Heart's Desire escrita por Senhorita Nada


Capítulo 1
Heart's Desire


Notas iniciais do capítulo

Apenas pra coroar eu ter postado essa fic meia hora antes do fim do prazo, o Nyah acabou com minha formatação. Tive que vir depois editar tudo pra ficar bem bonitinho, até porque ele tinha comido todos os travessões. Valeu aí, Nyah ;u;

Essa fic é gigante, sim, mas não se assuste, nobre leitorx! Ela é dividida em várias pequenas cenas razoavelmente fáceis de ler, e espaçadas entre si. Então vai fundo, que dá pra ler tudo sim hahahaha ♥

As frases mágicas nessa fic são Gaélico Escocês traduzido no Google Translate (taí uma boa dica pros mestres de RPG que também leem fanfic). Eu ia botar em Galês, pq ao menos sei ler o suficiente pra traduzir de forma menos as cegas, mas acho que as pessoas lendo iam nem saber pronunciar, então fica Gaélico que tem mais vogais parecidas com o português, LMAO. As traduções de todas as palavras estão nas notas finais~

Falando em RPG, pra quem manja, tem uma dose saudável de Mago, a Ascensão no lore dessa fic, pq eu sou GM desse sistema e é lindo ahhhhhh

Also, MUITO importante: Magia queimar pessoas é uma ideia que ouvi originalmente de minha querida irmã gêmea Coward Montblanc para uma original dela, e está aqui basicamente como um enorme shout-out pra como eu a adoro e a tudo que ela escreve. ♥

Já fica o aviso de que essa fic tem o Oikawa sendo um canalha desgracento de todas as formas. O que pra mim tá longe de ser problema, porque adoro ele e adoro canalhas desgracentos fictícios! Também tem milhões de referências sutis e não-tão-sutis ao canon de Haikyuu, pq eu valho a quantia de absolutamente nada.

Creio que seja tudo. Toca pro capítulo e espero que gostem!



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O garoto era um achado interessante.

Inicialmente, Tooru não estava impressionado. O novo cliente era um menino magro e definido, de olhos grandes e rosto infantil, ansiosamente afastando os fios ruivos de seu cabelo da testa. Pouco a oferecer que não o que carregava nas costas e a surpresa que mostrava no rosto. Seu olhar seguia os arredores como um pintinho assustado, absorvendo os detalhes do escritório o quanto podia: As grandes janelas atrás da mesa deixando antever o céu noturno, o lustre que pendia baixo com os planetas em suas órbitas preguiçosas, o leve murmurar dos livros antigos quando pensavam não serem vistos. Ao menos isso, uma pequena gota de poder, Tooru iria ganhar com aquela visita. Ver a admiração era quase tão empoderador quanto ouvi-la.

Com um gesto rápido, fez a porta se fechar atrás do garoto, dando uma pequena risada quando este deu um sobressalto em retorno. Finalmente o menino o vira, e ele se deixou apreciar sua surpresa. Tooru era todo sorrisos e uma apresentação milimetricamente preparada, da aparência perfeita aos ternos feitos sob medida, do tempo que teria que olhar nos olhos para criar confiança, nos gestos de auto-importância e certa condescendência. Coisas que se desenvolvia em anos de prática nos círculos da magia, se não deixasse seu poder consumir a si, sua alma ou sua mente.

Erguendo um dedo brincalhão, ele chamou o garoto para perto, indicando que se sentasse na grande poltrona à sua frente.

Era patético, ele pensara enquanto o menino tomava lugar na cadeira à frente. Garotos como aquele tinham pouco potencial e desejos simples, coisas pequenas que não alimentam a fome de um grande mago. “Quero ser mais alto.” “Quero tirar notas melhores.” “Quero o amor de alguém.” Desejos tão fúteis quanto a si próprios, e indignos de alguém que se dedicara tanto quanto ele. Ainda assim, tinha sido essa coisinha que conseguira o interesse de Tobio-chan, se Iwa-chan estivesse certo. Ah, meu querido aprendiz. Ele sempre pensou pequeno, a bem da verdade. Quase cinco anos passaram rapidamente desde a última vez que vira Kageyama Tobio, cinco anos de apreensão para o Grande Rei da Magia em relação a seu trono. Mas se isso era tudo que Tobio andara fazendo em sua ausência, então talvez Oikawa não tivesse tanto o que temer do antigo aprendiz quanto originalmente pensava.

O rapaz se sentou, tenso, os dedos pressionados fortemente contra o estofado da cadeira como se segurar alguma coisa fosse deixá-lo mais confortável, mas o olhar de Oikawa já estava além disso. Atrás do garoto, ele podia ver as grandes asas negras apertadas contra o espaldar, as primeiras coisas que de fato despertaram seu interesse. Eram grandes para sua altura, cobertas de plumas escuras e brilhantes, um leve farfalhar a cada movimento ansioso que seu dono fazia. Que tipo de sonhos e aspirações aquele menino deveria ter para que seu potencial se mostrasse em asas tão grandes? Discretamente, o mago correu a língua sobre os lábios. Aquelas asas eram lindas, e ele as queria. Seu sorriso era mais real agora, e mais afiado, com a ideia de conseguir mais daquela transação do que alguns momentos fugazes de admiração e o sofrimento de Tobio.

O garoto quebrou o silêncio primeiro, parecendo ter chegado a um consenso dentro daquela cabecinha. Sua voz era surpreendentemente segura para alguém que não parecia ter mais de quatorze anos - apesar de que, pelo que soubera por suas fontes, ele deveria ter a mesma idade de Tobio. Não era sequer um mago, apenas um garoto sem um pingo de habilidade.

— Me disseram que é o melhor mago da região, Senhor Oikawa. Que você pode realizar qualquer contrato, mesmo aqueles que ninguém mais conseguiria. - Ele lhe falava olhando diretamente nos olhos, ou melhor, para a janela ampla atrás dele. - Isso é verdade, certo? Não é exagero?

— Direto ao ponto, hm? - Oikawa apoiou os cotovelos na mesa e o rosto nas mãos, divertido. -  Gostaria de dizer que é verdade, pequeno. Ao menos até agora nunca encontrei algo que não pudesse fazer…

— Isso inclui poder dar magia a alguém? - Direto ao ponto talvez nem fosse mais a expressão certa para descrever o menino, sendo substituída por ‘brutalmente honesto’. O mago começava a ver um motivo para Tobio ter se afeiçoado tanto a ele.

— Hmmmm, peculiar, mas possível. E perigoso, eu devo acrescentar. Você tem consciência do que está me pedindo, pequeno? Eu teria que reescrever você por inteiro. Seria um risco para nós dois. - O mago franziu a testa, o olhar suavizado na perfeita imagem de preocupação que tinha treinado para aquele momento. - Preciso que tenha certeza do que está fazendo, e de como vai ser custoso. Sou uma alma caridosa, mas não de graça, especialmente quando existe risco a mim.

— Eu não me importo. - O clientezinho se esforçava para manter um timbre seguro na voz, Tooru percebia, mas não conseguira esconder como engolira em seco antes. Não tão seguro quanto quer passar, hm?  - Eu pago qualquer coisa que você quiser. Estou preparado.

— É mesmo? Muito bem então. Gosto da sua determinação. - Decidindo mudar de abordagem, o mago baixou os braços e se inclinou mais para perto do garoto, forçando uma aproximação. - Qual o seu nome?

— Hinata. Hinata Shoyou.

— Hinata-chan.— O nome parecia rolar de sua língua. - Me diz que posso pedir qualquer coisa. Mas o que está realmente disposto a me dar por esse poder? Você me daria seu primeiro filho? Suas memórias de infância? Sua voz? Suas asas?

A cada palavra, Hinata parecia arregalar um pouco os olhos. Como Tooru imaginava, ele não tinha ideia do tipo de negociação em que estava se metendo, e o Grande Rei foi forçado a segurar um suspiro de desapontamento. Tobio! O que anda fazendo com esse ignorante? A última sugestão, no entanto, iria apenas aumentar a sensação de desaprovação do antigo mestre, pois o garoto ruivo imediatamente franziu a testa, a cabeça levemente inclinada e o olhar de surpresa e desentendimento. - ...Asas?

— O quê? Tobio-chan nunca lhe mostrou?

A resposta estava no rosto do menino antes mesmo que ele a formulasse em palavras. Oikawa se permitiu dessa vez soltar aquele suspiro contra o qual lutara antes. Ele se ergueu com suavidade, a cadeira se afastando sozinha para lhe dar espaço, e correu os dedos pelo cabelo castanho antes de sinalizar que o garoto se levantasse também. Com a voz pingando condescência e bondade paternalista, ele mencionou que o seguisse. - Venha comigo, meu anjo. Eu vou lhe mostrar.

Uma das várias estantes ordenando as paredes ao redor deles se afastou obedientemente, revelando uma entrada para outra sala. Consideravelmente menor e simples, com paredes, chão e teto de pedra bruta, o único objeto no lugar era um enorme e luxuoso espelho. As bordas do espelho eram de cobre polido e ornamentado com imagens de criaturas mágicas diversas. A superfície reflexiva era límpida, tão clara que mal parecia sólida. Candidamente, Oikawa conduziu seu pequeno convidado e lhe expôs ao espelho com uma piscadela de encorajamento.

A respiração de Hinata pareceu ficar presa em seus pulmões. Na imagem do espelho, ele tinha asas. Enormes asas escuras, parecendo até mais altas que ele. Rapidamente ele tateou as costas, sentindo apenas o tecido da camiseta sob seus dedos. Sua expressão deve ter sido engraçada, porque o Grande Rei soltou uma gargalhada a suas custas.

— Calma, calma. Você não vai poder tocá-las. Elas não existem no mundo material.  

— O que é isso então…?

O mago, para sua frustração, resolveu devolver a pergunta, um leve sorriso nos lábios. - O quanto sabe sobre magia imaterial?

Hinata olhou para os sapatos, as bochechas levemente vermelhas ao morder o lábio inferior. - N-não muito. Eu sei que pessoas como Kageyama e Kenma conseguem ver coisas que os outros não conseguem. Tipo espíritos.

— A magia toca em aspectos desse mundo que raramente vemos, Hinata-chan. Coisas como sonhos, sentimentos, emoções… Desejos.— A cada palavra, a figura do mago se aproximava mais, e o garoto não pôde evitar de se encolher ligeiramente para longe dele. Não se sentia realmente intimidado, e o moreno não se forçava demais em seu espaço pessoal… Mas algo na figura de Oikawa Tooru parecia deixá-lo em alerta. Até agora ele não fora menos do que agradável, se um pouco arrogante - bem diferente do pouco que Tobio trazia de seus momentos com o ex-professor. Estaria reagindo a isso, ou ao medo instintivo de magia?

Era difícil lidar com o potencial de virar o mundo de cabeça para baixo normalmente depois do que acontecera com Kenma.  

Aparentemente sem perceber seus dilemas internos, Oikawa sorria aprazivelmente para ele, continuando sua explicação com pequenos gestos que deixavam breves trilhas de luzes no ar. - Digamos que as asas são a demonstração do seu potencial. Sua determinação. Você não se entrega fácil, não é, Hinata-chan? Mesmo que não possa fazer magia, isso se mostra àqueles que podem ver.

Assim como um aviso da deliciosa energia que você tem. O mago não pôde deixar de pensar. A seus olhos, Hinata brilhava literalmente, rodeado pela admiração, receio, determinação e medo que tentava e falhava em esconder em seus gestos. Emoção era uma grande parte da prática mágica - o que podia deixar um conjurador fora de controle, ou garantir energia suficiente para enfeitiçar uma cidade inteira. As asas de Hinata, feitas das aspirações e sentimentos que o impulsionavam, poderiam fornecer poder suficiente para alguém como Oikawa passar uma semana fazendo alta magia diariamente sem sequer suar. Pouquíssimas vezes ele vira potencial dessa forma, e sempre acompanhado de algum mago de elite, como o três vezes maldito Ushiwaka e seu pequeno Eita. Tobio-chan deve estar perdendo o toque, se deixa você gastar tudo isso sem tomar um pouco. Bom, melhor para mim…

— Eu… Diria que sim. - Hinata deu uma risada desconfortável, coçando de leve o queixo com o indicador. - Dizem mais que sou teimoso do que determinado, mas....

— Teimosia é um nome feio que as pessoas colocam em quem não se deixa abater pelo mundo. - A voz do Grande Rei era suave como seda. -  Eu admiro isso, sabe.

