O Deus Solitário escrita por Yago04


Capítulo 1
O Deus Solitário




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Ninguém nunca falou que seria fácil ser adulto, mas ninguém nunca mencionou o quão difícil seria. As noites parecem ser tão curtas quanto o dia, parecem que as horas escorrem pelos marcadores do relógio e vão arrastando o sol pra baixo e pra cima e quando você se dá conta cinco dias se passaram desde a última vez que você piscou o olho ou teve uma boa noite de sono. A vida adulta é tortuosa, e a vida adulta na cidade é tortuosa e longa.

Cinco anos de faculdade me trouxeram até aqui. Cinco anos de noites mal dormidas e de preocupações que me transformavam meu sono no de num golfinho quando tentava pregar o olho. Ainda consigo sentir a sensação dos dedos sobre a folha de isopor, o cheiro da cola quente e as câimbras nos dedos da mão enquanto coloria os espaços com os lápis de cor. Isso tudo parece uma memória, mas ainda é tão viva, como se eu tivesse vivido simultaneamente no passado e a uma hora atrás. Hoje eu me pego olhando para uma tela de computador que vive o dia a dia tanto quanto eu. Vejo as linhas se entrelaçarem e o cursor do mouse ampliar, clicar e arrastar numa música que foi incorporada a rotina, mas isso não me importa, isso me faz feliz. Foi isso que eu escolhi para minha vida, a minha vocação e a minha certeza de felicidade e de uma vida segura e satisfeita. Apesar de todos os sacrifícios, eu estou aqui, olhando para uma rua vazia da janela do segundo andar às 3h da manhã de uma terça-feira.

— Mary… Cê vem pra cama?

Aquela voz enrolada em sono corta o silêncio. Eu o aprendi a amar e posso dizer que estou feliz por estar com ele até este ponto. Ele ainda tem os mesmos cabelos rebeldes e a barba falhada que tinha no dia em que nos conhecemos. Antes, nos víamos nos finais de semana na casa dele ou na minha, quando saíamos para bares e shows na cidade que aos poucos aprendeu a não dormir; hoje, ele dorme do meu lado numa cama confortável para as minhas costas, dividindo o mesmo lençol e o mesmo banheiro. Aqui encontrei a felicidade, aqui eu estou em casa. Ele está vestindo uma camisa com alguns furos que virou pijama depois que eu insisti que não dava pra sair com ela, os óculos estão largados no criado-mudo próximo ao ventilador ligado.

Ele é um cara bem besta, mas no melhor sentido que a palavra pode carregar, me diverte com as piadas ruins e eu o acho a pessoa mais linda do universo. Ele é feliz, fica claro que dá pra notar, mas ele ainda guarda algo melancólico dentro dele. Já perdi a conta de vezes que eu passei pela sala e o vi com aquele olhar perdido e silencioso no rosto, um olhar que grita por se apegar numa esperança que a cada dia, a cada momento parece estar mais distante. A tela do computador ligada com o cursor pulsando, esperando por alguma palavra escrita mas que não vem como antes chegava. Eu lembro do dia que ele largou o emprego no escritório. Quando ele chegou determinado a fazer o que amava e me deu um longo beijo antes de sentar de frente pro computador e teclar compulsivo até que a história saísse da sua mente e dedos. Dentro de mim aquilo inflamou uma alegria por vê-lo feliz e compromissado, finalmente com o sentido do que queria fazer e lutando por aquilo. Alguns textos foram ficando longos e mais longos, ficando cada vez mais completos e detalhados, alguns poucos foram enviados para caixas de e-mail ou para caixas postais, esperando que alguém em algum lugar pudesse dar alguma dedicação ou importância para aquelas linhas. Os dias eram esperançosos quando pelo menos se dedicavam a mandar uma carta de recusa ou uma mensagem, mas na maior parte do tempo era como falar com uma parede, ou falar inspirado por horas pra um gravador desligado. Foi aí que as telas brancas começaram a aparecer, cada vez mais longas entre um texto ou outro, cada vez mais substituindo o brilho no olhar por um suspiro cansado e frágil.

Eu o observava, do outro lado da sala atolada nos meus projetos e afazeres, eu o via e aquilo derrubava uma pedra de gelo no meu coração. A peregrinação do quarto para a sala era cruel, ele acordava e se sentava de frente a tela por horas até perceber que novamente nada sairia. Ele então iria ler livros e iria ver filmes para se inspirar mas eu podia notar que aquilo só o derrubava mais. Os suspiros foram ficando mais frios e constantes, e ele aparentava sentir medo da tela. Ele temia falhar e sabia que estava falhando. Nós conversávamos a respeito e ele repetia a mesma frase em resumo: “Eu não consigo, tudo o que eu coloco não parece ser o suficiente. Isso realmente não é pra mim.”

