para a taça de vinho de Bran e a virou na cabeça do irmão mais novo.

                — Cale-se — rosnou, de repente destituída da aura de encanto.

 O Príncipe já estava de volta ao seu lugar na mesa, sentado muito ereto ao lado da esposa, a Princesa Elia Martell. O arauto voltou para anunciar um Irmão Negro da Patrulha da Noite, que praticamente suplicou para que alguns cavaleiros se juntassem à irmandade. Os Stark e suas espadas juramentadas tinham um vínculo com a Patrulha, mas Lyanna se surpreendeu ao se deparar Benjen muito concentrado nas palavras do homem. Ele mal tinha se importado com o vinho derramado no cabelo e nas vestes.

 Tão logo o Irmão Negro terminou seu discurso, um par de trombetas irrompeu na entrada do salão. Sor Jaime Lannister foi anunciado, caminhando pelo corredor principal até o estrado com passos largos e airosos. Ficou claro, pelos burburinhos e suspiros, que era o partido mais desejado ali depois de Rhaegar.

                — Vai se tornar um Manto Branco — Brando explicou para Benjen.

 A Guarda Real desceu do estrado e o Rei levantou-se do cadeirão de Lorde Whent quando o Lannister terminou seu desfile. A atenção do salão estava voltada para ele, mesmo que muitos dos convidados já estivessem ligeiramente bêbados. Porém, Lyanna não pôde tirar os olhos de Rhaegar Targaryen, completamente absorto no dedilhar silente de sua harpa.

 O novo manto de Jaime foi preso às suas costas e palmas tempestivas fizeram o Salão das Cem Lareiras vibrar. Os vassalos dos Lannister ergueram as taças e bateram nas mesas com fervor. Então, ela se deu conta de que havia perdido toda a cerimônia.

                — Vou me retirar para o acampamento, senhores — levantou-se um tanto aturdida, despedindo-se dos rapazes com um aceno de cabeça.

 Bran tentou segurá-la para indagar se precisava que alguém a acompanhasse, mas Lyanna declinou a oferta. Sentia que precisava deixar o salão depressa e respirar um pouco de ar fresco. Talvez fosse o efeito do hipocraz, ou a cacofonia do ambiente... A canção de Rhaegar Targaryen.

 Ela atravessou o pátio cabisbaixa, mantendo-se próxima às paredes de pedra para evitar os homens de armas bêbados que jogavam por ali. Por que Robert não pode ser como o Príncipe? O pensamento a fez se sentir como uma donzela ingênua, uma imagem que abominava. Robert era como era, teria de se acostumar com isso o quanto antes para garantir que sua felicidade não fosse tolhida.

 Quando deu por si, o bosque sagrado de Harrenhal estava ao seu redor, com árvores tão assombrosas quanto o próprio castelo. Lyanna olhou por cima do ombro, procurando pelas lamparinas dos guardas. Por quanto tempo eu andei?, perguntou-se quando tudo que encontrou foi escuridão. Ainda podia ouvir a comoção de um jogo a muitos metros de distância, mas era apenas um sussurro para seus ouvidos.

 Precisava voltar antes que os irmãos chegassem ao acampamento e não a encontrassem em sua tenda. Além disso, não era de bom tom que uma senhora prometida ficasse perambulando sozinha tão tarde da noite.

 Lyanna ouviu o som de folhas secas sendo amassadas, mas não pôde dizer de onde vinha. Seu peito apertou-se por um instante e os pelos de seu braço se arrepiaram. Há ursos em Harrenhal, mas eles ficam na Arena. Tentou se acalmar, avaliando o peso que o barulho havia sugerido.

 Eu deveria ter trazido a espada de torneio por baixo das roupas, ou pelo menos um punhal na bota. Ela deu um passo para trás, virando o corpo à procura de qualquer coisa no escuro. O tornozelo vacilou sob seu peso, fazendo com que o salto da bota se encaixasse num buraco do chão. Lyanna perdeu o equilíbrio no terreno irregular e sentiu o corpo pender para trás.

 No processo da queda, ela identificou o som das folhas sendo pisoteadas – por passos rápidos e leves. Os olhos se fecharam por reflexo, antecipando a dificuldade de se levantar com o vestido depois do tombo.

 No entanto, ele não veio.

                — Senhora!