O garoto baixou os olhos ao chão, embaraço e surpreendente hesitação abraçando-o em sua miríade de emoções. Parecendo ponderar cuidadosamente suas palavras, ele voltou a erguer os olhos a Oikawa, dessa vez de fato o encarando nos olhos. Seu medo sumiu, o mago pôde perceber. - Se você tirar as minhas… Asas… Eu vou perder isso?

O Grande Rei riu novamente, cobrindo a a boca com a mão numa tentativa de ser mais educado. O garoto tinha lhe enviado um olhar impressionantemente venenoso quando ele mais uma vez rira de sua dúvida, e Oikawa inspirou profundamente para responder de forma adequada. - Claro que não, tolinho. Ninguém pode tirar algo que vem de dentro de você assim. Digamos que eu estaria retirando sua energia atual. Você se sentiria cansado e abatido por algum tempo, mas se sua força é tão grande quanto está parecendo, logo elas cresceriam de novo, e você estaria como novo… Com a adição de agora poder usar magia. - Ele acrescentou com uma piscadela.  

— Tem certeza? É só isso?

— Eu nunca minto em meus negócios, Hinata-chan. Até porque, seria imprudente da minha parte mentir sobre algo perigoso assim. O Conselho de Magos está sempre de olho.

— Eu só achei que… - O ruivo se interrompeu de súbito, uma sombra de arrependimento passando por seu rosto. Mais uma vez, era a resposta que Oikawa precisava.

— Que Tobio-chan tenha dito que eu não era confiável? - Ele completou tranquilamente, apreciando como Hinata visivelmente titubeou com a resposta. - Eu imaginei que ele fosse mencionar isso a você. Sabe, ele não está de tooodo errado. Como todo mundo, cometi meus erros, com o agravante de que meus erros envolviam magia. Mas eu paguei por eles há muito tempo. Tobio-chan lhe contou como ele deixou de ser meu aprendiz?

— Não. - O garoto tinha parado de lhe olhar nos olhos de novo, a face novamente rosada e os lábios pressionados numa linha. - Ele nunca quis falar sobre isso.

— Não tiro a razão dele. - Com outro suspiro calculado, Oikawa começou a lentamente desabotoar seu colarinho. Foi por pouco que conseguiu controlar o impulso de rir novamente quando Shoyou deu um passo para trás, o olhar correndo de seu rosto até as mãos que desfaziam os botões da camisa branca, tão vermelho que agora o rubor ir até as orelhas. Com descaso, Oikawa continuou descendo suas mãos, sem interromper a narrativa. - Sem dar muitos detalhes, eu fui arrogante, e houve um acidente. Ele entendeu que continuar comigo era um risco. Eu respeitei a decisão dele, mas é uma das marcas que carrego, junto com essa cicatriz.

Com isso, ele puxou parte da camisa para a direita, mostrando a feia marca que cortava parte de seu peito. Por cima dos músculos definidos, o tecido cicatrizado e repuxado descia sinuoso e avermelhado do ombro até seu abdômen, com várias ramificações que se espalhavam dolorosamente pela pele dos arredores. Mais do que cicatrizado, ele parecia queimado, como se a pele tivesse derretido e se recomposto. Não muito diferente do que aconteceu, a bem da verdade. A camisa aberta também revelava uma corrente fina ao redor de seu pescoço, um colar simples que terminava com o pingente de uma delicada cigarra dourada.

Hinata não queria encarar, levando em conta as circunstâncias e o fato de que, por mais que se esforçasse em negar, ele não poder deixar de admitir que Oikawa Tooru era um homem muito atraente. Era difícil não fazê-lo, no entanto, depois do que o mago lhe contara. Um acidente. Com Kageyama. Outro, em que outra pessoa que não ele se machucou. Seja o que fosse - parecia uma queimadura, mas Hinata não sabia tão bem de magia para ter certeza - parecia ter quase rasgado o mestre de seu amigo ao meio… E depois disso era Kageyama que tinha decidido ir embora, sem aparentemente se importar com o que acontecera? Isso não fazia sentido com o pouco que Tobio havia lhe dito. Mas, e Hinata torceu de leve o lábio em lembrar, aparentemente seu melhor amigo tinha deixado de lado muitos detalhes importantes das histórias que contava. Primeiro em relação a Kenma, agora a ele mesmo e a Oikawa. Duvidar de Tobio lhe doía, mas no que acreditar, de fato, numa situação dessas?

Felizmente, o Grande Rei continuou a falar, e Hinata focou nas palavras dele para evitar voltar àqueles pensamentos dolorosos. - Me desculpe, eu não devia falar sobre isso com você. Se Tobio não quis lhe dizer nada, ele deve ter seus motivos. E foi errado da minha parte mencionar um acontecimento desses em função do que aconteceu com vocês recentemente.

— Não, está tudo bem. Não me ofendeu. E… Se me permite, é bom saber em primeira mão assim as consequências do que posso fazer.

Abotoando novamente a camisa, Oikawa deu um sorriso encorajador na direção do garoto. Ao terminar de se arrumar, ele se curvou levemente, sinalizando que Hinata tomasse a frente enquanto os dois saíam da sala do espelho. Mal estavam fora, a estante rolou fluidamente de volta ao lugar, escondendo a entrada de tal forma que o ruivo não conseguiria mais dizer por onde exatamente tinham entrado.

De volta a sua cadeira de espaldar, Oikawa abriu uma das gavetas e tirou de dentro pena e tinta, colocando-as em cima de uma folha limpa antes de limpar a garganta e voltar sua atenção novamente a Hinata. - Estávamos falando do seu contrato. Me perdoe, eu tendo a ir em tangentes como essa. Por tudo que viu até agora, você tem certeza de que é isso que quer fazer?

O garoto concordou veementemente com a cabeça, voltando a encarar o mago diretamente. - Sim. Na verdade...Essa conversa me deixou mais decidido. - Como eu planejava, Tooru acrescentou mentalmente. -  Eu também cometi um erro, e eu preciso de uma chance de repará-lo… Entendo o risco. Entendo que estou pedindo muito. Mas eu iria me condenar pelo resto da vida se não fizesse algo.

Foi a vez de Oikawa concordar, um sorriso de satisfação no rosto bonito. - Muito bem. Eu gosto da sua determinação. Combina com seus olhos. - Com a pequena vitória adicional de ver o rapaz vermelho novamente, ele puxou com cuidado a corrente que levava por dentro da camisa, até segurar a cigarra na mão. Aproximando-a da boca, ele falou audivelmente, ignorando as sobrancelhas levantadas no rosto de Shoyou. - Iwa-chan, pode ir preparando o porão pra mim? Proteção de nível 5. Por favorzinho?

Eu não tenho escolha, não é? A voz séria e resignada de Iwaizumi parecia soar diretamente em seus ouvidos, de forma que sempre mandava arrepios prazerosos por sua espinha. Já estou aqui embaixo.

— Tão eficiente.— Tooru deu uma pequena risada, mais afetuosa e discreta do que quando rira de seu cliente anteriormente. Guardando novamente o pingente, ele se voltou a Hinata. - Já vou lhe avisando, Hinata-chan, que vai ser um processo longo, demorado e incrivelmente desconfortável, para dizer o mínimo.

— Se fosse fácil e indolor eu até desconfiaria.

— Certo está você. Não existe magia sem sacrifício. É importante que saiba disso, já que vai ser um de nós agora. - A pena corria sozinha sobre o papel com fluidez, anotando os termos decididos numa caligrafia precisa. - Agora, aos pormenores. Que tipo de magia você quer?

— O tipo importa?

— Claro que importa, queridinho. Magia tem muitas nuances... Desde alguém medíocre, com um poder como ver o que já aconteceu, até o poder de operar milagres. Nem todo mundo nasce capaz de desafiar o mundo… Mas aí que entram pessoas como eu. O que exatamente você tem em mente? - Como se eu não soubesse muito bem. Você quer salvar seu amiguinho Kenma.

— Eu... Eu quero ser capaz de curar alguém. - Bingo.

Hmmmmm. Que tipo de cura? Curar a mente? O corpo? O coração? A alma? Tudo. Tudo que eu puder… Eu vou precisar.

O Grande Rei fingiu um suspiro de exasperação, jogando as mãos para trás em quase derrota. - Ah, Hinata, você pede muita coisa. Nem mesmo alguém da minha capacidade pode lhe transformar num curandeiro mágico da noite para o dia. Há um limite no que sou capaz de lhe dar.

Shoyou parecia prestes a pular da cadeira, os nós dos dedos brancos ao segurar a mesa a sua frente e encarar Tooru com aqueles grandes olhos suplicantes. - Você disse que podia me fazer um mago!

— E eu posso. Mas, como eu falei, sua magia terá certas restrições. Você terá que obedecer a essas limitações para usar sua habilidade, e nunca terá o poder de um mago natural. Ninguém poderia lhe dar mais do que isso. Nem mesmo Tobio.

Era fascinante ver a dor naquele olhar, nos olhos baixos e perdidos, nos músculos dos ombros se retesando, na boca encolhida no esforço de não chorar. Era surpreendente para Tooru o quão bonito Hinata ficava quando triste. Quase lhe dava vontade de destruir as esperanças dele ali mesmo, para apreciar o quão bonito ele seria chorando. Quase sendo a palavra chave.

Suavemente, ele estendeu a mão por cima da mesa, com um toque afetuoso, reconfortante, nas mãos do garoto. Com o cuidado de uma voz delicada e respeitosa, ele prosseguiu.  - No entanto, o que sou capaz de fazer é mais do que suficiente para que cure Kozume. Eu não o teria deixado vir tão longe se não pudesse. E, acredite, Shoyou. Eu farei o meu melhor por você. É uma promessa.

 

 

Hinata se surpreendeu quando percebeu que estava tremendo. Depois de terem definido os pormenores do contrato, Oikawa o levou por uma longa escadaria de pedra, descendo sempre. Ele tinha a impressão de que o tal porão era bastante embaixo da terra - ainda que o escritório do mago fosse no último andar do prédio. Aparentemente a magia tinha suas vantagens arquitetônicas de poder cruzar distâncias mais rapidamente.

A sala em si não era bem como esperava - o tipo de oficina de pedra empoeirada que Tobio tinha nos fundos de sua casa, ou o quarto de estudos mágicos de Kenma. O ‘porão’ de Oikawa Tooru era consideravelmente maior e retangular, com as paredes de um azul profundo como o céu noturno e o chão de mármore escuro e polido, adornado com fios de ouro. De um lado havia uma piscina decorativa - ele presumia - de água parada como um túmulo. A parede oposta estava coberta de mais estantes cheias de potes entiquetados, alguns abertos, outros fechados, e alguns trancados a corrente e cadeado. No centro da sala estava o que parecia ser uma mesa do mesmo mármore do chão, até Shoyou perceber, com um leve arrepio, as pesadas correntes na cabeceira e pés da estrutura.

Um homem estava testando as correntes, puxando os elos de um a um para verificar sua força. Ele era alto e forte, o jeans e camiseta social não sendo capazes de esconder seu porte, ou mesmo seus braços definidos - se a corrente conseguia resistir a ele, então Hinata supunha que resistiria a maioria das pessoas com facilidade. Seu rosto era de traços fortes, com olhos castanhos e profundos, e uma expressão de insatisfação resignada. O cabelo também era castanho, cortado curto. Ele deveria ser o tal “Iwa-chan”, mas Shoyou não conseguia ver como que aquele honorífico poderia ser usado com aquela pessoa.

E ainda assim, Oikawa o usava. - Tudo pronto, Iwa-chan? - O mago parecia mal se conter de expectativa, mas Hinata se mostrou mais preocupado com agora ter um enorme cadeado na porta por onde entrara. Não há como sair mais dessa. Eu estou realmente fazendo isso. O ruivo mordeu o lábio inferior

‘Iwa-chan’ maneou com a cabeça o mínimo possível para ainda ser uma afirmativa. - Sim, sim. Só falta ele. - Com um toque de horror, Hinata percebeu que se referia a ele.

— Você vai me acorrentar??

O homem se virou para ele, com aqueles olhos frios suficientemente ameaçadores para Hinata se encolher. Em contrapartida, a voz do moreno era surpreendentemente gentil. - Acredite em mim, é pra que nenhum de nós se ferre no final dessa loucura. Elas são preparadas pra isso, veja. - Ele abriu uma das algemas, mostrando o acolchoamento interno. - Só acontece das pessoas se debaterem durante o ritual, e aí elas podem acabar se machucando ou a um de nós.