Aquilo doía, e se eu pensar a respeito ainda dói. Ele conseguia melhorar o humor sempre que estávamos juntos, mas na solidão da casa vazia ele se deixava deslizar para a melancolia até que ficasse insustentável mais uma vez. O homem que eu amo se definhava nos medos e anseios e eu não conseguia salvá-lo.

— Em instantes, amor. Ainda tenho de terminar esse projeto, a apresentação é amanhã.

A resposta foi doce enquanto mascarava minha preocupação. Ele estava sonolento então aquilo era algum alívio de que ele teria algum descanso até a hora de acordar. James sorriu com a resposta e se virou afastar a luz do meu computador dos olhos.

— Vai dar certo, baby. Cê sempre arrasa, vai ver.

Assenti tímida, e sorri de volta. Não durou muito e ele estava dormindo, meio enrolado meio desenrolado, “o jeito perfeito” ele diria. Minha atenção voltou para a tela, apesar de todos os medos e inseguranças caseiros, eu ainda havia trabalho a fazer, ainda havia um projeto para apresentar. Clica, arrasta, amplia, salva, renderiza… A sinfonia do trabalho intelectual da arquitetura continuava, enquanto o sono tomava forma. Era o dia a dia do meu trabalho, mais um dia normal na vida não fosse aquele estranho barulho de motor do lado de fora. Ergui os olhos já cansados para a rua vazia e não havia nada exceto o brilho das luzes nos postes, mas o som persistia, não alto o suficiente para acordar James, mas o suficiente para tirar minha atenção do projeto.

Eu me levantei e desci as escadas, não era minha intenção e sabia que não era a melhor das ideias, mas o som ainda era audível e não havia nada na rua. No andar debaixo havia uma janela direto para a calçada que tornava o som ainda mais perceptível: Soava como uma aceleração, como se alguém pisasse no pedal e fizesse o motor ranger para logo em seguida deixar silenciar, um teste de potência de motor. Continuei em direção da janela, meu coração batia mais forte e eu podia sentir o fluir da adrenalina invadir o corpo enquanto me arrependia de ter descido. A minha mente começou a trabalhar com situações do passado e aquilo me deixou realmente assustada, mas já estava a alguns centímetros da cortina. O som havia aumentado e a qualquer momento o James acordaria e viria ver do que se tratava, a qualquer momento. A qualquer momento… Eu dizia isso enquanto esticava a mão em direção a cortina. Até que o som parou e eu afastei as persianas e encarei a rua.

O primeiro pensamento que eu tive foi que eu estava sonhando e aquilo era um pesadelo, acordaria com o rosto marcado pelo teclado em instantes e eu só teria de esperar, mas o tempo foi passando e eu percebi que o meu sono havia passado. Eu realmente estava encarando a rua, às 3:15h da manhã onde do mais absoluto nada, uma cabine telefônica azul se materializou na calçada da minha casa.

Ela aparentava ser de madeira e havia a inscrição de Police Box no topo. Eu devia ser testemunha de um evento sobrenatural, e teria gritado não fosse o choque. As portas da caixa azul então se abriram e eu prendi a respiração. Uma figura magra, de cabelos grisalhos pulou para fora. Era um homem, talvez perto dos 60 anos de idade, ele usava um casaco azul-marinho similar a noite e dava pra ver que o interior era de um vermelho-escuro. Aquilo seria até “normal” não fosse o fato dele usar óculos escuros e ter uma guitarra pendurada em um dos ombros. O homem estranho sacudiu os cabelos, arrumou a lapela do casaco e trancou as portas da cabine com um estalo dos dedos, e no meio tempo eu ainda encarava boquiaberta a situação. Ele olhou ao redor como se avaliasse o ambiente até que o campo de visão me encontrou. Ele se dispôs em direção a porta e eu corri na direção contrária subindo as escadas o mais rápido que pude. Sacudi o James com toda a força que eu podia, balancei, cutuquei e até estapeei mas ele não acordou. Minha respiração estava rápida e curta, o terror estava circulando por todo o meu corpo fazendo o cabelo da minha nuca eriçar e minhas mãos tremerem enquanto continuava a tentar acordar o meu marido.

