Ônibus escrita por Gabe Alexandrini


Capítulo 1
Ônibus




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Era uma terça, 22:00 da noite. Em um ônibus nada especial e nada confortável na Zona Suburbana de São Paulo. Uma jovem com seu blazer aberto e camisa social branca, fones no ouvido e kindle no colo se perdia em seus pensamentos enquanto via os postes passando rápido na avenida que passava.

Pensava em coisas idiotas como “Por quê o Pato Donald usa toalha quando sai do banho mas anda pelado?” mas ao mesmo tempo pensava em coisas sérias, tais como “Nunca entendi o porquê as pessoas tem medo da noite. De noite, se você não for um mendigo, vai estar coberto, com comida na pança e ter seu pouco tempo livre depois do dia de faculdade e trabalho exaustivos. Quer dizer, de dia você tá andando na rua, tem assaltante, tem estuprador, tem gente estranha que aponta uma Bíblia na sua direção. “

Esta garota, por mais inteligente que fosse, nunca entendeu que a noite era perigosa graças a imaginação.

Não costumava pegar aquele ônibus, mas os outros que a deixavam em casa estavam lotados. Esse era um pouco mais demorado e dava um pouco mais de voltas, inclusive passava por um local com um muro extenso e com árvores, mato e mais árvores. O ônibus a deixava na porta de casa, então valia o esforço de perder meia hora de jogatina com os amigos pra poder ir sentada sem um sovaco roçando na sua cara.

Seu torpor mental quebrou quando ouviu um barulho alto. Alto do tipo que ela sabia que era problema no ônibus. As luzes do transporte ficaram pretas e as de emergência se acenderam. Sabia que esse barulho significava “Ih, fodeu. Vou ter que esperar outro desse passar.”

O cobrador agora não gritava para o motorista, mas sim para as cinco pessoas que estavam no ônibus com ela.

Cês vão ter que descer e pegar o próximo ônibus de graça. – O cobrador não parecia nem um pouco feliz.

Um idoso sem muita noção da vida, berrava de volta coisas que eram de difícil compreensão, com exceção de algumas palavras como “é culpa do B.T” ou “tem que prender esses corruptos”.

De bom ou mal grado, todos desceram do ônibus. Ninguém ali parecia mal monetariamente ou algo do tipo. Pareciam ser só almas infelizes que, assim como ela fizeram a escolha errada no dia errado.

Bom, de uma forma ou outra, a garota não poderia ficar ali pra sempre. E o próximo ônibus da mesma linha passaria somente depois de 40 minutos. Decidiu pedir um Uber. 10 reais. Não era barato, mas pelo menos o Uber chegava em menos de 10 minutos.

Deu uma olhadinha em volta e viu que as pessoas tiveram a mesma ideia. Até o velho reclamão. Voltou os olhos para a tela do celular e viu a mensagem “Seu Uber vai chegar em 7 minutos”. Okay, um tempo justo.

3 minutos se passaram. Todas as pessoas já haviam saído dali, com exceção do motorista e do cobrador, que estavam dentro do ônibus.

Nunca gostou de ficar sozinha, nunca gostou de sentir que não tinha ninguém com ela, sendo física ou emocionalmente.

Falando em ônibus, ele estava desligado por dentro. Seu farol estava mais fraco do que deveria estar. Viu sua sombra se alongando no chão e somente duas luzes dentro do ônibus. Tinha plena e total noção de que essas luzes eram dos celulares dos homens que ali estavam.

Seu celular vibrou. Pegou o aparelho na mão. “2% de bateria” era o que dizia a tela. Pegou um papel e caneta do bolso e anotou rapidinho a placa do Uber que a buscaria em aproximadamente 10 minutos.

Quer dizer, ela sabia que era em 10 minutos. Mas com o kindle sem iluminação, sem música e sem tecnologia, não tinha como saber exatamente quanto tempo passou. Pelo menos poderia checar o papelzinho com a placa graças à pouca luz do ônibus. E O celular vibra novamente e não se acende mais.

Puta que pariu, acabou mesmo a bateria. Caralho. – Praguejava baixo, olhando pro lado enquanto fazia uma careta de ódio. – São 10 minutos. Nada vai acontecer em 10 minutos. Isso aqui não é história do Poe ou do King.

Apoiou-se na parede que estava ali, por sorte ainda conseguia aproveitar um pouco da luz do farol do onibus. Olhava para lua e para os poucos carros que passavam ali. Vez ou outra olhava para os motoristas que ainda estavam no celular sem ligar muito pro que tava rolando em volta.

Ouviu barulhos de farfalhar acima da sua cabeça. Desconforto. Daquele tipo que é o pior. Daquele tipo que dá medo do escuro quando se é criança, o medo de ser atacada pelo que não se pode ver. Sentir algo em você e não ter como se defender.

Assustou-se com uma forma longa acima de si. Quando olhou pro chão viu pequenas sombras arredondadas se alongavam, todas conectadas por um grosso fio. O barulho de farfalhar acima de si continuava.

O coração acelerou. Sentiu sua garganta fechar enquanto engolia a saliva que havia se acumulado. Estava com medo, mas não sabia do quê. Olhou para o outro lado da rua e a imagem não a agradava.

