Espelho, Espelho Meu escrita por queijo e uvas passas


Capítulo 1
Reflexo do Tempo


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! :)



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Os gritos vindos das crianças a acordaram. Elas estavam do lado de fora do castelo, brincando com o convidado real, Matheo. Ele era mensageiro real do reino Dumfther, e havia vindo a fim de informar a Rainha sobre um acordo comercial entre os Reinos, que seria benéfico a ambos. Apesar de ser um mensageiro, era muito bom com crianças, pois tivera oito irmãos mais novos. Ele gostava muito delas. A Rainha levantou-se da cama e caminhou até a janela; o sol estava no ápice, devia ser meio-dia. Branca de Neve, sua filha adotiva, estava entre as crianças que brincavam; a menina tinha entre sete e oito anos, idade média das outras crianças. A Rainha a amava com todas as suas forças.

Vê-las correndo a lembrou de sua juventude, de quando conseguia correr, pular e rodopiar sem ficar com uma séria dor nas costas. Com quarenta anos, já não era nenhuma mocinha.

Olhou para o teto abobadado do quarto, para as paredes branco-mármore reluzindo à luz do sol. As cortinas vermelhas com arabescos dourados bordados no caimento; móveis elegantes, do estilo Renascentista. Os quadros sob encomenda e os comprados em exposições. Tudo muito luxuoso, chique e caro. Mas ela trocaria tudo isso para poder se divertir com as crianças como Matheo. Sentia falta disso, de poder brincar.

A Rainha foi até o sino localizado no canto esquerdo de seu quarto e tocou-o. Logo algum empregado devia chegar para atendê-la e preparar seu banho. Depois, então, almoçaria. Ela não costumava dormir até tão tarde, mas estava doente, com muita febre naqueles últimos dias, precisando de um descanso.

Caminhou até a ala direita do quarto. Olhou-se no amplo espelho; rubis e esmeraldas estavam cravejados na prata da moldura; as jóias eram os miolos das flores, que se desenrolavam nos arabescos, formando belos padrões.

Encarou seu reflexo. A juventude havia ido há tempo de seu corpo, mas os resquícios de uma garota continuavam fortes na sua alma de mulher. Batalhou desde seu nascimento por uma vida digna, não perfeita, mas pelo menos algo que fosse suficiente, porque sabia que merecia mais. Era uma guerreira. Continuava sendo, assim como sempre fora, só que agora não era mais tão bela quanto antes.

A sua dura vida no campo, anterior ao casamento com o Rei e à estadia no Castelo, sugou-lhe as energias de quando era jovem, embora antes não tivesse se refletido externamente; agora ela podia ver as cicatrizes de batalha: a coluna torta, as mãos e os pés cheios de calos, a pele e o cabelo ressecados devido à longa exposição ao sol, além das manchas e das unhas encravadas. Ela passara quase vinte anos no campo, não era para menos.

A Rainha lembrou-se de quando era mais nova e olhava-se no espelho de sua casa. Ganhou-o quando completara catorze anos. Tudo caindo aos pedaços. O espelho era sujo, manchado; a moldura era de madeira ressecada. A parte inferior esquerda do espelho estava quebrada, e a superior central rachada. Era inutilizável, contudo, ainda assim, ele dava esperanças, pois a fazia imaginar-se tendo muitos mais espelhos que, mesmo naquele estado, eram um luxo de onde ela vinha. Gostava de espelhos, principalmente os belos, pois simbolizavam algo que nunca pôde ter.

Mesmo com o espelho danificado, podia ver sua face refletida. Sabia que fora linda quando jovem.

Lembrava-se com clareza de seu primeiro marido. Seu pai a dera a um fazendeiro qualquer quando fez quinze anos; este era apenas alguns anos mais velhos, era educado, um bom moço, como dizia seu pai. Tivera sorte. Muitas das suas amigas acabaram se casando com maridos que a maltratavam, tratavam-nas como subordinadas e inferiores. Não o amava, mas era melhor que muitos por aí. Entretanto, Henrique, seu marido, morrera apenas três anos depois, num acidente infeliz com um cavalo.

Cerca de seis meses depois, casara-se de novo com outro fazendeiro, Richard. A Rainha era sortuda por ter conseguido casamento tão velha, dezoito anos, e sendo que já tivera um marido. Julgaram-na, chamaram-na de muitos nomes horríveis. Teve sua reputação arruinada por casar de novo; mas aquele era um mundo machista, que não permitia que se auto sustentasse, pois não ganhava o suficiente pelo seu serviço, e não tinha escolhas. De qualquer forma, mesmo que não se casasse, seria julgada por ser viúva.

Um ano depois, descobriu a traição. Estava sendo traída com a filha do joalheiro da cidade. Ele era grosso, mal-humorado e mandava em quem queria quando bem entendia, porém, não esperava isso dele. Sentira-se tão humilhada!  

Para ela bastava daquela vida. Pegou suas coisas e rumou ao Castelo. Lá encontrou emprego, abrigo, comida e amigos. Trabalhou, no início, limpando e faxinando. Depois começou a acordar as damas da realeza e ajudá-las com pequenas tarefas matutinas de higiene. Em seguida, caíra em suas graças, passando a servi-las. Ao longo do tempo, ela e o Rei Jorge foram trocando olhares cúmplices, segredos, carinhos, e ficando cada vez mais próximos… O caso virou amor, amor de verdade, tanto que o Rei a pedira em casamento. E ela, é claro, aceitou.

Agora só via rugas. Olhar-se no espelho era torturante. Não se via mais. Era como olhar no espelho e ver outra pessoa, outro ser humano. Não era ela, não podia ser ela.

Quem era aquela mulher de expressão cansada? Sempre fora cheia de vida.

Quem era aquela com cabelo arruinado? Sempre tivera um cabelo brilhante.

Quem era aquela com olheiras, rugas e manchas? Sempre tivera a pele perfeita.

Quem era aquela mulher ossuda, com a barriga inchada, seios e nádegas flácidas? Sempre fora magra e tivera corpo escultural.

Quem era aquela mulher com a saúde precária, doente, precisando de remédios, pomadas e cremes? Sempre fora saudável.

Quem era aquela, se adonando de sua face, possuindo seus recursos escassos de energia, roubando seu reflexo? Era ela mesma. Sempre fora dona de si mesma.

Não.

O tempo sempre fora dono de seu corpo, e era agora que a Rainha o percebia.


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Notas finais do capítulo

E aí? Gostaram? Comentem, favoritem, façam críticas, vejam minhas outras histórias (merchan básico, quem nunca, né, more?). ♥