— Meu deus! Ele matou o James…

Eu sussurrei em desespero, sentindo as lágrimas brotarem do meu rosto, o desespero tomando conta das minhas ações.

— Eu não matei ninguém!

A voz ecoou vinda do lado de fora. Eu soltei o James imediatamente e me dirigi até a janela. Ele estava lá fora, olhando para cima em direção a mim.

— Eu realmente não matei ninguém e eu posso explicar!

Ele não parecia ameaçador, ele não parecia querer causar mal, isso era um fato.

Mas era uma situação muito bizarra e insana para pensar racionalmente. Eu não poderia sair, eu teria de ligar para a polícia, emergência e rezar muito para que aquele velho esquisito simplesmente desaparecesse. E o James, ele estava inerte na cama, mas parecia mesmo vivo, como se estivesse imerso num coma profundo e se recusasse a acordar.

— Olha, eu realmente não queria te assustar, eu não quero nada demais! Eu só preciso de uma ajudinha e darei o fora daqui! Prometo!

Eu corri em direção ao celular, não havia sinal, nem mesmo no do James. Não havia sinal de internet e a TV não ligava.

— O q ue você está fazendo?! Você tá hackeando a casa? Quer nos sequestrar?!

Eu gritei sem me importar com o estado do James. Puro medo.

— Não, não! Olha isso é um Loop Temporal! É isso que eu tô tentando resolver!

— Do que você tá falando seu velho imbecil?!

— Olha pro seu relógio, deviam ter passado alguns minutos desde que nos vimos ali embaixo, mas se você notar vai ver que estamos no mesmo minuto. Pode checar todos os outros relógios!

Eu tive minhas dúvidas, mas alguma explicação por mais fantástica que seja era alguma coisa. Levantei a tela do computador e lá estava: 3:15h, assim como nos celulares meu e dele que não notei no momento do desespero. Aquilo me deixou mais assustada, eu estava sonhando não havia outra explicação, eu estava exausta do trabalho, estava preocupada com o James e acabei dormindo e tendo um sonho ruim, é isso. Tudo vai se resolver quando eu acordar, eu só tenho de esperar. Me deitei na cama do lado do James na esperança que eu fose tragada de volta a realidade, sentada na cadeira da minha escrivaninha, debruçada sobre folhas teclas e canetas.

— Na verdade não em problema! Leva o tempo que precisar, não é como se o tempo fosse passar mesmo!

O som de guitarra começou a encher o ambiente. Uma versão distorcida da 5ª sinfonia de Beethoven era tocada no meio da rua na madrugada de terça para quarta feira enquanto o tempo estava congelado por tempo indeterminado no minuto 15 das 3h.

Eu não sentia sono, eu apenas encarava o teto ao lado de um marido que parecia esta dormindo o melhor sono de todos os tempos. Lá fora, talvez por pura ironia ao momento, o velho tocava uma versão instrumental de Time Stand Still, eu conhecia a música por que o James é o maior e talvez único fã de Rush que eu conheço. Percebi que minhas mãos não tremiam mais, não havia mais o medo, provavelmente por que se ele fosse querer realmente fazer algo ele já o teria feito. Não creio que uma janela de vidro ou uma porta de metal fosse realmente uma barreira entre nós e ele. Calcei as sandálias e desci as escadas e direção a cozinha. Eu abriria a porta agora, era a única coisa que faria sentido, mas não iria desprevenida. Mantive a luz apagada para não levantar suspeitas, abri a gaveta de talher e peguei o maior cabo que achei. Não que eu fosse matar o homem, mas uma faca certamente o intimidaria.

Continuei indo em direção a porta, a música ainda soava o que era bom por que assim saberia onde ele estaria e ele não poderia me surpreender. Escondi a faca no cós da calça e abri a porta para a noite.

Não ventava, e isso era muito esquisito para a época do ano. Era inverno e era uma cidade de clima predominantemente quente, então por mais que não houvesse neve ou geada, a temperatura baixava consideravelmente o inverno e haviam chuvas e ventos fortes. Mas não nessa noite, parecia que estava selado, que estávamos em um ambiente fechado como se a cidade ou o mundo estivesse trancado dentro de uma sala. Não havia outro barulho a não ser pelo dedilhar das cordas e dos passos do homem que caminhava calmamente pela extensão da rua.

— Ah, aí está você, achei que fosse demorar um pouco mais, pelos meus cálculos só passou duas horas.

— N-Não s-se ap-proxim-me.

— Tudo bem, respeito o seu espaço.

— O q-que você q-quer?