— Faz muito tempo desde a última vez que lhe vi falar tanto com alguém, Iwa-chan… Me dá até um pouco de ciúmes. - Enquanto Hinata estava distraído com o medo, Oikawa tinha caminhado até a piscina de pedra que o ruivo vira anteriormente. Ele tirara um saquinho de ervas do bolso do terno, e agora as adicionava lentamente à água, murmurando coisas incoerentes em voz baixa e girando a mão no sentido anti-horário ao deixar os pedaços caírem e afundarem.

— O garoto tá se tremendo. Ele merece algum conforto antes de você botar as mãos nele.

— E-eu estou bem. - Shoyou afirmou, com toda ciência de que o jeito com que sua voz quebrara apenas tornava o que dizia mais mentiroso. - Vamos logo com isso.

Engolindo em seco, o rapaz se deitou na cama de pedra, lisa e fria sob seu toque. Seu coração batia tão forte que ele quase o imaginava subindo pela garganta e pulando para fora de seu corpo. Ele apoiou a cabeça e o pescoço na pedra, inspirando profundamente para tentar se acalmar, mas não importava o que fizesse, não parecia parar de tremer, mesmo enquanto Iwaizumi ajustava seus pulsos e tornozelos nas correntes. Como o ajudante dissera, elas eram bastante confortáveis, apenas não o suficiente para acalmar o garoto ansioso na iminência de ter sua alma reescrita.

Ao fundo, ele ainda conseguia ouvir Oikawa falando. Era baixo demais para entender no início, mas, aos poucos, Shoyou conseguia distinguir o que pareciam ser palavras numa língua muito estranha. De novo e de novo, o Grande Rei repetia o encantamento, e a cada nova entonação, o ruivo sentia um arrepio descer por seu corpo. Dessa vez, não era apenas medo ou ansiedade, e sim expectativa. Ele conseguia sentir o poder das palavras, como se o mago estivesse chamando algo, e imediatamente mordeu o próprio lábio, torcendo que a dor o mantivesse neste ritual, e não o levasse de volta ao último que presenciara.

Tha mi a 'gheata, eadar an t-saoghal agus am fear eile.
Tha mi an tè a rips ach a-mhàin an veils de buil.
Mise an bringer atharrachadh, neach-fìrinn, maighstir miann.

Seu coração estava em disparada agora, o suor frio descendo por sua coluna enquanto os pelos de seu braço se arrepiavam, e com olhos arregalados Hinata tentava compreender o que estava acontecendo a seu redor. Havia um peso opressivo na sala, diretamente sobre seu peito, e logo ele se sentia arfando com o esforço de respirar. Não havia sinal de Oikawa nem de Iwa-chan, apenas ele, sozinho. Os dois o tinham deixado para trás?

A dor o pegou de surpresa, como se uma lança tivesse rasgado caminho por seu peito. Mas mesmo a dor de uma lança teria parado, ao contrário desta, que só parecia se tornar mais forte a cada segundo que passava. Ondas e ondas de dor passavam por ele, por partes dele que ele sequer lembrava que tinha, de tal forma que o ruivo achava que iria desmaiar ou morrer logo, e não podia dizer qual das duas possibilidades era melhor. Não havia mais nada no mundo que não dor, e ele sentia a dor de todas as formas - em sua língua, em seus olhos, em sua pele, em seus ouvidos, em seu nariz, na sua mente, na sua alma. Podia ter durado um segundo ou vinte anos, alguns instantes ou sua vida inteira, e a única coisa que o mantinha são naquele momento era a súplica e a esperança de que em algum momento, em algum ponto, ela teria que acabar.

E ele estava certo.

Agus tha mi òrdachadh thu, gus mo thoil, gu fuil ar cùmhnant
Atharrachadh. Die. Agus bhi air a bhreith a-rithist.
Bheir mi dhuibh am beannachadh tro bheil thu a thèid reborn
Chan ann mar cadail anam, ach mar an dùsgadh, mar aon de dhuinn
Tro mo òrdugh, le mo thoil, bithidh tu tilleadh mar aon a leigheas agus a 'sàbhaladh

Agora não havia dor, mas também não havia mais nada. Não havia nada a seu redor que pudesse sentir, como flutuar no vácuo sem fim nem fundo. É assim que é a morte? Esse vazio? Depois daquele tormento, parecia uma alternativa confortável, ficar para sempre sem sentir nada. Mas ele não podia ficar ali, podia? Não. Eu tenho que ajudar Kenma. E Tobio… A gente precisa muito conversar...

Abriu os olhos. A seu redor, o mundo inteiro brilhava sob uma nova luz. As paredes, antes simples, estavam cobertas de símbolos complicados que pulsavam multicoloridos no escuro a seu redor. O chão era uma multitude de linhas que se cruzavam, energia que se acumulava num nodo logo abaixo da cama de pedra… Onde ele ainda estava deitado. Era uma sensação estranha, não sentir nada, mas ver a si próprio deitado longe, assustadoramente pálido e sem se mexer. Mais ainda era a de ver o braço de Oikawa Tooru enterrado em seu peito, exatamente no lugar de onde a dor viera. O mago em si era totalmente diferente agora, ele podia ver, com suas próprias asas de penas de muitas cores, os olhos que brilhavam dourados, e o rosto contorcido de dor enquanto o que pareciam ondas elétricas desciam pelo seu braço para dentro do corpo de Hinata.

— Desconfortável, não é? - A voz de Iwa-chan estava próxima, bem mais próxima do que todo o resto da cena. Se estivesse em seu corpo, o ruivo provavelmente teria tido um sobressalto. Naquele estado, não precisava mais dos olhos para observar, então pôde ver uma sombra que se aproximava, mais ou menos da mesma altura que sua contraparte material, sem ter que desfocar do ritual a sua frente. Pelo que podia ver, os olhos de Iwa-chan continuavam os mesmos, assim como sua voz. - Não se preocupe. Você está indo muito bem. Dá pra ver que a ligação com seu corpo é forte. Você não vai morrer hoje.

— Você... Você morreu?

— Um dia. Faz uns cinco anos. - Era surreal a forma casual com que os dois estavam conversando agora sobre estar morto. Hinata nunca acreditaria se estivesse ouvindo isso de outra pessoa. - Olha, agora ele vai chamar você de volta. Lhe vejo já, do outro lado.


'S e sin am beannachadh a phàigh thu airson roimhe le do bheatha.
Do bheatha eile, aislingean agad airson do mhiann
Ur n-anam airson mo thlachd
Agus a nis, a dh'innseas mi dhuibh...

O cântico mudou. A sensação também. O mundo continuava brilhante, pintado em energia de diferentes tipos, mas agora Shoyou sentia uma compulsão por se aproximar novamente na mesa… E de seu corpo inerte. Como um imã, o Hinata desacordado chamava de volta seu espírito, e ele se aproximou, ansioso, porém hesitante. Não queria morrer, mas o que viria agora? Aquela dor novamente? Ele não queria passar por isso de novo. Agora que estava perto, praticamente parado ao lado de si mesmo, ele via que seu corpo voltava lentamente a ter cor, a parecer vivo, ainda que o braço de alguém continuasse dentro da sua cavidade toráxica. Oikawa, por sua vez, parecia incrivelmente desgastado. Estava pálido, com olheiras fortes sob os olhos fechados, e grandes manchas vermelhas se espalhavam no branco de sua camisa.

Ele estava sendo sincero quando disse que isso seria um risco a ele também. Está machucado… Shoyou se sentia mal agora. Ele tinha duvidado tanto de Oikawa quando chegara ali; pelo pouco que Tobio lhe dissera, aquele homem devia ser um monstro. Se Oikawa fosse realmente tão ruim, teria aceitado aquele contrato? Ele sabia o que tinha acontecido. Sabia da situação de Kenma. Sabia quem ele era, e da ligação dele com Kageyema. Se ele é tão obcecado com se vingar, por que não me mata agora? Ele podia simplesmente desistir. Eu não voltaria pro meu corpo, e a maldição dele seria cumprida.

O Grande Rei abriu os olhos, e Hinata percebeu que ele o encarava diretamente; não a seu corpo na mesa, mas a sua alma parada ao lado dela. O cântico estava no fim, com a voz do mago descendo gradualmente em volume depois de ter gritado praticamente metade do encantamento, até que sua voz parecia mais um murmúrio, um leve sussurrar ao pé de seu ouvido, um segredo compartilhado. - Hinata Shoyou: Dhùisg.

A força que puxava Hinata finalmente venceu, e ele se viu num turbilhão de volta ao mundo material.

 

 

“—  Então está definido. Eu lhe darei o poder de cura mágica. Em troca disso, você irá me dar suas asas. Suas lindas asas. E isso não é tudo.

— Não?

— É claro que não, pequeno. O que você me pediu é muito caro, lembra? Eu preciso de mais para fechar esse contrato. E eu quero… Você.

— Um dia, Hinata Shoyou, eu vou lhe chamar, e você virá. Você irá me obedecer, porque você me deu a sua liberdade, e o dia que eu lhe ordenar será o dia que você irá entregá-la.

— Temos um acordo?

— ...Temos.

— Bom. Bom bom bom. Agora assine. Temos muito o que fazer. ”

 

 

Hinata foi lentamente tomando ciência de que tinha voltado a seu corpo. As sensações, antes distantes, foram ficando cada vez mais fortes - a dor no peito evoluía de uma lembrança para um latejar insistente. O frio da mesa de pedra se espalhara o suficiente em suas costas para quase conseguir senti-lo em seus ossos. Seus ouvidos captavam arquejos próximos que ele primeiro pensou serem de Oikawa, até recobrar o suficiente de percepção do próprio corpo para perceber que eram dele mesmo. Pairando sobre tudo, o cheiro de suor e de fumaça parecia se prender a ele como uma segunda pele. Será que algo tinha ido errado? Oikawa não tinha falado nada sobre algo queimar durante o ritual. Até abrir os olhos para verificar era um esforço considerável para ele naquele estado.

O barulho de correntes tilintando se juntou ao de sua respiração, seguido pelo alívio da pressão em seus tornozelos e pulsos. Agora havia mais dor para competir com a da intrusão mágica, e Hinata se ouviu soltando um pequeno gemido. Sem perceber ou se importar, a pessoa que soltara suas correntes o empurrou brevemente, fazendo com que se deitasse sobre o lado esquerdo do corpo. Com isso, Hinata pôde notar que as amarras em seus braço e perna esquerdos continuavam no lugar.

Franzindo as sobrancelhas, o rapaz estava reunindo energia para perguntar o que exatamente estava acontecendo quando ouviu o som de algo afiado cortando o ar. Sem tempo ou forças para reagir, a lâmina desceu entre suas omoplatas, e Hinata foi açoitado por uma dor tão forte que parecia diminuir e absorver todas as outras. Ela se espalhou por ele e através dele, correndo pela pele e pelo interior do corpo, até que parecia que tudo nele estava gritando por misericórdia, inclusive sua garganta e sua cabeça ao mundo a seu redor.

Ele ao menos descobriu que ainda podia gritar.

 

 

Eles tinham cometido um erro.

A criatura dentro do círculo não era um unicórnio. Era nada mais do que um amontoado de sombras razoavelmente compactadas em forma humana, um pedaço de vazio no mundo recortado na silhueta de uma pessoa. Seja o que fosse, pareceu farejar o ar, erguendo o ‘rosto’ para cima, e, com precisão invejável, se virou para Hinata. Ele sabia que devia correr, que devia sair dali, que nem devia estar ali para começar, mas não conseguia mais se mexer. Estava paralisado no lugar, incapaz de fazer nada que não fechar os olhos e implorar que tudo fosse embora.

Kageyama passava rapidamente as páginas do livro, tentando encontrar um feitiço, um contra-feitiço, qualquer coisa que mandasse aquilo embora. Tanto ele quanto Kenma sabiam que uma barreira criada para proteger um unicórnio não iria durar muito tempo contra um demônio das sombras querendo sair. O moreno mal conseguia ler as palavras, com o quanto suas mãos tremiam ao segurar e virar as páginas. Ele se forçava a se acalmar quando um barulho alto chamou sua atenção novamente ao círculo.

O demônio não iria esperar calmamente que eles o banissem de volta. As sombras que lhe formavam tinham crescido e escurecido, se projetando além dos limites da forma como quatro grandes chicotes que atingiram a barreira uma, duas, três vezes, além da primeira que ele tinha ouvido. Tobio pôde ver a barreira falhar e se recompor, mas aquela pequena falha já tinha sido suficiente. Escorregando como piche líquido, o demônio fugiu do círculo, rastejando na direção de Hinata.

