Açucena escrita por LSofia


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/739260/chapter/1

Quando eu o conheci, em Abril de 1939, a Guerra só havia começado e vivíamos sob constante perigo. Daegu era uma cidade tranquila, na medida do possível, e dava para sobreviver sem grandes dificuldades. As pessoas trabalhavam muito e não tinham tempo para causar tantos incômodos. O grande problema da época era estocar comida: a fome assolava a região.

Nós nos vimos pela primeira vez em uma situação séria, enquanto você colhia os vegetais maduros da horta da casa da sua avó e eu surrupiava alguns para levar para casa e manter minha mãe e eu vivos. Tinha dez anos, diminuídos mil vezes pela sua maturidade aos doze. Ventava muito naquele dia, o campo verde, paradoxo ao céu cinza, movendo-se com os sopros que vinham da minha direita. O céu parecia pólvora e o meu coração palpitava diante da sua presença, acuado; seus olhos grandes traziam um brilho inocente, coisa que não via há muito tempo no meu próprio reflexo.

Você tinha cheiro de algo que não sei explicar, uma mistura de lírios, baunilha e bondade.

"O que você tá fazendo aí? Tá com fome?"

Escondido atrás de um pé de morangos, fui descoberto porque minha mão ferida escorregava sutilmente das folhas em direção às outras plantações. Seu rosto redondo e infantil encarou o meu, magro, e nós meio que entendemos que, naquele momento, qualquer passo em falso poderia significar nossa morte. Fiz um sinal de silêncio com o dedo; você acatou.

Eu tinha algumas frutas enfiadas nos bolsos da bermuda velha e sangue escorria de um corte na perna, o qual pareceu intrigá-lo pelo tamanho, correndo toda a panturrilha. Não doía. Minha maior dor era ter sido descoberto naquela situação.

"Me desculpa", pedi baixo, olhando em seus olhos. "É pra mim e pra minha mãe. A gente não come tem quatro dias, não tem nada em casa e meu pai foi recrutado."

Quando meus olhos em lágrimas se fecharam e esperei pelo pior, por xingamentos ou socos ou uma surra bem dada, nada veio. Você sumiu. Eu pensei em sair correndo e desaparecer, mas então o vi voltar com uma cesta na mão e você pegou tanta coisa que eu chorei ainda mais, vendo que teria comida para duas semanas e até mais se comesse pouco. Foi um alívio.

Você me salvou naquele dia.

"Leva pra casa e vai embora antes que alguém te veja aqui. Volta quando acabar e me espera no mesmo lugar de hoje, tá?"

Aviões cortavam as nuvens, passavam rasantes e eu corria em direção ao meu lar, a dez minutos de distância e escondido em um pequeno vilarejo. A perna continuava sangrando e eu comi um morango roubado antes de finalmente abrir a porta. Tinha gosto de esperança.

 

O Japão ainda comandava nosso país e não tínhamos liberdade incondicional, sequer tínhamos garantia de identidade. Nosso governo não era nosso e os costumes da pátria eram suprimidos aos poucos. Vivíamos atentos ao que dizíamos e fazíamos, temendo sermos pegos; eu ia à casa de sua avó a cada duas semanas, a cesta em mãos, e aos poucos fui ganhando liberdade para conversar com você.

Em algum momento descobri seu nome: Makoto. O meu era Kenshi. Makoto era o menino de família rica e influente que estudava em um colégio do centro e morava só com os avós, órfão desde sempre, enquanto eu não passava de um garoto que mal podia ler e escrever, sem capacidade para me manter e provavelmente destinado a ter o mesmo futuro que meu pai, rezando para que minha mãe sobrevivesse bem sem mim.

Éramos completos opostos e ainda assim acabamos nos unindo, de certo modo. Isso me embaraçava muito, sendo honesto, mas a necessidade era maior; a Guerra era maior. Por isso engolia meu orgulho cada vez que via seus olhos brilhando daquele mesmo jeito de sempre e sorria desconcertado, extremamente grato.

