O Circo Negro escrita por Andy Sousa


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Esta história surgiu de uma brincadeira, depois de um dia em que fui ao circo. Apesar de não diretamente, o jovem rapaz foi baseado em alguém que conheci no espetáculo e que depois ficou preso em minha mente. Esta foi a forma que encontrei para me despedir desta ilusão.
Boa leitura!



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A tenda desbotada se erguia sinuosamente no topo da colina. O céu cinza e opulento era o pano de fundo de uma paisagem etérea, as diminutas luzes piscavam, falhavam aqui e ali, iluminando o cair silencioso da noite.

Em meio a uma grande fila, ela esperava, quieta e sozinha. Enquanto crianças riam e brincavam observava distraída um passarinho saltitando pelo chão da floresta. A criaturinha parecia irrequieta e de súbito alçou voo para longe, sumindo nas sombras. De repente em meio às árvores, um rapaz surgiu. Os ombros estavam levemente curvados, talvez pelo cansaço, sua feição era dura enquanto caminhava decididamente em direção à entrada do circo. Passou por ela, mas não a viu, sequer se ocupou em olhar ao redor, desaparecendo no interior da grande tenda.

Quando enfim chegou a hora de entrar, escolheu um inocente lugar ao fundo, próximo à saída, de modo que a brisa noturna a alcançava em leves lufadas, livrando-a do calor inesperado que abraçava a todos dentro do grande espaço encoberto.

Colunas se erguiam acima deles, dando sustentação ao imenso tecido de listras vermelhas e brancas, a música carnavalesca soava como um hino para a felicidade.

O espetáculo começou e o rapaz surgiu por entre as cortinas, agora confiante e risonho, apresentou-se sem qualquer falha, demonstrando força e agilidade, em certo momento sobrevoou-os e ela o assemelhou a um pássaro. Riu disfarçadamente de sua linha absurda de raciocínio.

Não lhe importou que os acrobatas impressionassem, que os malabaristas demonstrassem equilíbrio ou que o palhaço se esforçasse em tentar fazê-la rir, seu pensamento estava tomado pelas lindas imagens de um jovem rapaz que parecia sofrer em silêncio. Quem seria ele?

Cedo demais chegou a hora de partir. Ela seguiu a multidão alvoroçada para fora e se sentou próximo a uma árvore frondosa. Esperou e esperou e no avançar da madrugada, ele enfim apareceu. Outra vez sua feição estava abatida, o corpo parecendo se arrastar, chegou muito perto, mas novamente não a viu. Adentrou a floresta e seus passos aos poucos se perderam na distância.

As luzes do circo foram apagadas e o silêncio reinou.

Não soube dizer quando nem como adormeceu, mas foi desperta pelo canto dos pássaros que saudavam a manhã. De dia o ambiente não parecia ser especial, o fascínio que a deslumbrara estava ausente. Observou melhor a precária estrutura, a tinta desbotava, os tecidos tinham visíveis rasgos e placas se despregavam em uma parte ou outra. Como era possível que esta companhia ainda viajasse?

Um uivo cortou o ar como um lamento e um arrepio involuntário lhe percorreu a espinha, ergueu-se e começou a caminhar ao redor, havia vários caixotes empilhados de maneira desajeitada, ao se aproximar eles estremeceram e os ruídos recomeçaram, desta vez perfeitamente audíveis. O que seria aquilo? Não se recordava de ter visto animais na apresentação...

Começou a se afastar e o barulho de conversas se fez ouvir, vindas de algum lugar próximo. Alcançou a entrada do circo e espiou por entre uma fenda na grossa lona. Reconheceu o mestre de cerimônias de pé próximo a um homem baixo e corpulento com uma puída roupa de palhaço. De costas para ela o indivíduo fantasiado disfarçadamente retirou uma faca pontiaguda de um dos bolsos, um grito assustado escapou de sua garganta antes que ela pudesse se conter e isto revelou seu esconderijo.

Num surto desatou a correr, ouvia berros impacientes às suas costas e arfava, desejando apenas ser suficientemente rápida. Passou pelas caixas que vibraram e sacudiram, uma delas caiu no chão com um baque oco e um chiado, quis poder ajudar, mas temia pela própria vida.