— Se não se importa, eu gostaria de um pouco de açúcar.

— O que?

— Açúcar, eu preciso de um pouco de açúcar, por isso que eu pedi a sua ajuda.

Ele começou a se aproximar lentamente, a guitarra anda em punho e os olhos escondidos pela armação de óculos escuros.

— Olá, eu sou o D…

— Parado! Eu disse pra não se aproximar! — Minhas mãos foram em direção a parte traseira da calça, agarrei o cabo e trouxe em direção ao homem velho.

— Cuidado, essa é uma escolha perigosa. Se estivéssemos Magroth isso seria tomado como um ato de insulto. Mostrar colheres para as outras pessoas é o equivalente na Terra de mostrar o dedo. Eu particularmente teria ido com uma faca, faz mais sentido pra vocês.

Apontando pra ele eu percebi que no escuro havia puxado uma colher de sopa, daquelas que você afunda na panela, pega uma boa porção do caldo e derrama no cuzcuz.

— Q-quem é v-você e o que você quer?

O homem continuou com os passos e parou a 3 metros de distância de mim. Ele passou a guitarra para trás, deixando-a pendurada nos ombros e removeu os óculos mostrando os olhos verdes penetrantes e um par de sobrancelhas que aparentavam estar com raiva.

— Como eu dizia, eu sou o Doutor e preciso de um pouco de açúcar.

— Pra que açúcar? O que isso tem a ver com o que está acontecendo? O que é essa coisa azul? Por que o tempo parou? Por que ninguém acordou com o barulho dos motores nem da sua guitarra? Por qu…

— Calma. Como eu falei eu posso explicar tudo. Agora, uma pergunta de cada vez, ok?

Minha cabeça estava pesada, parecia que eu estava em algum show de ficção científica maluca, eu não conseguia pensar direito e a única coisa que saiu da minha boca foi:

— O que está acontecedo?

— Ótimo, assim é melhor. O que está acontecendo é chamado de Loop Temporal. O tempo está parado por que está se desdobrando dentro de si mesmo. Alguma coisa fez o tempo reiniciar, em vez de o segundo seguir para o próximo, ele está voltando para ele mesmo, como se estivesse em repetição automática.

— Mas o que fez com que isso acontecesse? Estava tudo normal até aquele barulho de motor aparecer…

— Bem, isso seria minha culpa e dela também… — Ele repousou a mão sobre o que parecia ser madeira da cabine policial azul. — Ao trazer a TARDIS pra cá ela parece ter sofrido algum defeito no calculo temporal que afetou o tempo e espaço do planeta. Ela meio que congelou o tempo.

— Meio? Como assim, vir pra cá? E o que é Tardis?…

— Ei! Não foi inteiramente minha culpa, sabe? Quando eu falei vir pra cá, não é necessariamente vir pra cá pra porta da sua casa, mas pro planeta. A rota estava traçada pra Escócia ou Londres, mas de alguma forma paramos aqui… E bem, onde é aqui?

— Estamos em Juazeiro do Norte no Ceará, Brasil. Como assim o planeta?

— Ah, que incrível! O Brasil! Nunca ouvi falar direito.

— Mas o qu…

— Ah, e respondendo a sua última pergunta a TARDIS é o que me fez vir até aqui. Ela pode viajar pelo tempo e espaço.

— Essa caixa azul pode viajar no tempo?

— E no espaço… Ei, ela não é uma caixa azul. Ela é uma nave e só está camuflada pra ninguém do seu povo notar…

— Para. Espera. Como assim “ninguém do meu povo”? O que diabos é você? E como que uma caixa telefônica azul estará camuflada em Juazeiro do Norte se o mais próximo que temos disso são Orelhões e que sabe lá por quanto tempo estão em desuso, além do mais, se você é de fora, e nunca visitou o Brasil como que você tá entendo meu português perfeitamente?

— Você realente não escuta quando eu falo em uma pergunta de cada vez, não é? Enfim. Eu sou o Doutor, eu não sou da Terra, e acredito que isso seja fácil de lidar tendo em vista que estamos a quase duas horas e meia travados no exato mesmo minuto.

— Ok…

— A TARDIS, ela está camuflada… Em tese. O circuito camaleão é que permite que ela se misture com os objetos e a aparência da época e que ela aterrissa, mas houve um problema em Londres, acho que em 1963, e desde então o circuito camaleão está travado numa cabine de polícia azul. E quanto a estarmos nos entendendo, a TARDIS está projetando um link psíquico entre você e eu. Eu não estou falando em português, nem você está falando em inglês, mas estamos nos entendendo desde que o link esteja ativo, entendeu?