 

 

"Se eu pudesse escolher meu nome, Kenshi, me chamaria Seokjin. Tem algo a ver com manhãs e eu gosto muito delas, principalmente porque é quando eu te vejo", certa vez segredou-me, tão baixo que quase não pude ouvir.

Era Julho de 1941 e o sol queimava minha pele morena. As cigarras eram barulhentas naquela época no ano e o verão castigava com ar seco e altas temperaturas. Suávamos. Eu estava esperando novamente pela cesta, sentado atrás do pé de morango, e levantei a cabeça para encontrar seu sorriso sincero enquanto colhia maçãs e as separava para mim.

Conversávamos bastante e, mesmo naquela situação, eu nos considerava amigos. Passávamos algum tempo sentados, sussurrando coisas sobre nossas vidas, nossos gostos, antes de eu ir embora. Sabia o perigo de falar algo como aquilo em voz alta e entendi que você confiava em mim, por isso também confiei em você, que veio minutos depois, abanando o corpo com um largo chapéu, em minha direção. Minha garganta secou na hora e desviei o olhar, tímido, não sei se pela constatação ou pelo respeito que nutria, talvez um pouco dos dois. Suas pernas longas se esticaram ao lado das minhas quando você se deitou, cobrindo os olhos com as mãos.

"Você mudaria seu nome, Kenshi?"

Contra o chão de terra e ao meu lado, você tinha cheiro de algo que não sei explicar, uma mistura de lírios, baunilha, bondade e inocência.

"Sim. Eu me chamaria Namjoon. Era o nome do meu pai, antes disso tudo acontecer."

Havia um certo peso em minha voz. No ano anterior, a notificação da morte de meu pai chegou até minha casa, sem corpo, sem enterro, apenas uma carta e um emblema. Minha mãe não aguentou o baque e faleceu seis meses depois, com pouca ou nenhuma dignidade; enterrei seu corpo sozinho atrás de casa. Você era o mais próximo de família que me restava: era alguém com quem podia contar. Minhas visitas eram mais frequentes e eu trabalhava como carregador quando conseguia, mas o dinheiro não era suficiente e eu ainda precisava dos alimentos que me dava.

Meu maior desejo era fugir, no entanto, daquela situação: sentia-me fraco e sozinho. O único sonho que nutria era ser tão forte quanto um dia fora meu pai, e isso parecia tão fora de cogitação que o nome dele em mim seria uma realização pessoal.

"Esse é o nosso segredo, então. Eu te chamo de Namjoon e você me chama de Seokjin, que tal?"

Eu era completamente ignorante aos doze anos enquanto você era um prodígio, aluno dedicado que falava três línguas e era super competente, quase inumano, bom em tudo o que fazia.

"Seokjin", tomei coragem para pedir, "será que você pode me ensinar a ler e a escrever? Quero ser que nem você, um dia."

Meu salvador, meu amigo, minha família, você foi a primeira e única figura de exemplo que tive. Por isso eu chorei quando você aceitou meu pedido com um sorriso tão grande no rosto.

"Namjoon... É um nome muito bonito. Combina com você."

 

Eu tinha quinze anos quando tentaram me recrutar. Estava indo visitá-lo e uma van parou de repente na esquina da sua rua, cheia de meninos que olhavam para baixo e tinham a visão embaçada e obscurecida por policiais japoneses que levavam armas e porretes nas mãos. Dois deles pularam do alojamento improvisado e gritaram em minha direção, correndo e chacoalhando os equipamentos, e tomei uma das piores decisões possíveis da minha vida: fugi o mais rápido que pude.

Os oficiais me seguiram embora eu tenha me esquivado, mas era fraco e tive medo de morrer e de deixá-lo. Fui egoísta em um momento como aquele. Estava quase alcançando-o quando pegaram meu braço e escorreguei, caindo e batendo as costas. Permaneci calado, não derrubei uma lágrima, pensei em você e me deixei ser arrastado para o carro.