Sem qualquer objetivo em mente se embrenhou pela floresta, correndo e correndo até que suas pernas cederam e ela foi de encontro ao terreno acidentado e sujo. Seu peito que subia e descia em respirações entrecortadas expressava a dimensão de seu desespero. O que de errado havia com aquele circo? Palhaços não deviam ter facas escondidas sob a roupa!

Deixou a cabeça pender e conteve a vontade de chorar. Por que não havia voltado para a cidade?

Em meio ao som fraco da brisa pôde identificar o canto dos pássaros que a sobrevoavam do alto das árvores. Esfregou o rosto e abriu os olhos, próximo a ela um deles saltitava com destreza de um galho para outro, sentiu uma estranha sensação de familiaridade ao observar a avezinha. Em uma de suas patas havia algo parecido com um arco, supôs que aquilo significava que ele pertencia a alguém.  

Pouco a pouco seu corpo relaxou e ela pôde se livrar da exaltação da fuga, tinha que pensar em uma maneira de partir. Chegou à conclusão de que a melhor saída seria aguardar o próximo espetáculo começar, como não sabia ao certo onde estava esperava que a música alta a guiasse de volta.

O pássaro ainda brincava por perto, sua cabeça ágil voltando-se para todos os lados, como quem vigiava.

— Você me protegerá caso qualquer um deles queira me machucar, sei que cuidará de mim – murmurou, quase acreditando que ele fosse capaz de compreender o que ela dizia.

Sorria fracamente enquanto acompanhava os movimentos da pequena criatura e durante todo o dia em nenhum instante se sentiu sozinha.

Quando as nuvens passaram a se mover rápido no céu e o brilho do dia começou a se esvair ela ouviu a inconfundível melodia hipnotizante que revelava o início de mais uma noite de mágica e fantasia, este era o lema do circo, fora por isto que ela viera.

Sentiu-se tão boba de ter acreditado que coisas assim sequer pudessem existir.

Procurou por seu amiguinho entre as folhas, mas ele havia sumido. O ruído de passos anunciou a aproximação de alguém e ela se escondeu detrás de um arbusto, tremendo esperava avistar um homem vestido de palhaço empunhando uma faca, procurando vorazmente por ela. Os segundos avançaram quando o jovem rapaz surgiu à vista, pegando-a de surpresa. Não podia dizer que havia esquecido de suas feições, pois cada vez que fechava as pálpebras o rosto amargurado tomava conta de seus pensamentos, só não acreditara em poder vê-lo outra vez.

Ele andava vagarosamente, cada passo como aflição, os ombros curvados e o olhar baixo a fizeram perceber como ele era capaz de se transformar quando estava no picadeiro, seu ato fora tão belo e cheio de vida que chegava a doer pensar que ele pudesse de alguma maneira estar sofrendo.

O seguiu de volta e por todo o percurso imaginou que fosse notar sua presença, mas novamente era como se ela sequer existisse. Ele era sempre decidido ao caminhar, deixou-a para trás quando alcançaram a imensa tenda, agora iluminada e barulhenta, rodeada de espectadores exaltados.

Esta era a sua deixa, tinha de retornar à cidade, ainda que não houvesse ninguém esperando por ela procuraria quem lhe desse ouvido, as pessoas tinham de saber que aquele circo não era o que parecia. Porém isto significaria que a companhia teria de partir e ela nunca mais veria o rapaz que parecia ser capaz de voar. Talvez como uma despedida ela pudesse assisti-lo uma última vez...

Quando o novo espetáculo iniciou um jovem e lindo rapaz apareceu sorrindo, mas ela via agora a tristeza no fundo de seus olhos e o semblante que parecia distante. Contemplou cada um de seus movimentos, vendo-o saltar e se arriscar e então sobrevoar a multidão que aplaudia extasiada. Percebeu que em uma de suas pernas havia algo estranho, apurou a visão e distinguiu um arco prateado ao redor do tornozelo.

Um arco. Como se ele tivesse dono...