— Então em resumo, você é um velho com uma nave espacial que está com a camuflagem quebrada no formato de uma cabine policial que pode viajar no tempo e no espaço que permite que eu me comunique com você por um link das nossas cabeças, num momento que o tempo está congelado e que pode ser resolvido com um pouco de açúcar?

— Eu não sou fã do termo velho porque já tive rostos mais novos. Mas acho que com a minha idade dá pra aceitar. Sim, basicamente é isso.

— Ah, cara… eu preciso me deitar.

 

Eu me deixei cair no sofá enquanto ele veio atrás de mim. Parecia estudar o ambiente em silêncio, como se meditasse. Deixou a guitarra cair sobre o sofá, e puxou uma coisa de dentro do casaco. Parecia uma varinha só que bem tecnológica, ela zumbia e piscava dentro do seu formato azulado enquanto ele apontava para todo o lado.

— Não se preocupe. Chave de Fenda Sônica, estou medindo os traços temporais e salvando a frequência.

— Claro, por que não?

Eu me levantei e subi as escadas mais uma vez, ainda guardava alguma esperança de que o James pudesse ter acordado diante de toda a situação. Mas ele permanecia estático, na mesma posição.

— Se ele estava dormindo quando a TARDIS travou o tempo ele não vai acordar.

Pulei de susto ao ouvir a voz dele, o Doutor havia subido em silêncio logo atrás de mim, e encarava meu marido dormindo enquanto balançava suavemente a varinha eletrônica sob o corpo dele.

— Ei! Para com isso!

— Ele vai ficar bem, ele só está fora do Loop Temporal.

— Como assim, ele está fora?

— Como eu falei antes, ele precisaria estar acordado para perceber que o espaço ao redor dele está se repetindo dentro de si mesmo. De uma forma mais didática: Estamos numa bolha nesse momento, presos no espaço entre um segundo ou outro. Para ele, quando tudo voltar ao normal, nenhum tempo vai ter passado, bem, exceto o que falta para o próximo segundo.

— Então pra fazer tudo voltar ao normal, o que precisamos é só de… Açúcar?

— Sim! Por favor!

Descemos as escadas em direção a cozinha. De um dos armários eu tirei um saco de açúcar e entreguei para o Doutor. Ele sacou os óculos escuros de dentro do casaco, deu leve toque na lateral deles e depois os guardou.

Vamos! — Ele gritou enquanto corria pela casa em direção ao lado de fora. Pegou a guitarra sobre o sofá e estalou os dedos para as portas da cabine azul se abrirem.

Eu caminhei cuidadosamente atrás dele, enquanto ele se virava na minha direção. Um sorriso agora estampado no rosto enquanto apoiava um dos braços na lateral azulada.

— Eu tenho que entrar aí? É seguro? Não é melhor só esperar tudo se resolver por aqui mesmo?

— Vamos, vai ficar tudo bem, olha: Eu tenho açúcar.

E ele adentrou.

— Mas realmente eu não acho que nós dois possamos caber aí dentro, e com todo respeito, eu te conheço a duas horas…

Eu o continuei seguindo e entrei na TARDIS. Luzes brilhavam, painéis apitavam e um grande rotor no meio de udo subia e descia, fazendo o barulho que eu havia ouvido na rua. Ela não era proporcional. Não, longe disso. Haviam escadas para andares e subsolos, estantes de livros, luzes redondas nas paredes, e até mesmo poltronas e uma lousa. O espaço era do tamanho de um apartamento.

— Teoricamente você me conhece a um segundo.

Eu corri para fora, tinha de olhar de novo. A caixa azul ERA uma cabine telefônica e Deus sabe que uma cabine telefônica só caberia uma pessoa. Mas dentro… Meu Deus, dentro era um apartamento mobiliado!

— Mas c-como… É maior por dentro!

— É, ouço muito isso.

— Isso é impossível, eu projeto casas, sou arquiteta… Eu estudei isso durante muito tempo, e não há como isso ser verdade… Não tem como…

— Sistema de compressão e expansão. Ajuda a guardar a TARDIS em ambientes fechados. Em Gallifrey não temos tanto espaço assim…

— Gallifrey? O que é isso? Alguma palavra secreta, tipo um comando?

— Não. Gallifrey é minha casa. A alguns milhões de anos-luz daqui, na constelação de Kasterborous. Na verdade, ela foi minha casa, hoje não mais. Enfim, temos que resolver essa situação, certo?