Era como se o tempo tivesse parado, e o coração dele também. Kageyama não sabia como agir. Estava plenamente ciente de que aquela coisa disforme iria atacar e devorar a pessoa que ele mais amava no mundo…. E ele não sabia o que fazer. A última vez que estivera tão assustado fora quando Oikawa perdera o controle, e até aquele dia se culpava pelo que se sucedera. Ele tinha prometido a si mesmo que nunca mais deixaria algo daquele tipo acontecer de novo. Ele tinha treinado, memorizado livros, aprendido feitiços, recuperado lentamente a confiança que perdera na magia. Apenas para chegar a esse momento e não conseguir fazer nada nem mesmo quando a luz da sua vida estava em perigo.

 

— 'S mi aon sibh ag iarraidh! - Com essa exclamação, o tempo voltou a correr. A coisa virou o que deveria ser seu rosto imediatamente para Kenma, e seus olhos se encontraram. A criatura tinha olhos cinzas, grandes, de pupilas fendidas, e aqueles olhos pareciam sugar tudo do jovem mago. Ele viu Kenma empalidecer, cair de joelhos no chão, os olhos arregalados e assustados, mas ele manteve o olhar no da criatura. Ele não podia não olhar, Tobio percebeu. A coisa iria mantê-lo prisioneiro até tê-lo consumido por inteiro.

 

Tobio olhou para o livro em suas mãos. Era inútil. De forma alguma aquilo teria o contrafeitiço para banir um demônio do abismo. Ao invés disso, ele correu de volta para o círculo de invocação. Ainda estava inteiro, apesar da barreira ter sido quebrada, e era disso que precisava. Será que Kenma aguentaria mais alguns minutos? Mais alguns segundos? Enquanto alterava as runas e símbolos em alta velocidade, seu coração batia rápido com a culpa em suas veias. Ele estava de certa forma usando Kenma como um escudo para proteger Hinata. Que tipo de amigo ele era, que deixava os outros se sacrificarem por quem ele se importava?

Com a faca de invocação ainda em mãos, ele rasgou de um lado a outro da palma, e deixou o sangue cair sobre o círculo reformulado. Dessa vez, ele tinha feito corretamente. O sangue borbulhou, como se tivesse criado uma fonte ali, bem no meio do concreto. A fonte de sangue rapidamente encheu o limite do círculo, o líquido escurecendo de vermelho profundo para o preto das sombras da criatura. Esta pareceu sentir a familiaridade, pois finalmente desviou o olhar de Kenma. Kageyama viu, angustiado, o amigo cair desmaiado do outro lado do círculo, mas não poderia fazer nada enquanto a coisa - que agora voltava suas atenções para ele, estivesse ali. Ao ver o portal, a criatura sibilou como um coletivo de cobras iradas. Era agora ou nunca.

 

— Dìomhair a 'gheata! Fosgailte!

 

Ao som do comando mágico, o poço de sombras no chão se abriu como um turbilhão de escuridão, e o demônio guinchou com suas vozes múltiplas, se lançando contra Tobio. Ele ergueu os braços para amortecer o impacto… Que não veio. A força do portal arcano era muito forte, já tendo sugado quase metade das sombras da coisa. Era a duras penas que ele se agarrava às bordas do portal, e com elas à realidade material. Seus olhos irados se focaram em Tobio, grandes, cinzas, fendidos…

O demônio subitamente perdeu o aperto nas bordas do poço, e caiu com um último sibilar profundo. Kageyama observou, surpreso, a criatura sumir nas profundidades antes que o peso do portal fosse demais para ele manter, e as sombras se fechassem e evaporassem em seguida. Foi só nesse ponto que se deixou cair no chão, absolutamente exausto. Aquilo fora tão súbito. Ele jurava que iria morrer…

Do outro lado, ele viu Hinata se ajoelhando ao lado de Kenma, tentando conseguir alguma reação. E foi aí que notou a série de rachaduras que certamente não existiam ali antes, seguindo pelas bordas do círculo, partindo dos dedos de Kozume Kenma.

Foi assim que percebeu que Kenma salvara sua vida.

 

 

O quarto de Kenma estava claro, iluminado pelas grandes janelas e cores suaves das paredes e mobília. Em comparação à escrivaninha de madeira clara coberta de anotações mágicas, os pesados livros de magia na estante, a coleção de videogames meticulosamente arrumada, os tripés de metal ao redor da cama eram frios e deslocados, praticamente intrusos relutantemente necessários. Eram as máquinas ligadas a eles que mantinham Kenma vivo agora.

Kageyama Tobio estava sentado num banco ao lado da cama há pelo menos quatro horas. Tinha saído mais cedo da faculdade e vindo direto para cá com uma braçada nova de livros antigos sobre o abismo. Passado mais de três horas de pesquisa sem achar nada útil, seu corpo reclamara o suficiente para ele resolver dar uma pausa, que acabara se tornando um pequeno cochilo. Era bom que Kuroo não o tivesse visto. O familiar de Kenma ficaria muito irritado se descobrisse que ele dormira ao invés de ficar de olho no garoto adormecido.

Desde quando eu me convenci que ele não vai acordar ou precisar se eu dormir por uma hora? Desde quando Kenma estar dormindo e continuar assim se tornou o normal?

A porta do quarto se abriu, e Tobio quase pulou da cadeira de sobressalto, com medo de ser visto bocejando daquela forma pelo gato preto superprotetor. Mas era Hinata quem abria a porta, não Kuroo, e imediatamente Tobio relaxou novamente. Desde o que acontecera, eles não se falavam tanto quanto antes, o que o feria profundamente. No entanto, parecia que só rever Hinata, ou receber um simples sorriso de boa tarde como agora, já parecia fazer seu dia inteiro.

Kageyama era pateticamente apaixonado pelo melhor amigo, e tinha consciência total disso.  

— Oi Tobio. Como ele está?

— O de sempre. Nenhuma melhora, mas devíamos ficar felizes que nenhuma piora também.

— É… Pelo menos…  - Hinata estava estranho. Não o olhava diretamente, e ele soava como se estivesse pensando em outra coisa muito longe dali. Olhando bem, Tobio podia perceber olheiras sob seus olhos, e alguma coisa de diferente em sua aura, como se estivesse mais forte, mais definida. Fisicamente, ele parecia exausto.

 

Ignorante às dúvidas do melhor amigo, Hinata se aproximou do leito de Kenma. Estava estável, pelo menos, mas… Ao tocar sua testa com a mão, ele parecia tão frio. Quanto tempo mais aquelas máquinas conseguiriam mantê-lo vivo, antes que ele morresse? Fora aquela sensação de impotência que o levara até Oikawa Tooru. Ele não poderia simplesmente ficar parado olhando um de seus melhores amigos se esvair até a morte sem fazer nada sobre isso.

Fechou os olhos, lembrando do que vira do ritual realizado por Oikawa, e foi incapaz de conter um arrepio. As lembranças conseguiam ser ainda mais perturbadoras quando ele estava em seu corpo. Ao menos não teria que enfiar o braço dentro do peito de Kenma para curá-lo. Respirando fundo, como Oikawa lhe ensinara depois do ritual, ele se concentrou, buscando limpar a mente de pensamentos distratores. Todo o seu foco deveria estar no que ele queria que sua magia fizesse. Curar corpo, mente, coração e alma. Ele agora deveria imaginar a energia correndo, de seu coração para seu braço para as pontas de seus dedos. Deveria crer no seu próprio poder de mudar o mundo, de mudar a situação de Kenma. Ele podia não saber as palavras de poder, Oikawa explicara, mas o verdadeiro poder estava dentro dele. Uma vez que ele tivesse consciência disso, ele poderia curar seu amigo.

— Hinata…? O que você.... Hinata!

Tinha a impressão de que Kageyama chamara, mas Shoyou mal o ouviu. Ele jurava ter sentido algo descendo por seu braço. Será que…?

Abriu os olhos. Pequenas fagulhas azuis envolviam sua mão, pulando de um ponto a outro entre seus dedos. Ele não sentia nada mais do que uma leve dormência no braço e mão esquerdos, mas isso um efeito colateral, pelo que tinham explicado. O ruivo mal conseguia conter sua animação - ele podia fazer magia agora! tremam diante de suas fagulhas azuis! - mas se forçou a continuar focado. O importante era saber se a magia funcionaria - se ele tinha tanta fé em si mesmo a ponto de operar a mudança que deveria fazer.

Com determinação, ele puxou as cobertas para baixo com a outra mão. O corpo de Kenma estava pálido como um cadáver, a pele translúcida a ponto de deixar antever a teia de veias e capilares por baixo dela. A respiração era estável, mas fraca, inspirações e expirações curtas em arquejos dolorosos. Ele tremia e suava como se ardesse em febre, mas a pele sob seus dedos estava fria e pegajosa. Com a nova visão que a magia trazia, Hinata conseguia ver além. Ele conseguia ver a luz se extinguindo dentro de Kenma - o que antes deveria ter sido uma forte estrela vermelha agora pulsava numa fraca luz rosada, mal tendo forças de se manter. Logo ele vai ficar igual ao Iwa-chan. Hinata sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, e lutou contra a vontade de chorar.  Ele pôs a mão no peito do Kenma e implorou, a si mesmo, ao mundo, ao poder que Oikawa Tooru lhe dera, à entidade superior e a qualquer coisa que o ouvisse: Cure-o. E as fagulhas dançaram de seus dedos.

 

Kageyama mal podia acreditar no que estava vendo. As fagulhas azuladas desciam pelo braço de Hinata em ondas ordenadas, afundando no peito de Kenma para não voltar. O efeito foi imediato: o loiro passou a respirar com mais facilidade, o peito subindo e descendo profundamente. A cor foi lentamente voltando a seu rosto e seu corpo, como se sob a influência da magia de Hinata o sangue começasse a fluir melhor dentro dele. Tobio não ousava tocá-lo agora, para não interromper o fluxo da magia, mas imaginava que a temperatura de seu corpo estivesse mudando também. Aquilo não era uma magia simples, por mais que Shoyou a lançasse como uma. Para se anular os efeitos do abismo era necessário magia de cura complexa, o que a pesquisa dele indicava que somente um curandeiro de anos de experiência poderia conjurar… Algo que Hinata Shoyou certamente não era.

Só havia uma pessoa na cidade capaz de realizar um desejo daquela complexidade.

 

Ao fim, a última fagulha encontrou seu caminho, e Hinata teve que se segurar nas beiradas da cama para não cair no chão. Suas pernas tremiam, incapaz de suportar seu peso, seu braço inteiro estava dormente e ele respirava como se tivesse corrido a última maratona, mas estava feliz. Ele tinha conseguido! A sensação de finalmente poder fazer algo, de não ser mais inútil e impotente como tinha sido quando a criatura atacara, finalmente liberou algumas das lágrimas que ele andava escondendo. Ele tinha ajudado. Kenma iria ficar melhor. Talvez, se descansasse o suficiente, ele poderia voltar diariamente, e em uma semana eles poderiam ter seu amigo de volta...

Seu outro amigo, no entanto, o estava puxando pelo colarinho para que se erguesse o encarasse. Hinata imaginava que esse momento chegaria, e até tinha levantado ideias do que dizer a Kageyama quando este perguntasse, mas agora que estavam cara a cara ele via que qualquer desculpa seria inútil. O moreno sabia muito bem o que ele fizera, e, pela intensidade com que o olhava agora, não estava nada feliz com isso. Sua voz tremia como se dizer cada uma daquelas palavras fosse doloroso. - O  que você fez?

— Mais do que você, com certeza. - A resposta veio mais mordaz do que inicialmente pretendia, e imediatamente Hinata se arrependeu. Ele pôde ver Kageyama arregalando os olhos, mas logo retomando a expressão determinada de antes.

— Você foi até ele, não foi? O meu… Ex-professor. Hinata, você tem ideia do que fez? O que ele pediu de você?

— O que importa é que deu certo…

— É claro que não! Não está certo! - Kageyama bradou, e Hinata teria dado um passo pra trás se o outro não o estivesse sustentando. Ele nunca vira Tobio tão irritado antes. - Se ele está envolvido, então tem algo muito errado aqui. O que ele pediu??

— Ele não é tão ruim quanto você falou.

— Não. - O sarcasmo pingava da voz de Kageyama, de uma forma que Shoyou nunca imaginara que fosse ouvir dele um dia. — Ele é ainda pior.

Estava indo tudo exatamente como Oikawa dissera, e isso apenas irritava ainda mais Hinata. Ele vai tentar desqualificar o que você fez, sabe. Não é que ele não confie nos outros, mas ele acha que tem que resolver tudo sozinho. Ele vai ficar irritado que você tenha feito algo sem a permissão dele, porque ele tem quer controle sobre tudo.