Quando o número acabou, com o coração na mão ela contornou a tenda pelo lado de fora, procurando por ele. A suspeita que crescia em seu peito não poderia ser real.

No meio do caminho braços firmes a seguraram e sufocaram um grito seu. Foi arrastada para longe da multidão, levada a força de volta para a floresta, incapaz de se soltar do aperto de ferro. Quando pararam ela se viu livre e o rapaz surgiu à sua frente. Fora ele quem a prendera. Por quê?

— Vá embora - sua voz era grossa, falhada, como se ele há tempos sequer verbalizasse uma palavra.

Em seu rosto o sofrimento ainda era visível, suas claras íris a fixavam, eram bonitas, mas não condiziam com seu semblante abatido. Os olhos dela, por sua vez desceram até o arco que ele trazia ao redor da perna

— Você é a ave? É você, eu sei.

Ele assentiu minimamente.

— Estou preso, todos estamos. Nós somos o circo, estamos condenados.

Ela se lembrou dos animais que havia visto mais cedo nos caixotes e um lampejo de compreensão se acendeu. Se deu conta de que o impossível acontecia bem diante de seus olhos. A fantasia afinal era real?

— Vocês são animais?

— Somos pessoas, homens e mulheres fadados a um único destino, de dia animais, de noite humanos. Sempre controlados pela vontade dele – seu olhar se tornou obscuro, estaria se referindo ao palhaço ou ao mestre de cerimônias?

O esboço de um sorriso lhe preencheu os lábios, ainda que fraco pareceu mais verdadeiro do que aqueles que ele exibira no picadeiro.

— Não sinta pena de mim, sou um dos sortudos. Os mais antigos de nós têm a chance de ficar fora das gaiolas, eles esperam até que aprendamos que fugir é inútil. Sabe, por algumas horas é quase como se eu fosse livre novamente.

— Faz tanto tempo assim que está aqui? – Sibilou.

— Sim – ele a encarava com resignação.

— Mas... Mas não faz sentido, porque nunca partiu?

— Não posso, nenhum de nós pode. É a maldição, depois que você entra é impossível sair. Escute, você viu coisas demais, tem de ir embora ou estará em perigo, amanhã partiremos desta cidade e eles se esquecerão de você.

Seria sensato seguir seu conselho, ela já presenciara horror demais, porém era como se não pudesse deixa-lo, sentia necessidade de ajuda-lo, sentia que lhe devia isto.

Venha comigo, nós daremos um jeito, ainda não sei como, mas ficará tudo bem, eu simplesmente não posso te deixar aqui!

— Você tem de ir. Volte para a sua família – insistiu.

Com as mãos calejadas ele timidamente segurou-lhe os ombros, como se a acariciasse. Era uma aberração, não sabia mais como agir feito um humano.

A deixou para seguir o caminho que levava ao interior da floresta, deslocou-se para longe, tinha de permanecer longe dos olhares, era obrigado a manter sua existência em segredo, pela manhã quando sua nova forma o dominasse poderia sair ao sol e voar.

Ansiando pelo descanso subiu até o topo de um monte e se ajeitou para dormir, quando amanhecesse já não estaria mais neste corpo. Sonhou com a corajosa garota, desejando poder ser livre como ela era.

O dia passou e a noite veio como a libertação, de volta à realidade refez aquele caminho pela última vez, depois desta apresentação partiriam em busca de um novo destino, era sempre assim, era uma maneira de preservar o segredo, ninguém jamais poderia descobrir o que o Circo Negro escondia, a mágica e a fantasia tinham de sobreviver, este era o lema.

Ao longe avistou as luzes e distinguiu o som de vozes, pessoas animadas ansiavam por mais um espetáculo, ele não sentia raiva delas, já fora assim um dia, despreocupado e alegre, mas agora a ilusão tinha de continuar. Apesar de tudo aprendera a amar o que fazia, quando estava diante do brilho das luzes e ouvia o riso das crianças compreendia que aquela afinal era a sua missão.