Eu não consegui responder, a cada momento uma nova coisa estranha, bizarra e magnífica acontecia. Era impossível não sonhar, mas a essa altura não havia nada que indicasse isso. Era real, era verdadeiro. E o James adoraria ver tudo isso.

— Conjectura! A Tardis quando aterrissou fez com que uma onda estática se espalhasse congelando o tempo ao redor, e desde então estamos presos dentro de um microscópico espaço onde o momento se repete sobre si mesmo. Como isso é possível?

Ele apontava pra mim esperando uma resposta, enquanto caminhava ao redor do grande maquinário central, suas sobrancelhas arqueadas num ar agressivo.

— Eu não sei… É alguma coisa a ver com alienígenas?

— Não necessariamente err… Perdoe-me, qual o seu nome?

— Mary Anne.

— Mary, Mary Anne… Mary! Não seria alienígena propriamente mas sim, é algo estranho a realidade. Eu fixei coordenadas para a Grã-Bretanha mas acabei parando em Juazeiro do Norte no Ceará, Brasil. Algo modificou a linha tempo-espacial e criou um buraco de minhoca aqui e agora.

Ele se jogou na cadeira, as mãos sobre as têmporas, os olhos fechados como se forçasse o pensamento a aparecer instantaneamente na sua mente.

— Mas e o açúcar? Não era essa a solução para isso tudo? Basta usar não é?

— Sim, sim, o açúcar. O chá já está pronto. Quantas colheres você toma? Ah, e gostaria de leite?

— Hã? Como assim?! Você disse que o açúcar ia resolver isso!

E de fato irá, Mary. É essencial que estejamos hidratados o suficiente, devem ter passado mais ou menos três horas desde que houve o congelamento temporal. E isso é ruim, muito ruim. Veja, a movimentação da luz e recomposição celular são fatores importantes do funcionamento biológico. Mas para que aconteça, eles devem acontecer, entende? Em resumo, nossos corpos nesse momento estão parados. Você apenas respirou uma vez e seu coração ainda está no mesmo batimento. O açúcar vai ajudar a manter o pico d energia por mais tempo. Uma carga extra, por segurança.

— E aquela história de que eu poderia levar o tempo que eu precisasse?

— Bem, claramente não é bem assim. Se você tivesse demorado mais uma hora ou duas, provavelmente estaríamos mortos.

— O que? Como Assim?! Por que você não falou nada?!

— E você realmente acreditaria em mim?

Ele me deu as costas e desceu um lance de escadas. Eu sentia o ar se comprimir no me peito, tateei as mãos sobre o coração para senti-lo pulsar. Não havia nada. Ao colocar a mão sobre o nariz e a boca eu não senti a saída nem entrada do ar, mas de alguma maneira eu ainda estava lá. Estava consciente e viva.

— Se eu fosse você eu não me cansaria assim. Tome.

A xícara estava bem cheia. O chá pulsava quando o levei com a mão trêmula em direção a boca. Ele estava em agradável e doce, um tanto demais, mas de acordo com o velho Doutor, aquilo nos garantiria mais algumas horas de vida.

Ele deixou a xícara de lado e foi para o painel central da TARDIS. Puxou algumas alavancas, apertou alguns botões e o motor começou a ranger. O som era alto e fez o chão e as paredes vibrarem um pouco. Sem demora, ao final do som, o Doutor correu para a porta de saída e esticou sua cabeça para fora.

Eu o segui e pude ver tudo aquilo: As estrelas eram brilhantes sobre o fundo negro, as cores dos cometas surgiam de perto e longe, como bolas de fogo, planetas e galáxias se estendiam pelo infinito da visão como faixas de água colorida retidas pela falta de gravidade, mas tudo se resumia ao que estava acima de nós, uma grande estrela vermelha vazando luz às portas de uma explosão.

— Doutor, o que é isso?!

— Isso é o Ano Novo dos adultos.

A estrela explodiu num clarão de luz, enviando seus restos através do espaço. Pedaços de rocha morta passaram perigosamente rente à TARDIS, mas o Doutor já havia voltado para os controles e desviado, abrindo caminho para a monstruosidade negra que havia se formado no lugar do astro decadente.

O fundo era mais negro que o próprio espaço, se formando por uma espiral de poeira que ia clareando conforme se chegava a borda, onde havia um grande anel do que parecia ser fogo.

— A morte de uma estrela é o nascimento de um buraco negro supermassivo. A solução para o nosso problema.

— Mas espera… Isso não é perigoso?

