Ando pelas ruas da cidade que permanece adormecida, alheia aos seus mais recentes e mórbidos acontecimentos. Na manchete dos jornais, sensacionalistas como de costume, vejo as letras garrafais que acusam mais uma vítima desaparecida, vítima provável do assassino que apelidaram de Diabo Sedutor.

Ignoro-as e continuo meu caminho, sentindo as brisas que sopram sobre mim suas gélidas carícias, fazendo-me arrepiar por inteiro. Inspiro longamente e deixo que os aromas da manhã invadam meu ser, mas tudo que sinto é o cheiro da grama molhada pela chuva da noite anterior.

Será mais um longo dia no clube, com os mesmos ensaios de sempre, que guiam meus passos com sua mísera coreografia sem vida. Erro sem querer, pois meu corpo luta para ser livre, desejando dançar por si só em um palco que o reconheça como belo por sua arte e não pela grossura de suas coxas.

Volto para minha casa e descanso, à noite eles terão seu show e minha alma se afogará mais um pouco.

O tempo passa sem que eu perceba e quando noto o sol vermelho surge como um alerta. A velha senhora da casa ao lado insiste em debochar de meu talento, mas respiro fundo e começo a cantarolar, de forma rouca e sem ligar para as ironias de quem já viveu o que podia e só pode agora observar de longe.

No caminho jogam sobre mim conselhos infundados, para que me proteja do diabo mascarado, e deixo escapar meu riso frouxo. Os fantasmas podem dançar sozinhos, que estarei bem em meu palco a cantar. Independente de onde estiver, meu destino está traçado e só ele poderá ditar as regras do meu viver.

Passo o batom rubro pelos lábios e sorrio para meu reflexo no espelho, essa noite pertence à mim e farei dela meu espetáculo.

Danço para mim e para as estrelas, mas são os homens que aplaudem e dentre eles um observa-me atentamente, como um caçador que escolhe sua presa e fixa seus olhos nela até que seja sua.

Naquela noite eu percorreria um longo caminho, mas não voltaria para casa.