Visceral escrita por Akira H


Capítulo 1
Dá água ao vinho


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem, sumi por um longo tempo e não sei se minha escrita melhorou, piorou ou continua como antes lol

Queria fazer algo bem leve, rápido e agradável de ler, também queria que ao menos alguém se identificasse com esse sentimento.



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Hoje comprei um bolo. Andei segurando a sacola até a mesma praça de antigamente, sentando-me no mesmo banco a esquerda daquela antiga arvore que você jurava ser um coqueiro, mas que alguns meses atrás descobri que era um pé de tamarindos. Provavelmente você sabia que era uma tamareira, mas insistia nessa velha magica historia só porque eu gostava de fingir que estávamos de férias e aquela caixa de areia em que as crianças brincavam era a praia. Você passava a mão em minha cabeça, rindo comigo e me pedia para nunca crescer.

Sentávamos ao pé daquele falso coqueiro e você bebia aquele refrigerante engraçado, amarelado e de gosto amargo enquanto eu preferia meu bolo de abacaxi. Nem lembro mais sobre o que falávamos... Ao menos conversávamos? Não sei mais, apenas lembro-me de andarmos de volta para casa; eu contornava com meus passos os desenhos no chão e íamos a silencio, lado a lado na rua.

Comprei o mesmo bolo, fui a mesma praça, sentei sob o mesmo coqueiro, mas não comi do mesmo jeito.  Senti o doce invadir minhas papilas gustativas e atacar minha língua, roubando toda a umidade de minha boca até meu estomago com aquele gosto marcante. Tomei, surpreso, alguns goles de agua e limpei a garganta.

Continuei comendo, ainda perturbado com um fato tão obvio. Cada garfada acompanhava um gole de água. O bolo continuava delicioso, de certa forma. Na loja para compra-lo ainda vi crianças felizes do mesmo jeito que eu era...

Diga-me, tio... Mudei eu ou mudou o bolo?

Aquela comida tão adorada que açucarava as doces amarguras de minha vida tinha mudado. Meu paladar parecia reconhecer o gosto, todavia meus sentimentos pareciam tão distantes. Aquela doçura desagradável contrastava tanto com a sutileza de minhas memorias, quase as afogando em uma confusão tão clara.

O mundo era igual, assim como essa praça permanece igual, do mesmo modo que a rua permanece igual e as crianças permanecem as mesmas. Até esse seu sorriso discreto permanece igual, mesmo enquanto vive nessa casa de repouso, tio.

Tudo permanece igual à minha infância. Tudo, menos eu.

Eu bebo café agora, o álcool também não me desagrada como antes. Quando meu filho teve medo do escuro falei que estava tudo bem e poderíamos deixar as luzes acessas, mesmo que em algum lugar do passado eu sabia que isso não funcionou comigo e meu medo permaneceu.

No dia em que ele me disse que tinha medo que algo acontecesse comigo pela pressão alta entrei em pânico. Senti aquele suor frio de alguém manifestar em voz alta um futuro tão possível e sombrio, algo que eu mesmo tive receio de falar. Em resposta ao que ele disse e ao meu próprio terror interno, apenas ri e disse que estava tudo bem, mesmo que eu soubesse que nenhum de nos dois acreditava nisso. Então, lembrei-me do dia em que minha mãe disse que talvez um dia você pudesse ter cirrose, tio. Comentei com você, que respondeu com uma risada baixa...

Quando foi que me distanciei deles e me aproximei do que sou agora? Meu paladar tão doce, que mal aguentava o amargo, transformou-se em um agridoce para então passar para esse sabor tão desagradável que eu, misteriosamente, gosto.

Não entendo mais os murmúrios tímidos e infantis, mesmo que um dia já tenha feito o mesmo. Como esse meu eu que amei tanto se perdeu no tempo? As vezes olho para os jovens e penso que são infantis ou incompreensíveis, as vezes posso até chegar a ter essa pitada de maldade e pensar que algumas atitudes são até estupidas... Quando foi que passei a vê-los como seres a parte? Uma existência diferente da minha que um dia, quando crescerem, vão entender o que sinto e o que vejo, todavia não seria eu que deveria entender pelo que passei antes?

Quando criança os adultos diziam entender do mundo e eu acreditava em parte. Agora que relembro, não recebi nenhuma informação nova sobre a vida, apenas essas mudanças de sabores. Não me tornei mais burro, nem mais inteligente... A mudança mais significativa não foi em meu conhecimento, foi em meus olhos.

O divorcio de meus pais, mesmo contado com uma delicadeza tão pudica não aliviou a dor que senti. A duvida e a incompreensão só me torturaram mais ainda. O sorriso forçado de meu pai ao sair de casa, dizendo que estava tudo bem, apenas me assombrou por semanas... Onde estava? Na casa de um amigo? Que amigo? Por quê? Todas aquelas noticias horríveis que eu ouvia na televisão enquanto minha mãe assistia o noticiário... Poderia ser ele uma das vitimas?

Agora, falando com meus filhos, as vezes consigo lembrar de como eu pensava naquela época... Toda aquela visão de mundo com essa inteligente inocência. Porque então, quando me fazem uma pergunta, ainda respondo de forma tão vaga? Meus lábios se movem mais rápido que minha memoria e vejo aquela confusão no brilho de seus olhos, do mesmo modo que você devia ver no meu...

Tio... Eu cresci, só queria que você soubesse.


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Notas finais do capítulo

Deixem comentários e se gostarem continuem acompanhando~~

Acho que o resto vai seguir essa mesma linha e espero que essa mesma atmosfera, talvez uma ou outra como exceção.

De qualquer forma pretendo continuar com esse estilo de "relato" como se relembrasse de algo e contasse para outra pessoa.

Enfim, até o próximo~~



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