 Um grunhido surpreso escapou de seus lábios quando uma mão apoiou suas costas. O rosto do Príncipe Dragão surgiu em seu campo de visão, com os cabelos tocando suas bochechas. Ela ficou surpresa por reconhecê-lo mesmo no breu, então absorveu a situação e teve a decência de corar.

                — Você está bem? — Rhaegar perguntou calmamente, empurrando-a com gentileza para que pudesse endireitar a postura. — Torceu o tornozelo?

 Lyanna colocou a mão sobre o peito, tentando respirar mais devagar.

                — N-Não, Vossa Graça — respondeu célere, mesmo sem ter recuperado o fôlego. Achou-se patética por ter gaguejado, mas aquilo era desconcertante. Cautelosamente, voltou-se para ele com uma reverência polida. — Agradeço pela ajuda.

 Seus olhos continuaram no chão, forçando a vista para distinguir outro buraco ameaçador. O Príncipe passou uma mão pelos cabelos, agora destituídos da coroa, e pôs a outra sobre o cabo da espada no cinto.

                — Seria melhor que não passeasse pela propriedade sozinha à noite, senhora — a voz dele era mélica e suave como seda, própria de um cantor. — Harrenhal tem fantasmas.

 Os parcos raios de lua que conseguiam penetrar a densa folhagem das árvores denunciavam os traços delgados de Rhaegar. Tinha uma beleza fria e poética, como uma escultura de pedra. O olho esquerdo reluziu numa faixa de luz, parecendo quase branco.

                — O senhor é um deles, Vossa Graça? — Lyanna arqueou uma sobrancelha, colocando as mãos nos quadris. Arrependeu-se do que disse no mesmo instante, cobrindo a boca com pudor. — Perdão... Foi um impulso, não tive a intenção de ofendê-lo.

                — Não me ofendi, senhora — os lábios do Príncipe apertaram-se no rascunho de um sorriso. — Aprecio que tenha sido tão espontânea.

 Ele se aproximou, fazendo sombra sobre seu corpo. Exalava uma fragrância tênue de lavanda com um toque de vinho. Lyanna percebeu a harpa numa das mãos, cravejada de pequenos rubis e sulcos em formatos de arabesco na madeira.

                — Fiquei demasiadamente encantada com sua canção no banquete, Vossa Graça.

                — Oh, é mesmo? — Rhaegar soou genuinamente admirado. — Ouvi com frequência que essa é uma canção triste demais para se tocar.

                — Mas nem tudo na vida são Verões — ela sorriu com pesar. Refletia sobre sua própria vida naquele momento.

                — Não, não é — ele concordou, trazendo a harpa para frente do corpo. — Fico feliz que a canção tenha sido de seu agrado, senhora.

 Lyanna gesticulou com a cabeça. Desejou que realmente tivesse voltado para o acampamento, assim não estaria se envergonhando na frente do Príncipe.

                — Eu saí para conseguir um pouco de silêncio e ar fresco, mas temo ter perdido a noção do tempo. Com a sua licença, Vossa Graça — ela fez uma vênia profunda, girando nos calcanhares. — Espero que possa ouvir mais de suas canções em outra oportunidade.

                — Gostaria que eu a acompanhasse até os portões?

                — E-Eu ficarei bem, Vossa Graça, obrigada — deu dois passos rápidos e cegos, topando o bico da bota com uma pedra. — Ai!

 Às suas costas, Rhaegar comprimiu um riso.

                — Até os portões, senhora. Eu faço questão — ele a tocou delicadamente com a ponta dos dedos.

 Lyanna não teve como recusar – e também não queria. O Príncipe então a escoltou até o Portão Principal, falando sobre as flores do bosque sagrado de Harrenhal. Ela lhe contou sobre as rosas azuis de inverno, suas favoritas, que cresciam em Winterfell. A caminhada terminou mais rápido do que esperava, e de repente estava recebendo as rédeas de sua égua pelas mãos de um cavalariço.

 Rhaegar despediu-se com um beijo delicado no dorso da mão esquerda e ela seguiu para o acampamento. Teve a impressão de estar num sonho ou numa das histórias de príncipes e princesas que a Velha Ama contava. Porém, ao ver os estandartes com o veado coroado dos Baratheon, lembrou-se que Rhaegar tinha uma princesa e Robert logo a teria como sua senhora.

 Lyanna Stark não estava mais em posição de fantasiar sobre coisas tão triviais e impossíveis como romances primaveris.


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