— Muito! — Exclamou o velho, enquanto empurrava a toda a força uma grande alavanca que segundos depois notei ser o acelerador da caixa azul espacial.

Ele novamente foi até a porta, agora encarando o que parecia ser o portão do apocalipse. Haviam raios circulando o redor da entrada do buraco negro. Ele apontou para o anel de fogo que parecia se revirar dentro de si mesmo.

— Ali! Aquilo é o que precisamos. Uma Dobra Temporal. Precisamos só coletar um pouco da antimatéria que se formou e podemos resolver a situação da Terra.

— Só isso? — Temperei bem a frase com ironia.

— Ei, é a melhor ideia que temos agora. O tempo, embora não esteja parecendo, está passando muito rápido. O boost do açúcar não vai durar muito tempo, e essa é provavelmente a única ideia que podemos pôr em prática.

— E como você vai fazer isso?

— Eu já falei. Com o açúcar.

Ele correu em direção ao restante do açúcar e tirou uma pequena caixa do bolso. Ela era metálica, cabia na palma da mão. Parecia um tanto pesada para o tamanho e possuía umas inscrições muito estranhas ao seu redor, como se fosse um idioma estranho e distante. O James definitivamente ia amar tudo isso.

—Isso é um Chronolock, é uma espécie de cofre temporal Gallifreyano. Nós vamos colocar o açúcar aqui dentro e arremessar em direção àquela Dobra Temporal. Se os meus cálculos estiverem certos…— Ele sacou aquela varinha eletrônica de novo, acho que chamou de Chave de Fenda Sônica, e a apontou para o buraco negro. — …O Chronolock vai aguentar a viagem e retornar carregado no mesmo momento.

— Como assim voltar? Ele não vai ser sugado e se perder dentro do buraco?

— Isso aconteceria se ele não fosse tão recente. O buraco está instável, se arremessarmos dentro da Dobra Temporal há uma grande chance que ele rode e saia pouco depois em direção a TARDIS, como um bumerangue.

— E como isso vai resolver o problema, Doutor?

— O cristal de açúcar vai absorver a antimatéria. Vai servir como microcoletores e quando voltar será o punhado de açúcar mais valioso do seu planeta. Vamos usar ele para dar um choque temporal e fazer o tempo passar. É nossa única chance.

Ele juntou a caixa com as mãos, foi até a beirada da porta azulada e arremessou com toda a força que ele tinha em direção a faixa vermelho-dourada que se revirava em raios.

A caixa metálica foi se aproximando do destino enquanto era alvejada com a eletricidade da singularidade do buraco negro, até que ela adentro no espaço anelar e pareceu irromper em chamas e desaparecer numa velocidade enorme. Menos de um segundo depois ela reapareceu no lado oposto, vindo a toda velocidade em direção à TARDIS, em chamas.

— Se abaixa!

Coloquei as mãos sobre a cabeça quando caí, e ouvi mais distante o baque pesado e metálico da caixa no chão próximo ao painel de navegação. A caixa estava enferrujada, havia cheiro de enxofre e metal queimado. Ela não parecia nem um pouco com a caixa que havia sido arremessada.

— Então aquilo no anel… É realmente fogo?

— Não. — Ele respondeu. — Aquilo é o tempo. A caixa viajou no espaço de meio segundo o equivalente a seis milhões de anos terrestres. O atrito temporal a desgastou dessa forma. É mais ou menos o que aconteceria se você colocasse a cabeça pra fora da janela de um carro que viaja na velocidade da luz.

O doutor pegou a caixa com as mãos e abriu: O açúcar branco havia adquirido um aspecto novo, lembrava uma grande pedra uniforme com brilho negro. Pareci pulsar na mão enrugada do Doutor, mas antes que eu pudesse me aproximar ele a guardou de volta no Chronolock e depositou a caixa no casaco.

— O nível de radiação desse cristal é muito alto. Se você tocar, vai morrer.

Apenas acenei enquanto ele girava os mecanismos e a nave entrava em movimento com o barulho do motor.

 

A porta se abriu mais uma vez e estávamos de volta a Juazeiro, na minha rua. Olhei o relógio do celular e ele continuava preso no mesmo segundo. A sensação de frustração e desespero começou a emergir.

— O que falta pra isso funcionar?

O doutor soltou os controles e caminhou meio metro para a direita, onde haviam mais botões num compartimento quadrado, também pequeno. Ele retirou o Chronolock do bolso e inseriu no espaço. Algumas luzes no painel se acenderam, ele pressionou alguns botões e pousou a mão sobre a alavanca.