Shoyou segurou o pulso do amigo e, com as forças que lhe restavam, tentou se soltar do aperto em seu colarinho. - Você não é minha mãe. Eu não te devo justificativa nenhuma pro que eu faço!

— O que você fez tem consequências pra mim e pro Kenma, então eu estou tão envolvido nisso quanto você.

— Que bom saber que lembra! Pela forma com que você age eu até pensaria que esqueceu!

O ruivo realmente não estava querendo começar com as acusações, mas ele simplesmente não aguentava mais. Todo o estresse das últimas semanas parecia ter caído em seus ombros de uma vez - Kenma se sacrificando por ele, seu próprio senso de inutilidade, Tobio se afastando em suas pesquisas, a culpa, a dor, o contrato com Oikawa, descobrir que Tobio mentiu sobre Oikawa, sobre suas asas… Ele não queria mais ouvir uma única palavra, queria apenas ir embora. Se ele não o soltasse, então Hinata iria ser o mais pedante possível até que ele o fizesse.

— Hinata… - Kageyama parecia ter se controlado um pouco. Ele agora soava mais calmo, enquanto se esforçava em compreender o que levara seu amigo a uma decisão ruim daquele nível. - O que aconteceu com Kenma não é fácil de resolver. Eu sei que você tem suas dificuldades com magia-

— Não jogue ignorância na minha cara como se fosse uma desculpa, Rei dos Magos, Kageyama Tobio. - Ele cuspiu o antigo título de escola do moreno como se fosse uma praga. - Sim, eu não sei usar magia, eu não sei quase nada sobre magia, eu tenho a mais vaga ideia da teoria por trás do que houve aquele dia, e eu não ligo. A única coisa que me importa é saber que um amigo meu está morrendo aos poucos em cima de uma cama e que o suposto mago genial não fez absolutamente nada!

— Nada? - Toda a pretensão de controle pareceu ter ido pela janela quando Kageyama apenas o segurou mais forte, apertando tanto seu colarinho que Hinata começou a temer que ele o estrangulasse por engano. - Não fale do que você mesmo admite que não sabe. Você não sabe o suficiente nem ver o meu esforço!

— Que conveniente pra você! Todo esse enorme esforço invisível!

De alguma forma, eles estavam tão perto agora que ele conseguia sentir a respiração de Tobio em seu rosto, e o nariz dele roçando no seu. - Não ouse fazer pouco caso, Shoyou. Magia não é um brinquedo. Ela envolve esforço, tempo e cuidado, nenhum dos quais você tem. Eu estava buscando uma forma de salvar Kenma que não matasse a ele ou a um de nós no processo… Mas é claro que você tinha que estabanadamente se meter no que não sabe e se vender pra Oikawa Tooru! Como sempre, você mete os pés pelas mãos e as outras pessoas que paguem o troco!

Inutilmente, Hinata ainda tentava se soltar, puxando o braço de Kageyama para longe dele. — A única pessoa que vai pagar pelas consequências do que fiz sou eu! Eu não pedi sua permissão, e não peço sua ajuda. Alguém aqui tem que se responsabilizar pelo que faz além do que só se gabar de um esforço que não chega a nada!

— Você é um idiota tão grande que não tenho nem palavras. Você não tem ideia do que ele é capaz. Qualquer que seja o preço que ele lhe pediu, o que quer que seja, não vale a pena. Nunca vale a pena.

— Se pra você o Kenma não vale a pena, então vá embora.

O silêncio que se seguiu iria assombrar Hinata pelos anos seguintes. Eles ainda estavam tão próximos que ele conseguiu ver os olhos de Tobio se enchendo de lágrimas. Aqueles olhos mostravam tanta coisa - arrependimento, raiva, frustração, culpa, dor. Ele imediatamente se sentiu culpado. Tinha mesmo falado essas coisas? Ele deveria estar tentando ser um amigo compreensivo, não um completo cuzão. Tinha descontado as próprias frustrações em quem não merecia.

Lentamente, quase que com medo de que o amigo o atacasse ou quebrasse ao seu toque, ele estendeu a mão e limpou as lágrimas dele antes que caíssem. A mão em seu colarinho afrouxou, e Hinata pôde sentir o chão confortavelmente sob seus pés de novo. Ele se perguntava o que podia dizer, como se desculpar, quando, sem dizer uma palavra nem olhar em sua direção de novo, o Rei dos Magos Kageyama Tobio lhe deu as costas e não voltou.

 

 

Assistir ao Grande Rei dos Magos chiar como uma criança ao ter as feridas enfaixadas seria no mínimo curioso para qualquer um que não fosse Iwaizumi Hajime. Para ele era apenas a mesma coisa que vinha acontecendo ao longo de seus quase vinte anos de amizade e relacionamento: Tooru estava sendo uma grande criança mimada, e Hajime tinha que tomar conta dele mais uma vez.

Era relativamente normal que Oikawa se queimasse, como a maioria das pessoas em sua área específica de atuação. O uso demasiado e prolongado de magia tinha entre seus efeitos colaterais as queimaduras mágicas, pequenos momentos em que o poder saía de controle ou demandava um preço maior do conjurador. Ele vinha ajudando Tooru a se enfaixar desde que os dois tinham cinco anos e o mago em crescimento queimara o dedo ao tentar curar as asas de um passarinho. Ele chorara a tarde inteira, Hajime lembrava, até que prometeu levá-lo para tomar sorvete depois, e de repente toda a dor da queimadura sumira. Ele teria ficado irritado, mas mesmo ele achava difícil ter raiva de Tooru por muito tempo, especialmente quando ele sorria de verdade.

O que Iwaizumi via agora, no entanto, não era pequeno de forma alguma. As queimaduras do ritual de Hinata cobriam as costas e braços de Oikawa quase por completo, e, pela primeira vez em tempo considerável, Hajime não o culpava por reclamar da dor. Ele tinha que ser o mais delicado possível para que a pele machucada não se desprender a cada toque e deixar visíveis as bolhas e feridas na carne viva abaixo. Cuidadosamente, pedaço por pedaço, ele aplicava a pesada pasta de ervas curativas e deixava Oikawa xingar como um estivador enquanto preparava as ataduras. Depois, era enfaixar delicadamente o ferimento para não perturbar as áreas ao redor. Um processo lento, e claramente maçante para quem estava deitado em suas roupas íntimas sentindo as dores das ervas mágicas em sua carne viva.

— ...Talvez eu tenha cometido um erro. - A voz do mago estava abafada pelo fato de estar enfiando a cara nos travesseiros na cama, mas ele tinha sido suficientemente claro para que Hajime ouvisse e não deixasse passar a oportunidade.

— Há um alinhamento planetário? Faz muito tempo que não te escuto admitindo que errou.

— Sorte sua que há muito tempo desisti de tentar tirar o seu sarcasmo, Iwa-chan. - A voz de Oikawa soava mais divertida do que irritada, mas o quê de aço ainda estava ali. Brincadeiras com o ego pronunciado do Grande Rei eram feitas a própria conta e risco, mas Iwaizumi tinha mais liberdades com ele do que a maioria das pessoas.

— O que te fez ter essa epifania?

— Estava só… Caralho, Iwa-chan, toma cuidado! Estava pensando sobre o garoto que Hinata-chan quer salvar. O nome dele é… Ai… Kenma. Kozume Kenma.

—  Acho que já ouvi esse nome. Ele ganhou alguma competição de magia? - Com Oikawa momentáneamente imposibilitado de responder por estar gritando, Iwaizumi refletiu por si só onde tinha ouvido esse nome. Sua memória não era boa em relação a momentos anteriores a sua ressurreição, mas, se ele não estava enganado, Kozume Kenma era o nome de um garoto quieto e prodigioso que ganhara prêmios por suas invenções mágicas. - Ah. Entendi agora. Você está com inveja de mais alguém ser um mago superior a você.

— E você está ainda mais perigosamente insolente, Iwa-chan. -  O tom de ameaça na voz de Tooru era diminuído pelo fato dele estar tendo que fazer pausas periódicas para gritar seu ódio contra o mundo a cada nova aplicação que Hajime fazia. Ainda assim, ele insistiu. - Não é uma questão de talento. É uma questão de competição.

— Certeza que não é pela coroa do Grande Rei?

Oikawa o ignorou completamente, como era de costume quando Iwaizumi tocava num ponto que ele não queria discutir. - Eu fico pensando… Se não seria melhor, ah, matar logo esse Kenma. Aproveitar que está… Fraco, sabe? Mas, ah… Eu não consigo pensar em acabar tudo agora. Eu fico pensando… Ai, cacete! … No rosto do Hinata quando o vê melhorando. Aquele... Sorriso... É tão… Bonito… Não é?

— Pros seus padrões distorcidos, creio que sim.

Tooru riu, meio de dor, meio de satisfação secreta. - E depois eu que sou invejoso, Iwa-chan. Algum dia eu tiro essa sua língua malcriada, viu?

— Você tem prazer demais com ela pra fazer isso. - O ajudante não teve vergonha em mencionar, cortando precisamente mais um pedaço de atadura. Já tinha feito os braços e a maior parte das costas.

— Hmmmmmmm, não me tente, não me tente.

— O que exatamente você quer com isso tudo, Tooru? Se queria se vingar do seu antigo aprendiz, precisava correr esse risco com o contrato? Eu sei que você é louco, mas isso é mais loucura do que o normal no meu raciocínio.

— É que você tem pouca imaginação, Iwa-chan. Hmm, me pergunto se isso seja uma consequência da ressurreição? Se bem que você era assim antes…

— Não perca o ponto, Oikawa.

— Ah, sim sim. Sabe, uma coisa que eu aprendi ao longo desses anos é que os grandes riscos trazem as grandes recompensas. Eu poderia simplesmente amaldiçoar o Tobio e pronto. Fazer usar magia ser algo doloroso, deformá-lo para sempre, fazê-lo um imã de azar… Muito menos custoso, e muito mais chato.

— Fora que ele poderia quebrar a maldição. Assim como esse Kenma, ele é um mago melhor que você.

O mago forçou o que podia das costas para se virar e lançar o que esperava ser um olhar intimidador a seu ajudante. — Ninguém acha graça nesse seu sarcasmo. Lembre que eu posso botar sua língua em outra pessoa, viu? Uma que a use pra coisas melhores do que me afrontar. Talvez o Shoyou-chan?

— Sei não, ele me parece afrontador. Não iria fazer tanta diferença. Se mexe um pouco, vê se tá muito apertado.

— Afrontador… Hmmm, sim… Por enquanto. - Oikawa esticou os músculos das costas como um gato preguiçoso, sibilando baixinho pela dor em suas feridas. - Vejamos quando eu puder treiná-lo.

— Você realmente quer o garoto? Isso não é só sua tentativa desnecessariamente complicada de quebrar o Tobio pra vingar seu ego…  

Iwaizumi parou quando sentiu o gosto súbito de sangue, forte e metálico. Parte dele não conseguia acreditar - e a outra parte era a que conhecia muito bem Oikawa, o suficiente para  fazê-lo largar os instrumentos e se afastar o quão rápido quanto podia, a mão cobrindo a boca como se isso fosse bloquear a magia em ação. Não conseguiu dar dois passos antes de ser forçado a cuspir no chão pela quantidade líquido que tomava sua boca. Mais e mais, uma poça de vermelho se formava a seus pés a cada tosse e ânsia que saíam de sua garganta, cada vez mais profundas e desesperadas pelo esforço de respirar sem aspirar o sangue por engano.

Ele conseguia sentir as pontadas agudas de dor na base da língua, pequenas facas invisíveis cortando lentamente a carne. Junto do coração acelerado ele jurava que podia ouvir o som das fibras musculares se rasgando uma a uma; mas, de longe, o pior era a sensação do músculo se soltando, os espasmos e a súbita mobilidade maior que ele sabia ser por sua língua estar sendo arrancada. Nesse ponto, já estava com as mãos e os joelhos no chão, tonto pelo gosto do sangue e pela ânsia que o forçava a botar para fora o objeto estranho que sua língua se tornara. Pequenas lágrimas desciam pelo seu rosto - se pelo esforço físico, pelo choque, pela vergonha ou pelo desapontamento com o mago, nem mesmo Iwaizumi conseguia perceber. Fechando os olhos com força, ele só queria que aquilo acabasse o mais rápido possível.