Já havia desistido de tudo, a cesta perdida no meio da rua empoeirada, o coração dentro dela, esquecido; então eu o vi, os cabelos escuros refletindo a luz do sol, as bochechas vermelhas, os olhos arregalados. Desmaiei. Até hoje não sei se foi uma ilusão de um adolescente amedrontado, mas quando acordei não havia mais van ou garotos recrutados ou medo, só havia eu encostado em uma árvore carregando uma cesta, a coluna doendo e um corte na cabeça.

Levantei com calma e fui devagar ao meu destino inicial, confuso. Sentia um cheiro esquisito de pólvora, lírios e coragem.

 

O nosso relacionamento cresceu conforme eu aprendia as letras do alfabeto e aprendia a formar palavras. Com hiragana e katakana, descobri que traços pequenos significavam mais do que eu podia imaginar, como quando nossos dedos se tocavam acidentalmente e nós sorríamos tímidos. O kanji me mostrou que existia um modo de tornar as coisas fáceis mais difíceis, porém mais bonitas, e foi quando eu percebi que o amava e chorei percebendo a besteira que tinha feito, sabendo que éramos homens e que isso poderia nos matar algum dia. 

Ao fim das lições eu era capaz de entender muitas coisas, mas primeiro entendi o seu nome e depois o meu.

Eu me esforcei muito para ignorar meus sentimentos por você e continuar agindo normalmente. Foi difícil. Era intenso demais. Estava decidido a abandonar os pensamentos estranhos quando você começou a me ensinar o nosso alfabeto, o alfabeto coreano: o hangul me provou que os desvios, por menores que fossem, eram importantes para o funcionamento de um sistema, com aqueles acentos e círculos esquisitos, como quando você se declarou para mim e a gente riu com vergonha enquanto uma bomba explodia em algum lugar longe da sua casa.

Quando você me beijou pela primeira vez, atrás do pé de morango, uma chuva leve caía do céu cinza e triste, amargo. Seus lábios tinham gosto de saudade.

 

A morte de sua avó coincidiu com o último dia da Guerra. Você chorou no meu colo, um misto de felicidade e tristeza absolutas, essencialmente uma e outra, e me disse que ela sempre soube de mim e que sentia muito não ter podido me conhecer. Crianças corriam pela rua e homens e mulheres gritavam, colocavam para fora todo aquela angústia acumulada no peito por tantos anos, um barulho quase tão alto quanto as batidas do seu coração.

Com a cabeça apoiada em minhas pernas, você tinha cheiro de algo que não sei explicar, uma mistura de lírios, baunilha, bondade, inocência e medo.

“Vai ficar tudo bem, Seokjin.”

As suas lágrimas eram quentes e sua respiração pesava, arrastada, densa:

“Me leva pra conhecer sua casa? Por favor, me tira daqui só hoje, só dessa vez…”

O caminho foi o mais longo de toda a minha vida e eu o vi morrer diante dos meus olhos para então vê-lo vivo como nunca. As lágrimas não deixaram de escorrer nem quando entramos, nem quando nos beijamos com urgência, nem quando ficamos nus e nem fizemos amor na minha cama; você só parou de chorar quando adormeceu. Eu também adormeci.

Sonhei que éramos velhos e morávamos em uma casinha na praia, longe de tudo aquilo pelo que havíamos passado, felizes, perfeitos, e acordei chorando. Você acariciava meu cabelo e também chorava quando olhei em seus olhos.

Sorrimos. O seu toque tinha sabor de liberdade.

 

Tudo que é bom dura pouco. 1946 foi um ano agitado e a Guerra voltou, desta vez interna. Você era Seokjin, eu era Namjoon, os civis eram guerrilheiros e o inimigo era os Estados Unidos, que tentavam impor uma nova ideologia sobre nossas cabeças e nos forçavam a engolir uma cultura que não era nossa, um medo que não era nosso. Não fizemos muito para lutar contra e continuamos nossa vida discretamente, rezando por dias melhores.