Alcançou a lona listrada e a ultrapassou, o tempo havia deixado marcas evidentes em tudo o que fazia parte do circo, mas os artistas tinham de ser impecáveis. Era horrível quando falhas aconteciam, ele ainda trazia visíveis na pele as marcas de sua última punição.

O mestre de cerimônias, um homem alto de barba malfeita veio a seu encontro com um sorriso afetado, o recebeu com falsa cordialidade e anunciou que a companhia havia ganhado um novo membro. O estômago dele revirou à mera menção das palavras e sentiu pesar pela alma que agora estava perdida eternamente para o circo.  

— Você cuidará dela para mim, é uma menina bonita.

Suspirou. Ser responsável por um iniciante não era tarefa fácil, as pessoas tendiam a enlouquecer quando se davam conta do que lhes havia acontecido, perdera a conta de quantas vezes ele mesmo se rebelara. No fim o castigo era ainda pior, o dono do circo era um palhaço desequilibrado que considerava divertido torturar os outros com sua faca.

O mestre lhe indicou que o seguisse até o extremo do grande círculo, quando as luzes deixaram de lhe ofuscar a visão ele a viu e estancou no lugar, em choque.

— Eu lhe disse que era uma menina bonita – uma gargalhada sacudiu-lhe o peito. – E parece muito disposta a aprender. Veio até nós por livre e espontânea vontade como a maioria deles, mas ninguém nunca fica por estes motivos – um brilho maldoso iluminava seu olhar.

Logo ficaram a sós e ele se sentiu à vontade para se aproximar, o desespero inundava sua mente enquanto examinava a garota à sua frente.

— Porque você fez isso? – Sua voz estava amargurada, não pôde disfarçar. - Lhe disse que poderia ir embora. Você enlouqueceu, não sabe o que isto significa – levantando-lhe o braço trouxe para perto o frágil pulso que agora era adornado por um fino arco de prata. – Isto significa escravidão!

Aflito tentou em vão destruir o objeto maldito, apertando-o com todas as suas forças.

— Poderia ter voltado para sua família. Nunca mais tornará a vê-los...

Inesperadamente ela sorriu e era o mesmo sorriso inocente que lhe exibira na floresta, quando sequer suspeitava do mal que a rodeava.

— Está tudo bem. Eu não tenho família.

As palavras que estava prestes a dizer morreram em sua garganta, ele compreendeu por que ela não havia retornado para casa, por que ninguém viera procura-la. A verdade era que a havia notado desde o primeiro instante quando estava junto das demais pessoas na fila, mas ele nunca deixaria transparecer qualquer interesse, não havia nada que pudesse lhe oferecer e ainda assim, apesar de todos os seus esforços, ali estava ela.

— Você podia ter permanecido livre. Livre. Sabe o que é isso? – Insistiu num grunhido.

Ela o observava com fugaz alegria, não soubera como lidar com a ideia de se separar e não o ver mais. Tinha sido seu único amigo em muito tempo. Pouco lhe importava sua vida, gostaria de poder dizer o contrário, mas não havia nada nela em que pudesse se apegar.

— De que adianta ser livre se estou sozinha?

Uma lágrima escorreu por sua bochecha, percorrendo a pele rosada e ele a limpou com as costas da mão, não queria tocá-la com os dedos ásperos, temeu machucá-la.

Pensava que nada na vida pudesse ser pior do que aquilo que enfrentava, mas naquele momento compreendeu que os pesadelos vinham em diferentes formas. Ele sempre ansiara por liberdade e ela por alguém que a amasse.

A voz do mestre de cerimônias soou acima das demais dando início a última noite de espetáculo.

Ele puxou a pequena garota para perto em um abraço forte, pela primeira vez não se importando com sua falta de jeito, o calor dos corpos parecia ser capaz de trazer vida à ambos.

— Eu cuidarei de você – falou baixinho.

Ela enterrou o rosto em seu ombro e assentiu.

O passarinho havia compreendido o pedido que ela lhe fizera, todos os dias pelo restante de suas vidas, ele a protegeria.


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Notas finais do capítulo

A você que leu até aqui, meu muito obrigado :)
Quem nunca sofreu por um amor platônico?
Beijos.