E então acabou. Com um último esforço, ele pôde sentir a língua se desprendendo por completo e a cuspiu junto com o resto do sangue. A sensação de vazio subsequente era pouco amenizada pela dormência que vinha com a cura mágica de suas feridas, mas pelo menos era um pouco melhor do que o gosto enjoativo do sangue. Iwaizumi inspirou profundamente, o ar frio e a facilidade de respirar um alívio para a garganta em carne viva. Ainda não conseguia abrir os olhos. Não sabia se era por não querer ver o que estava à sua frente, ou por não querer ver Tooru.

Durante todo o processo, Oikawa se manteve impassível, o rosto apoiado nos dedos, a outra mão brincando com o pingente do colar que levava no pescoço. Parecia nem sequer ouvir os arquejos de seu amigo e amante atrás dele. Foi apenas com tudo terminado que se dispôs a falar novamente, a voz baixa e gentil como se falasse a uma criança. — Eu falei pra não me tentar, Iwa-chan. Você precisa lembrar… Eu sou seu amigo, sim, e eu o amo, mais do que tudo no mundo, mas eu sou seu mestre e seu dono agora. Você vai me respeitar como tal.

Foi com esforço que o mago se manteve focado ao sentir o ressentimento e a dor de Iwaizumi atingi-lo. Parte dele se sentia culpado. Iwaizumi era seu companheiro no sentido mais profundo da palavra - o de alguém com quem ele dividiria a vida toda, o suficiente para sacrificar uma por ele. Machucá-lo não era algo que Tooru gostasse de fazer, mas, ao mesmo tempo, ele podia se justificar de que era necessário. Enquanto tivesse o contrato e o amuleto, Iwaizumi lhe devia respeito, e sabia muito bem disso. Ele trouxera isso para si mesmo.

Era triste que suas justificativas o fizessem sentir menos culpa, mas não faziam a ideia de seu melhor amigo e amante estar ressentido com ele mais fácil de lidar.

O Grande Rei trincou os dentes, absorvendo a energia dolorosa e necessária das emoções negativas de Iwaizumi, e se forçou a focar em outros assuntos. Kenma Kozume viveria, ao menos por agora. Em relação a isso já tinha algumas ideias. Restava saber o que Tobio-chan faria a respeito, quando descobrisse o contrato de Hinata. Na verdade, era muito provável de que já o soubesse… E então...

Seus pensamentos foram interrompidos pela dor ácida da pasta medicinal sendo aplicada súbita e excessivamente no maior de seus cortes, e Oikawa baixou a cabeça e gritou, xingando até a décima quinta geração da mulher que tinha inventado o unguento. Houve um som estranho atrás dele - uma risada, de certa forma vazia, seguida pela sensação das faixas cobrindo sua pele novamente.

 

 

Era final de tarde, e Oikawa Tooru estava afundado numa quantidade impressionante de papelada. As vezes ele se perguntava se os magos também não podiam se modernizar, como os Adormecidos fizeram, e se livrar de toda aquela burocracia em papel; havia um limite até no tanto de penas que uma pessoa possa enfeitiçar para escrever por você antes que se entedie até disso. Com um suspiro frustrado, empurrou os óculos da ponta do nariz de volta para a ponte, para voltar a ler mais um relatório do Conselho em que o três-vezes-maldito Ushiwaka comentava sobre a necessidade de pesquisa em feitiços agrícolas.

Foi como uma benção divina, então, que ouviu o sino da porta se abrindo, o que normalmente indicava cliente. Rapidamente já foi tirando os óculos e caprichando no sorriso, que subitamente se congelou, ao ver quem era a pessoa na porta.

A benção não era divina, ele precisava corrigir agora. Nenhuma criatura com boas intenções influenciaria magicamente aquele encontro. O filho pródigo a casa torna, e Kageyama Tobio a seu mestre tinha retornado.

Oikawa praticamente derreteu na cadeira, toda a pretensão de profissionalismo indo pela janela ao ver o antigo aprendiz. - Então você sabe onde fica meu escritório, Tobio-chan. Com todos esses anos, achei que tivesse esquecido.

— Não vim aqui pelos seus joguinhos, Oikawa. - Ele estava mais alto, e a voz tinha ficado mais grossa, mas ele ainda tinha a mesma expressão de quem assusta criancinhas na rua. Era uma mistura de nostalgia e desgosto que fascinava o mestre.

— Não. Você veio pelo Shoyou. - Um esgar de raiva passou pelo rosto de seu aprendiz, e Tooru deu uma risadinha de escárnio, se fingindo de inocente. - O quê? Me ouvir usando o nome dele te incomoda? Nós somos bem íntimos agora.

— Deixe ele em paz! - Kageyama bateu na mesa, se apoiando nela para se projetar acima de seu antigo mestre. Oikawa não pareceu impressionado, olhando para cima para ele com jeito de pouco caso. - Sou eu que você quer, não é? O que quer que eu tenha feito pra você, o seu problema é comigo. Então desconte em mim! Me deixe pagar o preço! Ele não tem nada a ver com isso!

— Hmmm… - Cinicamente, o Grande Rei dos Magos fingiu pensar sobre o assunto, batendo de leve com o indicador sobre os lábios antes de concluir: - Não.

Assim vai dar certo. Enquanto eu bater de frente com este narcisista desgraçado, ele vai negar apenas para me ferir. Engolindo em seco, Kageyama soltou a mesa, rigidamente se curvando na direção de Oikawa, mostrando seu pescoço num sinal claro de submissão. Espiando por entre as mechas de sua franja, ele pôde ver o Grande Rei mordendo a unha do polegar, um olhar promissor de superioridade no rosto.

— Oikawa… Eu faço outro contrato. Eu me vendo a você. Eu lhe dou minha magia. O que você quiser de mim! Faça o que quiser! Eu imploro... Deixe ele ir.

Houve uma pausa tensa enquanto Tobio esperava uma resposta. Sentia seu coração em disparada no peito, ansiando, implorando por um sim, por saber que Shoyou estaria livre. Não lhe importava o que Oikawa fizesse com ele, desde que sua luz estivesse em segurança.

— Tobio-chan… - A voz de Tooru era suave e venenosa, o tipo de voz que Tobio mais hesitava em ouvir. - Você se tem em muita estima, não é mesmo? O que lhe faz pensar que isso é sobre você?

Então ele queria que ele se humilhasse mais ainda. Era difícil, mas, se fosse por Hinata, ele o faria. - Você vem querendo me punir desde o acidente. - A verdade estaria mais para Oikawa estar fazendo da vida dele um inferno desde que Iwaizumi morrera, mas certamente o Grande Rei não iria querer ouvir isso.

— Eu tenho mais na minha vida do que meus problemas com você, Tobio. -  Oikawa olhava agora para as próprias unhas bem-manicuradas, sem se dignar a encarar o antigo aprendiz. - Você não é mais que uma sujeira no meu passado. E de pensar que eu já lhe considerei um potencial sucessor…

— Eu não teria sido tão bom quanto você.

O comentário conseguiu tirar um sorriso preguiçoso do outro mago. — Nisso nós dois concordamos. As luzes da ribalta combinam bem mais comigo do que com você.

Tobio rezava para que fosse suficiente. Ele tinha admitido a superioridade de Oikawa, sua culpa no acidente, tinha se humilhado e aceitado ser um servo do Grande Rei. Isso devia ser suficiente. Isso tinha que ser suficiente. Ele não conseguia imaginar mais que seu mestre fosse pedir, a não ser que ele se humilhasse em público em adição à humilhação privada. Ainda assim, não houve resposta de Oikawa por longos minutos, até que Kageyama não conseguiu mais aguentar.

— Você vai liberar o contrato do Hinata?

— Achei que já tivesse deixado isso claro, Tobio. Não. - O sorriso no rosto do Grande Rei dos Magos era o da mais pura satisfação sádica, um sorriso de quem ganhou o jogo sombrio que ele mesmo criou. — Por mais divertido que seja lhe ver rastejando aos meus pés onde você merece estar, nada do que você possa me oferecer me interessa. Muito pelo contrário, eu ando muito interessado no Shoyou...

O desespero no rosto de Tobio mereceria uma pintura, na opinião de Oikawa. Era absurdamente delicioso ver o sofrimento de seu antigo aprendiz dessa forma, a sensação de uma maldição bem cumprida. O garoto parecia dividido entre o choque e o choro, os olhos azuis arregalados em surpresa e descrença, o lábio inferior que tremia levemente. Aquela reação apenas estimulava o Grande Rei a continuar. Ele não iria parar até que seu discípulo chorasse como ele mesmo o tinha feito no dia do acidente.

— Eu consigo entender seus motivos, Tobio-chan. Ele é muito fácil de se afeiçoar. Toda aquela animação contagiante. E a teimosia… É atraente.— Ele mordeu o polegar mais uma vez, um sorriso de canto no rosto ao imaginar o que poderia fazer com o ruivo. -  Me faz pensar até onde ele consegue ir antes de quebrar.

— Não! Não, por favor! - O desespero estava claro em sua voz também. O jeito com que quebrava ao final da súplica era como música para seus ouvidos.

— E, claro, ele tem seus dons. Foi Hinata quem lhe apresentou a Kenma, não foi?

— Eu não…

— Me recuso a acreditar que tenha sido incompetente o suficiente para não perceber que aquele garoto parece ser capaz de farejar magia sem perceber. Lembre-se de que tenho minhas fontes, Tobio. Consegui rastrear ligações dele a você, Kozume, Sugawara, os irmãos Tsukishima e até Tendou e Ushijima. Me diga, o que um garoto que não sabia diferenciar tipos de magia faz ao redor de tantos magos poderosos? Pura coincidência?

Kageyama não precisava responder. Oikawa já tinha informações suficiente de suas fontes para quase confirmar suas suspeitas sobre Hinata. Mas, mesmo que não tivesse, a maneira com que seu discípulo evitou seu olhar e engoliu em seco teria sido a resposta de que precisava. Tobio sempre fora um mentiroso terrível, o exato oposto de seu mestre dissimulado. Ele nunca teria conseguido ocultar isso nem se quisesse.

— Você sabe a verdade, Tobio. Shoyou-chan não apenas é uma excelente rastreador de talentos como uma fonte mágica incrível. Tanto poder num lugar tão pequeno... E você achava que conseguiria escondê-lo só pra você? - A voz de Tooru mudou, da cadência suavemente cínica para uma acusação fria e direta. — Foi por isso que causou outro acidente? Tinha que se livrar da concorrência?

As janelas do escritório estouraram, uma a uma, numa chuva de cristal quebrado. Os punhos de Tobio sobre a mesa tremiam, os nós dos dedos brancos, sobrancelhas franzidas e olhos focados no antigo mestre traindo toda a raiva que acabara inadvertidamente descontando nas janelas. A vontade dele era de gritar, ou talvez de bater a cabeça de Oikawa contra o tampo da mesa até que ele finalmente o entendesse.

Eu nunca fiz isso! Quantas vezes… - Kageyama se controlou a duras penas, correndo as mãos pelo cabelo fino e escuro numa tentativa de se dar espaço para respirar.. - Eu não tive nada com o que aconteceu com Iwaizumi, Oikawa. Você só está me usando pra lidar com sua própria falha. E eu certamente nunca fiz nada contra Kenma, levando em conta que ele salvou minha vida. Somos amigos e parceiros, não que você seja capaz de entender o que isso significa.

— Não é sábio ficar alfinetando a pessoa que tem posse de quem você quer salvar, Tobio-chan. Eu posso cumprir minha ameaça de testar os limites do nosso querido Shoyou.

Isso era demais. Demais para ele lidar. Kageyama caiu de joelhos no chão, tentando inutilmente controlar os soluços que teimavam em vir de sua garganta. Ele detestaria chorar na frente de qualquer pessoa, mas especialmente na frente de alguém como Oikawa, que ele sabia que teria prazer em vê-lo sofrer. Teimosamente, ele insistiu em limpar as lágrimas que corriam por suas bochechas, os punhos tão fechados que suas unhas começavam a machucar a palma. - Por favor. Eu não sei mais o que quer de mim. Não sei mais o que fazer. Só não machuque ele…

— Dói, não é? Amar alguém. - Tooru voltara à suavidade, e, dessa vez, ela surpreendentemente não vinha acompanhada de seu cinismo ou deboche. Talvez pela primeira vez em anos, ele soava como o mestre que Tobio conhecera inicialmente, que o acolhera e ajudara antes de qualquer outra pessoa reconhecer o seu talento. — Você acha mesmo que ninguém notou? Tolinho. Estava na cara desde o princípio. Vou até lhe contar o segredo… 

Se debruçando sobre a mesa, Oikawa se aproximou do discípulo que chorava, o suficiente para sussurrar seu veneno em seu ouvido como a serpente particularmente cruel que era. - Foi o que me levou até ele. Como você agia como um cachorrinho apaixonado. A sua carinha quando ele falava da amizade de vocês… Dava até pena. Não importa o quanto você o ame, Tobio. Você sempre será o melhor amigo dele, e nada mais.