Eu tinha um emprego fixo como vendedor, perto do seu colégio, e nos encontrávamos todos os dias depois do almoço, quando suas aulas acabavam e você ia me visitar na loja. Era seu último ano e você sonhava com a faculdade de Direito; eu sonhava com dia em que finalmente o encontraria em casa após um longo dia de trabalho.

Fomos muito esperançosos.

O seu único defeito foi ter sido inocente demais.

Naquele 1 de Outubro, tinha conseguido uma folga e havia saído mais cedo do trabalho para ir encontrá-lo no colégio, planejando cozinhar quando chegássemos à minha casa e então ter um dia de descanso com você. Havia uma comoção na frente da escola, pessoas lotavam as ruas e a polícia marcava presença com cavalos e armas. Eu me assustei. Tive uma sensação horrível de que algo estava errado.

Corri o mais rápido que pude para tirá-lo daquele lugar e cheguei a tempo de vê-lo tomar um tiro na cabeça após uma discussão com um dos policiais.

A minha respiração se perdeu quando seu corpo começou a cair e me engasguei com a saliva ao som do impacto no chão. Minhas pernas me levaram até você vacilantes e eu me joguei para cair em cima da sua barriga morna, suas mãos moles contra as minhas e os olhos ainda abertos. Fechei-os. Ninguém parecia nos notar. Aquele momento era só nosso e não me importei em deixar um último beijo em seus lábios secos antes de me recompor e ajeitá-lo em meus braços, deitado como o príncipe que era, com a realeza que a você pertencia, para levá-lo de volta para casa.

Segurei o choro para não macular seu rosto sujo de sangue. Seus cabelos em meu peito e seu ouvido em meu coração, sei que teria corado se pudesse ouvir minhas batidas que valiam por nós dois. Você tinha cheiro de algo que não sei explicar, uma mistura de lírios, baunilha, bondade, inocência, medo e perdão.

Eu não me arrependi do que fiz e ainda não me arrependo. Guardo na memória o rosto do homem que lhe tirou a vida. Quando os guerrilheiros passaram anunciando um ataque à sede da polícia, peguei a maior arma que consegui e me uni a eles sem hesitar, ferido demais para me manter quieto. Eu não tinha nada nada perder; já haviam me tirado tudo. Matei aquela pessoa e depois outra e outra, três policiais, porque valia a pena. Não fui preso e continuei no meu emprego. Não tive coragem de ir ao seu enterro.

 

Eu já disse isso mil vezes para mim mesmo, mas vou repetir até o dia em que não puder mais me comunicar: você era perfeito do início ao fim e não merecia alguém como eu, um nada, na sua vida.

Hoje, em frente ao monumento que ergueram em sua homenagem, deixo a folha com o seu nome escrito por mim pela primeira vez. Makoto significa sinceridade e eu não consigo pensar em uma palavra que o defina tão bem quanto sinceridade ou manhãs.

Meu primeiro amor, eu o amei demais. O mundo é injusto. Já se passaram sessenta anos e continuo me lembrando dos nossos planos, dos vegetais, das lições de escrita, da Guerra, de você.

O que eu mais me lembro de você, Seokjin, é o seu perfume.

Já tentei de tudo para reproduzi-lo novamente, e até agora, olhando para o céu que brilha, é difícil de admitir isso, com minhas mãos que tremem incapazes e com as lágrimas que caem infinitamente dos meus olhos cansados. Eu já tentei de tudo, mas por mais que eu tente...

Eu não consigo escrever um cheiro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Foi uma one escrita em duas madrugadas de muito nervoso. Agradeço a quem leu até aqui.

Larissa, espero que você goste!!!!

Beijos.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Açucena" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.