— Falta puxar.

— E por que não o faz logo?

O semblante jovial e centrado do velho Doutor mudou para um de desapontamento e introspecção.

— Eu sou o Doutor, tenho mais de dois mil anos. Eu viajo pelo tempo e espaço, vi o nascer e morrer de planetas e espécies, vi o surgimento do Tempo e o minguar dele. Eu vi, vivi e venci. E eu gostaria que viesse comigo, há tantas constelações a serem vistas há tanta beleza a ser ainda explorada, mas… Mas eu sei a resposta que virá.

— Eu não posso…

— Sim, eu sabia, mas poderíamos voltar para esse exato momento, viajar pela eternidade e voltar para esse mesmo segundo congelado que estamos agora. O que me diz disso?

Eu respirei fundo, e deixei a mão pousar sobre a grade.

Talvez o maior desejo da minha vida seja viajar. Conhecer lugares, civilizações, culturas… Conhecer a vida. E isso seria muito bom. Inferno, isso seria maravilhoso. Mas para o homem bom que viaja o tempo e o espaço, acho que ele chegou atrasado. Eu poderia viajar o tempo e o espaço com você, mas o James não veria, ele não poderia imaginar sequer o que acabei de ver, toda a beleza do universo que vi. Ele realmente amaria ver tudo isso. Além do que, eu voltaria mais velha pra casa, eu não estaria com ele, entende? Eu não posso fazer isso sem ter a pessoa que mais amo no universo do meu lado, eu não posso. Ele me faz feliz, ele me dá um motivo para manter o sorriso no rosto até nos momentos mais tristes e sofridos, ele me apoia e e entende mesmo nas nossas diferenças e desavenças, e acredite, elas ocorrem muito. Então, Doutor, me desculpe, eu não posso.

Ele me encarou por um tempo, com os olhos sérios e as sobrancelhas de ataque em posição. E deixou um sorriso transparecer. Um sorriso melancólico de um homem louco com um caixa azul. Um homem solitário que poderia atravessar todo o tempo e o espaço.

— Fique com ele Mary Anne. Ele deve valer a pena por ter uma pessoa como você do lado. Se preocupando e cuidando dele. Eu me lembrarei de você.

Com um estalo dos dedos, ele abriu a porta da TARDIS e eu me dirigi até o lado de fora. Foram passos lentos porém firmes.

— Quando o tempo voltar ao normal, eu vou lembrar de tudo isso? De toda essa experiência?

Eu olhei em seus olhos enquanto perguntei. Ele sorriu mais uma vez e acenou com a cabeça.

— Olhe nas estrelas Mary, talvez me veja por lá.

Ele abaixou a alavanca e um clarão mais claro que a explosão da estrela inundou todo o universo.

 

Eram 3:16h da manhã. Eu acordei num pulo. Havia cochilado em cima do notebook e acabei colocando uma música de Nação Zumbi pra tocar. O volume estava alto e me fez despertar.

— Não tem problema gostar de Nação, amor, mas às 3h da manhã é um pouco tarde pra ouvir.

A voz do James era sonolenta, acabei acordando ele com o barulho.

— Desculpa amor, acabei cochilando aqui.

— Tudo bem amor, mas acho que devia encerrar por hoje, tá tarde e você deve estar muito cansada.

Eu olhei para a tela do computador, o olhar indo diretamente para o relógio que marca agora 3:17h.

— É… Cê tem razão, acho que por hoje tá bom.

Me levantei da cadeira e guardei os papéis e o notebook na bolsa sobre a mesa. Fui em direção ao banheiro e lavei o rosto sobre a penumbra da luz do quarto. O sonho parecia tão real, parecia tão vívido.

— Tive um sonho tão estranho amor, acho que você iria gostar.

— E é? O que rolou?

Eu me aproximei da cama e me aninhei do lado dele. O calor do James era reconfortante, não trocaria isso por nada.

— Sonhei que viajava pro espaço e que o tempo congelava eternamente no mesmo minuto, e que precisava resolver logo pra que tudo voltasse ao normal sem que houvesse problemas maiores.

— Hahaha… Cacete, essa história daria um livro muito bom.

Aquilo me fez sorrir, e na calada da noite jurei que pude ouvir a mil anos-luz o som de motores acelerando e freiando sob as estrelas.

— Pois é, e tudo isso acompanhado de um velho que se chamava Doutor.

— Um velho chamado Doutor? Mas… ele não tem nome nem nada?... Doutor Quem?


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