E assim, como se nada houvesse acontecido, ou, mais acuradamente, como se nada do que tivesse acontecido fosse de importância para ele, o Grande Rei estava de volta a sua cadeira, colocando seus óculos de leitura. - Enfim, você está desperdiçando meu tempo. Eu não vou trocar você pelo Shoyou. Não tenho mais nada a lhe dizer, Tobio. Então, por favor, se retire.

Kageyama ficou em silêncio, muito chocado para reagir, enquanto as penas mágicas recomeçavam seu trabalho de reproduzir a assinatura de Oikawa em oito papéis oficiais diferentes, e seu mestre retomava a leitura do tratado de Ushiwaka, página 67. Ele tinha vindo àquele lugar com a esperança de ser humilhado, e de sua humilhação ser suficiente para ter a liberdade de Hinata. Ao invés disso ele havia sido humilhado, desqualificado e esmagado pelo bem do ego de Oikawa Tooru, que tinha decidido ter a posse de Hinata para seus próprios fins egoístas. Seu mestre tinha conseguido superar as previsões do aprendiz sobre seu sadismo e ido a um nível completamente diferente. Ele nem mesmo tinha como chorar agora. Provavelmente choraria mais tarde, mas agora havia só o choque - e o ódio.

Ele realmente odiava Oikawa. Era a única coisa verdadeira que tinha tirado de toda aquela interação.

— Eu não vou deixar você machucá-lo, Oikawa. - A voz de Tobio soava tranquila, mas sua expressão era tudo menos isso. O sorriso que ia de lado a outro de seu rosto era tão similar ao do próprio Tooru que este tinha que admitir estar um pouco perturbado pela visão. - Vou quebrar o seu contrato. Vou quebrar a porcaria da sua coroa. Nem que me leve anos… Eu nunca quis realmente fazer mal a você antes. Mas não toque no Hinata. Eu também sou capaz de lhe amaldiçoar, mestre

O Grande Rei poderia ter respondido. Deveria ter tido a última palavra - era o que alguém de seu nível merecia. Ao invés disso, ele deixou que Tobio levasse esse último presente - olhe como ele cresceu, já está até me amaldiçoando!— e se retirasse, finalmente. Ele sabia que o jogo não havia terminado ainda. Não, pensou, sem perceber cada uma das oito penas começou a tremer e se amassar em pleno ar a seu redor, a minha dívida com você ainda não está paga, até que você sinta o mesmo desespero que senti, e saiba que fui eu quem lhe trouxe isso.

Depois teria que organizar o escritório, mas não se importava agora. Também não conseguiria mais focar no tratado de Ushiwaka, não importa quantas vezes maldito ele fosse. Havia lembranças demais em sua mente, lembranças que nem mesmo sua magia conseguia fazê-lo esquecer.

 

 

O cliente tinha pedido nada menos do que uma manipulação temporal. Tobio não sabia exatamente o que poderia pagar algo daquele nível. Ele duvidava sequer que a pessoa do cliente, um homem baixinho e desinteressante, seria capaz de cobrir os riscos da tentativa para seu mestre. Ainda assim, Oikawa concordara.

Iwaizumi-san dissera uma vez que, muito como alguns fenômenos da natureza, Oikawa funcionava de formas misteriosas. Tobio não podia discordar.

O porão estava organizado pela tentativa, com o nível máximo 7 de proteção. O cliente, Tobio e Iwaizumi-san esperariam dentro de uma círculo auxiliar, enquanto o mestre, no círculo principal logo acima do cruzamento das linhas mágicas, tentaria conjurar o feitiço. Para o aprendiz, era uma oportunidade única de aprender como lançar feitiços de alto nível.

Para o mestre, havia mais coisas em jogo. Além da substancial recompensa que o cliente garantia, e de fato pagara em adiantamento, havia o ganho de reputação. Pouquíssimos magos tentaram o que Oikawa faria agora. Menos ainda haviam sobrevivido. Realizar aquele ritual o marcaria como um dos maiores magos de seu tempo, e, talvez, espantasse o tipo de comentário que começava a incomodá-lo.

No início, Oikawa não tinha mais do que orgulho de ver o quão Tobio era admirado. Apenas óbvio que o aprendiz de um grande mago fosse ser outro grande mago, e o talento de Tobio era mais do que suficiente para confirmar a ideia. Aos meros quatorze anos, o garoto fazia coisas que magos adultos da sua idade nem sonhavam, e Tooru fazia questão de reforçar e alimentar esse talento com estudo e esforço. Mesmo quando Tobio se graduasse e passase a praticar sozinho, ele sempre teria seu querido mestre com quem contar e a quem ajudar, e qualquer feito que realizasse acabaria refletindo positivamente em Tooru também. Havia apenas vantagens neste aprendizado.

Mas a narrativa foi mudando, e para uma que Oikawa não esperava. Começaram a surgir especulações de que, talvez, Tobio fosse um melhor mago do que seu mestre. Tooru acreditava ser apenas inveja de seus adversários no Conselho, mas a ideia se espalhava, e, logo, começou a rondar seus próprios pensamentos. E se, e era sempre um hipotético se, Tobio realmente fosse um mago superior? Ele iria passar para a história apenas como seu mestre, se sequer isso? Ele seria esquecido em favor de um mago mais jovem e mais poderoso?

Não, isso não iria acontecer, não enquanto ele pudesse evitar. Intensificou o treinamento de Tobio - para que ele melhorasse ainda mais, era a justificativa, precisaria de um treino rígido; mas a verdade era que ele queria que o garoto falhasse em algo. E o próprio Tooru começou a se arriscar mais do que antes em suas práticas. Desejos que antes ele recusaria imediatamente por sua complexidade passaram a se tornar mais interessantes, pelas recompensas que uma manobra arriscada poderia trazer.

Isso o levara de volta ao momento atual. Todas as preparações estão prontas. Os círculos inscritos, os campos funcionando, o ar pesado da magia que as linhas de ley depositaram no ambiente pode quase duas semanas sem serem perturbadas. É hora. Oikawa inspira fundo. Ele conhece suas palavras. Conhece do que é capaz. Ele é o portão entre este mundo e o outro…  Tha mi a 'gheata, eadar an t-saoghal agus am fear eile.

Depois que o cântico começa, ele não poderia mais parar mesmo que quisesse. Ele é o perfeito conduíte de magia, o literal portal entre este mundo e o outro. A energia flui por ele como poucas vezes fluiu antes. Tooru sorri. Nada melhor do que uma conjuração perfeita para uma ficha perfeita. O mundo se abre ao redor dele, para ele, e ele vê o tempo se deslanchando ao seu redor. É mais do que ele imaginava, mas não mais do que ele consegue lidar. Ele só precisa achar o momento que o cliente pediu, e fazer uma pequena mudança…

Tobio está fascinado. Seu mestre é mesmo um mago incrível. Ele nunca vira ninguém abrindo o fluxo temporal antes, e Oikawa fazia parecer simples. Ele nunca poderia se imaginar fazendo algo do tipo. Ele vê o tempo se dobrando à vontade de seu mestre, enquanto este procura a alteração que precisa ser feita.

Até que Tobio nota algo estranho. A cada momento mais fundo que seu mestre vai, mais ele visivelmente se esforça. 5 anos atrás. 6 anos atrás. Impraticável para a vasta maioria dos magos, mas Oikawa consegue, ainda que respirando pesadamente. 7 anos. 8. 9. 10 anos antes. Ele consegue ver um enorme corte se abrindo nas costas de seu mestre, sob a camisa. Tobio começava a ficar preocupado. O objetivo era voltar 25 anos, e eles ainda nem chegaram na metade. A seu lado, Iwaizumi-san parece igualmente nervoso. O cliente não se importa. Ele pede que andem mais rápido.

15 anos. Mais 10 anos e ele terá feito. Oikawa sua profusamente, e fecha os olhos com força quando sente mais uma queimadura rasgando sua pele, logo abaixo do olho esquerdo. Ele não se importa se terminar todo queimado - Iwa-chan pode ajudá-lo depois. Ele só precisa chegar lá, e já está em 18 anos. Mais 7, e está feito. 25 anos. 5 anos há mais do que o Grão-Mestre quando vez a mesma magia.

A próxima queimadura o atingiu na perna. Ele cai de joelhos. Está muito focado para ouvir as exclamações de Tobio e de Hajime. Ele está tão perto. Já passou dos vinte anos. Está quase lá… Ele já bateu o Grão-Mestre. Quem diria novamente que ele vai ser superado? Não há como…

O ano número 23 o atinge com a força de um trem, diretamente no peito. Ele sente o gosto de sangue na boca. Não, não, não, não tem como, ele está tão perto, ele não vai desistir com míseros dois anos apenas, ele vai se forçar a seguir em frente… Subitamente, o peso parece mais leve. Ele conseguiu. Ele vai conseguir. 24. 25. Mesmo com o sangue e a dor, seu sorriso é ferozmente vitorioso. Recorde alcançado. O cliente está gritando algo sobre a mudança, mas primeiro ele se vira, para que Iwaizumi o veja, veja tão longe ele chegou, para que a admiração de Tobio lhe dê um pouco mais de força para...

Tobio está bem atrás dele, com o rosto contorcido em dor, e o tempo dobrado ao redor deles.

Ele só conseguiu chegar tão longe porque Tobio o ajudou. Tobio sustentou o peso dos dois últimos anos quando o vigésimo terceiro foi demais para ele.

Não, não, não, NÃO NÃO NÃO ESSA É A MINHA VITÓRIA, NÃO, ELE NÃO PODE.

Há algo de errado. Ele vê isso nos olhos arregalados de Tobio, no misto de preocupação e assombro da Iwa-chan, no cliente se encolhendo atrás dele. O algo de errado está nele. É algo que o queima por dentro, como se fizesse caminho de dentro da sua alma para o resto dele, até a pele. Ele estava gritando há algum tempo já, sem perceber. A chama é muito forte. As lágrimas evaporam em suas bochechas. Ele não vai conseguir… Ele estava tão perto… Ele vai perder o controle...

Oikawa abre os olhos. Ele não está mais no fluxo do tempo, e sim de volta ao porão. O chão está quebrado sob suas costas, e ele tem certeza que há algo, ou vários lagos, quebrados dentro dele. O mínimo movimento dói, mas ele se força a olhar ao redor. Há rachaduras no teto, nas paredes, no chão. Há coisas quebradas e destruídas. A água da piscina quebrada flui calmamente de volta para a terra. É um som que o acalma.

Ele olha para o outro lado, e grita. Ele vê Iwaizumi olhando para ele, sem piscar, sem se mexer, sem nenhum brilho nos olhos ou em sua alma. Ele não acredita. Ele não pode acreditar. Ele se arrasta até Hajime, mesmo com fraturas nas duas pernas. A dor do seu corpo não é nada comparada a dor do seu peito. Ele o abraça, o rosto contra o pescoço de quem ele amava mais do que tudo no mundo, e não há nada. Não há calor, não há batimento, não há…

Há uma voz. É Tobio. O garoto sobreviveu. O garoto que roubou sem título, o garoto que o distraiu no fluxo do tempo, o garoto que matou seu companheiro…. 

— S-SEU FILHO DA PUTA, MALDITO, DESGRAÇADO, A CULPA É SUA! — Tobio invoca seu escudo mais por instinto do que por perceber que Oikawa o está atacando. É apenas quando as azuladas chamas lambem a barreira a poucos centímetros de seu rosto que ele percebe não apenas o ataque, mas a intensidade dele. Seu mestre não queria puni-lo. Queria matá-lo.

Oikawa não percebe que está chorando. Ele não percebe as chamas que engolem a sala, ou a ferida recente que queima em seu peito como uma boca aberta. Ele não consegue mais ver nada além do corpo de Iwaizumi, ou sentir nada que não o vazio. — S-SE VOCÊ NÃO T-TIVESSE M-ME DISTRAÍDO, E-EU… - Sua voz falha, as lágrimas evaporando em suas bochechas. Ele chora, pateticamente, dolorosamente, por longos minutos, e Tobio não sabe se deve correr ou tentar confortá-lo.