Era um posto de gasolina completamente abandonado, algumas pichações e correntes bloqueando a entrada. Viu também dois grandes olhos brilhantes, com algo na boca. O que estava na boca ainda se debatia e tentava fugir da mordida voraz daquele animal impiedoso.

Seu coração novamente acelerou. As sombras do seu lado se alongaram. E deu um pequeno salto de susto. Não entendia o porquê estava assustada. Mas aquelas sombras dançando, aquele animal com olhos brilhantes e aquele farfalhar que não era ritmado mas não era continuo a faziam ficar cada vez mais desconfortável.

Olhou para onde o ônibus estava, tudo apagado. Até os celulares. Seu coração palpitou. Seu ponto seguro não estava ali. Aquelas duas luzinhas que traziam o sentimento de humanidade não estava ali. Começou a suar frio, apertou as mãos uma contra a outra. Geralmente não sentia o peso da sua bolsa de ombro, mas agora ela parecia um fardo.

Desde quando essa bolsa é tão pesada?” – Pensou enquanto sua mão apoiava-se sobre ela.

O silêncio era cortante. Nada de risada, nada de grupos de Whatsapp, nada de “hoje é sexta feira” saindo do celular de alguém. Nada de ninguém na verdade. O sentimento de desconforto cresceu mais, quando ouviu atrás de si um barulho estranho e uma pequena sombra negra quadrúpede correndo. Deu um salto com um grito contido.

A tensão voltou a tomar conta do seu corpo. Seus músculos estavam duros como uma pedra, sua bexiga que até a agora estava tranquila dava sinais de que em breve precisaria evacuar. Suas mãos estavam com a palma suada. Seus olhos não piscavam na frequência que deveriam.

Animal. Sombras. Farfalhar. Nenhum carro. Nenhuma pessoa. Só ela e aquela luz do ônibus. Olhava para os lados e não via nada além da luz dos postes afastadas e fracas e de um ônibus quebrado ali.

Uma coisa engraçada é como o organismo humano tem uma “chave de sentidos”. Se está claro, a visão é o nosso ponto central. Estamos acostumados com isso desde a criação da energia elétrica. Nossa audição entra em ação nessas horas, quando não podemos ver direito.

Um som que era pra ser considerado normal e baixo, em situações que enxergar é difícil, se torna mais alto.

Nosso tato também fica mais sensível, precisamos entender o mundo por ele.

Sentiu frio percorrer seus braços e suas pernas. O farfalhar ficou mais frequente. Mais alto. As sombras no chão alteravam agressivamente de tamanho, muitas vezes até de forma. Mas toda essa questão não era nada quando olhou pro outro lado da rua e viu uma forma humana no mato.

A forma estava se movendo pouco. Como se não fosse humana. E quando se movia era em totalidade, não mecanicamente como costumamos fazer. Havia uma harmonia não natural ali. Pelo menos, não pra ela.

Suas mãos tocaram contra a parede atrás de si, sentindo o quão porosa aquela parede era, mas não reparando o quão suja tal parede estava. Sua mão apoiou-se na cintura e coçou o rosto, sujando ambos.

Os olhos do animal voltaram a brilhar próximo as correntes do posto. Os olhos estavam focados nela. Um arrepio percorreu sua espinha.

Não acreditava em demônios e nem em seres sobrenaturais, mas aquela forma do outro lado da rua a mataria, na melhor das hipóteses. A forma e aquele animal.

Ela era a presa, ela era fraca, ela era vulnerável.

Deu um pequeno grito quando viu um carro parando na sua frente. Seu farol ilumina tudo a frente. A janela abaixava-se e um sorridente senhor de 40 anos dizia com um sorriso no rosto.

Dona Rafaela…?

Oi. Sou eu. Eu mesma.

Dona Rafaela, eu sou seu Uber.

Ela arqueou uma sobrancelha e voltou aos sentidos normais. Olhou pro mundo à volta novamente. Aquela sombra assustadora, quando iluminada, eram somente matos, o farfalhar sobre sua cabeça era somente uma árvore que nem era tão grande assim, a distância entre os postes nem era tão longa assim. Respirou fundo e abriu a porta do Uber sentando no banco do passageiro.

Dona Rafaela, está tudo bem? Você tá pálida. – O senhor disse enquanto fechava os vidros novamente.

Anh. É, tá sim. Eu só me assustei um pouco. – A jovem respondeu, sem jeito.

Ahh, sim. Me confirma o endereço? – Mostrando no celular.

Esse mesmo. – A jovem respondeu em um tom um pouco mais simpático.

Esse ônibus sempre quebra por esses cantos mesmo, nunca vi. Meus colegas sempre pegam gente aqui. Tem que ficar esperta com assalto, menina. – O homem de meia idade dizia num tom ameno de quem quer manter conversa.

É mesmo. – Sorriu sem jeito.

Voltou a olhar para a janela e acompanhar o movimento dos postes que passavam. Realmente, o dia era mais perigoso do que a noite.

Entretanto, a noite é responsável por mostrar o que todos nós somos.

Seres pequenos e amedrontados. 


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