E então, o Grande Rei levanta a cabeça, e o sorriso em seu rosto faz Tobio se encolher ainda mais contra a parede atrás dele. Ele já tivera medo antes - de seu mestre, inclusive - mas nunca dessa forma, nunca como se seu mestre fosse devorá-lo inteiro, rasgar sua alma para fora do corpo e fazê-lo sofrer antes do final. É isso que a expressão de Oikawa promete agora. É isso que está em sua postura, em sua voz, e no inferno que queima atrás dele. 

— Eu amaldiçoo você, Kageyama Tobio. Eu prometo… Algum dia, quando você menos esperar, eu vou devolver isso a você. Vou fazê-lo sentir a mesma dor que sinto agora...

 

 

Oikawa observava. Era o que mais vinha fazendo nas últimas semanas - vigiar Hinata. Ele sabia todos os hábitos do garoto agora. O que comia, quando dormia, o que fazia, com quem estava. Sabia o rosto e nomes de seus familiares e amigos próximos. Sabia quantos deles eram magos. Sabia suas cores favoritas, programas de TV, as roupas que usava, escola onde tinha se formado e onde ia agora. Sabia que, ao dormir, Hinata tinha a tendência de abraçar os próprios joelhos, ou de projetar o lábio inferior quando contrariado.

E ele amava isso.

De onde tinham vindo essas sensações? No início, ele precisava confirmar suas desconfianças em relação aos dons do garoto. Isso ele tinha conseguido há muito tempo, e ainda assim não queria parar, não podia parar. Ele queria saber mais sobre ele, o quanto fosse possível. E o saber apenas o inflamava mais - ele o queria mais, ansiava mais, desejava mais. Era isso que tinha feito Tobio se entregar assim? Poderia ser esse outro dos dons de Hinata? Era o que o mago gostava de justificar para si mesmo, quando a vergonha do que fazia era muito grande. Mas nem mesmo essa justificativa seria capaz de manter essa afronta a sua dignidade longe por muito tempo. Oikawa teria que pôr um fim nisso, e logo.

Em suas mãos estava uma pena, grande e macia, escura com um brilho intenso e incomum. Tinha sido um trabalho intenso e delicado manufaturar aquilo, mas felizmente o Grande Rei tinha experiência em instrumentos do tipo. Outro, o amuleto em forma de cigarra, ele carregava sempre consigo, para desprazer de Iwaizumi. Este conseguia ser mais precioso ainda - ele o fizera a partir de um belíssimo par de asas escuras. 

A piscina refletia a imagem de um lugar distante. O quarto de um jovem garoto, com cores claras e o sol entrando pelas janelas amplas. O garoto está sentado na cama, com um gato preto enorme deitado no travesseiro a seu lado. Está conversando normalmente com os amigos, uma tigela de sopa em seu colo, os olhos abertos e atentos e vivo. Há menos de um mês antes, esse garoto estivera preso em cima de uma cama, há um passo de se tornar um espectro do abismo.

Ele não se tornou, porque o ruivo a seu lado vendeu muitas coisas para impedir este fim, e agora está na hora de cobrar esta dívida.  

O mago aproximou a pena da boca, dando um beijo suave e sorrindo ao vê-la farfalhar em resposta. Mantendo-a próxima, ele sussurrou, a voz suave e cheia de antecipação.

Hora de ir, Hinata.

Algo estranho. Hinata levou a mão ao rosto, confusão escrita em suas feições. Num instante, ele estava ouvindo Yamaguchi falar sobre a vez em que ele e Tsukishima encontraram um espírito lunar, uma história tão boa que até Tobio estava rindo, e ele ria muito pouco desde que a briga que tiveram. No outro, havia a sensação forte de algo errado. Era como se alguém tivesse acabado de lhe dar um beijo na bochecha. E ele podia jurar que ouvira alguma coisa...

Ah, mas você ouviu sim. Hora de pagar sua dívida, não? Você fez um acordo comigo.

O ruivo gelou, sentindo o frio descer por sua espinha quando reconheceu exatamente de quem era a voz e o que ele estava dizendo. Mas… Agora? Ele achava que ainda tinha tempo?

Tolinho. Eu nunca lhe disse que você teria muito tempo. Até fui bonzinho demais com você - a letra do acordo não lhe dava um tempo mínimo, e eu lhe deixei ver seu amigo Kenma feliz e recuperado. Não era isso que você queria? Você conseguiu. Agora, sem hesitações, Hinata. Isso é uma ordem direta. Venha até mim.

Hinata sentiu seu corpo se erguendo da cadeira, mesmo que sua mente gritasse pelo contrário. O ato súbito atraiu a atenção de todos os seus amigos, especialmente quando ele ignorou as perguntas e se dirigiu diretamente para a porta. Era aterrorizante, a sensação de se estar preso no próprio corpo. Nenhuma das coisas que queria fazer - sentar, falar, gritar, parar - era obedecida. Ele não era mais do que o boneco de carne de Oikawa Tooru agora.

Alguém o segurou pelo braço, e ele se virou para ver Tobio. Ele sabe. Ele sabia. Ele esperava que, de alguma forma, Tobio pudesse ver o quão assustado ele estava por trás dos olhos complacentes do feitiço de Oikawa. Por favor… Me ajude…  

A voz de Oikawa em sua mente tinha outros planos. Tinha que ser o Tobio, se metendo. Dê um jeito nele. Um soco serve.

Ele teve que sentir seu corpo se virando contra sua vontade, ganhando velocidade, mesmo que tentasse com todas as forças fazer o movimento contrário. O punho fechado colidiu contra o nariz de Tobio, e, pela dor em sua mão e pelo som do impacto, alguma coisa tinha quebrado em algum deles, ou nos dois. Enquanto Yamaguchi e Kuroo acudiam Tobio, o corpo de Hinata sequer hesitou, nem demonstrou nenhuma dor.

Hahahaha, bem feito, Tobio-chan! E, hmmm, você é mais forte do que eu pensava, Shoyou-chan. Gosto disso. Mas podemos discutir mais frente a frente. Agora, eu quero que você dê um último recado meu a Tobio-chan, e então venha direto para cá. Sem desculpas.

Kageyama sentiu o sangue na boca e no rosto, e soube que tinha quebrado o nariz. Ele devia ter percebido. Quando Hinata se levantara, ele agira mais por instinto do que outra coisa, e de fato temera começar outra briga ali mesmo. Quando os dois se encaram, no entanto, ele soube. Os olhos de Hinata estavam desfocados e sem vida, olhos distantes, e ele sentiu um aperto no coração mesmo antes de que o amigo lhe desse um soco na cara. Enquanto Tadashi e Kuroo o acudiam, ele tentou afastá-los com um braço, o outro cobrindo o nariz com a mão para estancar o sangue. Ele precisava se levantar, eles precisavam pará-lo antes que Oikawa…

Hinata estava parado na soleira da porta, ignorando os outros e a mão claramente inchada. Seus olhos mortos estavam focados em Tobio, e ele sorriu. Mas aquele não era o sorriso habitual de Hinata, de felicidade, de animação, de determinação. Aquele era o sorriso de Oikawa Tooru, o sorriso que ele vira no dia da morte de Iwaizumi, o sorriso cheio de promessas e que agora dizia eu venci.

 

— “Você tirou a minha luz. Você não merece ter a sua.”

 

 

Oikawa Tooru soltou um longo suspiro de alívio. Finalmente, as queimaduras do ritual mais recente estavam curadas - ou, pelo menos, boas o suficiente para não precisar de duas torturas diárias de curativos com Iwa-chan. Este, ao menos, estava se comportando muito bem - pelo menos Oikawa não tinha provas do crescente sadismo secreto de Hajime quando cuidava dele. Talvez, se ele continuasse se saindo tão bem, ele devolvesse sua língua na semana seguinte.

O mago fez seu caminho de volta ao quarto, até a cama, onde um pequeno passarinho esperava encolhido em sua gaiola. Os ombros de Hinata, abraçado aos joelhos daquela forma que Tooru amava, balançavam de tal forma que parecia que o garoto estava chorando, ainda que não houvesse nenhum som. Ele estava ficando perigosamente bom em esconder o que sentia dele. Talvez fosse melhor colocar um comando quanto a isso.

O pingente de cigarra e a pena escura balançaram delicadamente quando Oikawa subiu na cama e engatinhou até onde estava Hinata. Carinhosamente, fez carinho em seu cabelo, sentindo o garoto ainda tremer. Antes, ele tentava evitar totalmente seu toque, mas agora parecia estar se acostumando, o suficiente para não se encolher. — Oh, amor, O que houve? Você sabe como me dói te ver chorar.  

Inicialmente, não houve resposta. Pelo contrário, ele pareceu querer sumir ainda mais para dentro dos travesseiros, para longe de seu dono. Oikawa franziu as sobrancelhas, levando a mão à pena que carregava no pescoço. — Olhe pra mim, Shoyou. Diga o que aconteceu. Eu lhe dou permissão.

Hinata ergueu os olhos como uma marionete que tem suas cordas puxadas. O rosto infantil, tão bonito quando sorria, era certamente igualmente bonito quando chorava. As lágrimas se misturavam ao sangue da última intercorrência que tiveram, ambos descendo por seu rosto em trilhas perfeitas. Era tão maravilhoso. Fazia Oikawa querer beijá-lo de cinco vezes diferentes.

Seus olhos, no entanto, contavam outra história. Nem mesmo a complacência da magia de controle conseguia afastar completamente o ódio dos olhos de Hinata, muito menos de sua voz. Falar livremente era quase doloroso agora - ele aprendera a como se comportar sem ter que perder a língua, felizmente - mas naquela voz tremida ainda havia suficientemente agressão para que o mago erguesse uma sobrancelha em surpresa. — Você me faz fazer essas coisas. Me faz machucar as pessoas. Me faz apontar as pessoas que você vai matar. Eu odeio isso. Odeio você.

Em outro momento, Tooru o puniria. Agora, estava muito cansado pra ter que lidar com isso, então apenas sorriu, deixando futuras ideias de castigos de corvinhos desobedientes para mais tarde. - Que pena. Porque eu amo você. Amo tanto… - Ele correu os dedos pela face do garoto, sentindo a pele macia, o calor que vinha dele. — Agora, me beije.

Com o tempo, ele iria extinguir aquela última faísca de rebeldia e apagar da mente de Hinata tudo que não fosse ele. Ele o teria por completo - mente, corpo, coração e alma, as marcas de sua posse tão fundo dentro de Shoyou que ele nunca lembraria que um dia tinha sido diferente. Como o corvo desobediente que o garoto era, Oikawa cortaria suas asas de novo e de novo, até que nunca mais pensasse em sair da gaiola sozinho, nunca mais pensasse em se afastar do seu dono.

O Grande Rei teria tudo - sua coroa, sua magia, sua vingança, seu companheiro e sua pequena estrela. Não lhe importava se a coroa estivesse suja de sangue, e fosse continuar assim -  ele logo esqueceria o rosto de Kenma e de quem mais se pusesse entre ele e seus objetivos. Não era importante se sua magia vinha da dor daqueles que amava, ou da dor que causava aos outros, desde que ela continuasse vindo, continuasse lhe dando poder. Não era relevante a ele que Tobio nada fizera além de tentar impressioná-lo, ou como ele trouxera Iwaizumi de volta contra sua vontade, ou que Hinata tivera sua vida destruída por seu amor.

Afinal, Oikawa Tooru sempre conseguia o que desejava.


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Notas finais do capítulo

As palavras rituais do Oikawa:

“I am the gate between this world and the other.
I am the one who rips apart the veils of reality.
I am the bringer of change, holder of truth, master of desire.
And I order you, to my will, to the blood of our contract
Change. Die. And be born again.
I give you the blessing through which you will be reborn
Not as a sleeping soul, but as an Awakened, as one of us
Through my order, by my will, you shall return as one who heals and saves
That is the blessing that you paid for with your previous life.
Your life for another, your dreams for your desire
Your soul for my pleasure
And now, I tell you, Shoyou Hinata: wake up.”


O que o Kenma disse pro demônio: "I’m the one you want."

O que o Kageyama disse para abrir o portal: "Arcane gate, open!"

Se você chegou até aqui, tenho apenas o que agradecer. Muito obrigada por ter prestigiado o resultado de um mês escrevendo normalmente e dois dias escrevendo feito a louca dos gatos em alta velocidade. ♥

Ahhh, espero não ter decepcionado muita gente com o final. Esse final ruim simplesmente se escreveu sozinho antes de 98% da fic. Eu apenas conectei os pontos até lá =u= Igualzinho ao rarepair principal, a ideia só me veio e eu não lutei contra ela. Mas bem, o que fazer? The bad guy wins this round...

Espero que tenham gostado, pessoal! Beijos e até a próxima~ :3



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