Prelúdios Etéreos I: A Ascensão escrita por Raffs


Capítulo 14
Capítulo 13




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Há muito Sophie se acostumara a ficar sozinha. Apesar disso, ainda foi um pouco doloroso ver a garota com quem deveria dividir o quarto desconfortavelmente anunciar para um monitor que não queria partilhar espaço com uma feciter.

Ao menos, teria mais espaço para si mesma. Apesar de sobrarem quartos nos dois prédios de alojamento, a Academia seguia à risca a regra de divisão dos quartos: dois alunos para cada alojamento. Sophie achava aquilo desnecessário.

Trancou a porta. Com folha de papel e aquela maravilhosa invenção baseada em carbono chamada lápis em mãos, pôs-se a desenhar os retalhos do sonho. Era o que restava, já que a voz, por algum motivo, não queria colaborar. Era como se temesse o que o sonho tinha a dizer. Claro, desde o incidente na cerimônia três dias antes, ele nada dissera. Mas Sophie podia sentir que a voz em sua cabeça estava temerosa, por mais insano que isso pudesse soar.

Até então, tudo que havia conseguido era um bocado de símbolos sem nexo, exceto pelo desenho de uma cena um pouco assustadora. Algo semelhante a um laboratório abandonado, com uma orbe na mão de uma pessoa caída em meio a uma poça de sangue. O retrato ficou tão fiel que Sophie orgulhou-se de suas habilidades artísticas. Mas não tinha sequer ideia de porque havia sonhado com aquilo. Pior ainda, ela tinha certeza de que, enquanto sonhava, era como se ela estivesse realmente em algum lugar do laboratório. Como se não fosse um simples sonho, mas uma lembrança.

A próxima aula começaria em breve. Ela tinha apenas alguns minutos a mais para manuscrever seu sonho.

Fechou os olhos e deixou sua mente guiar suas mãos, como aqueles sacerdotes mediúnicos das aldeias qaian. Seu ceticismo tornava difícil levá-los a sério. Duvidava que algum deus fosse conceder a algum mortal a capacidade de falar com mortos. Os deuses nunca eram tão generosos.

Apenas símbolos e mais símbolos. Precisaria buscar em algum livro por aqueles caracteres.

Enquanto tentava reconhecer as inscrições, alguém tentou abrir a porta. Devia estar apressada, a julgar pelo fato de não ter batido.

— Quem seria?

— Hã, Sophie… eu queria ver se você está bem. Eldar me deu alguns remédios que eu posso administrar para você.

Era a voz da garota-enfermeira, Elae.

— Obrigada, mas eu estou muito bem. Já faz dois dias que saí da enfermaria.

— Isso não quer dizer que você está bem. Apenas que está melhor. – ela continuou, após o silêncio de Sophie – São só exames de rotina, Sophie.

— Isso é o que os médicos sempre dizem. Não caio nessa.

— Por favor…? Eu só quero ajudar.

Elae era (irritantemente) insistente.

Escondeu as pilhas de folhas rabiscadas embaixo da cama. Alguns segundos depois, a porta estava destrancada.

— Obrigada. – ela entrou no quarto e sentou-se próxima à escrivaninha, mexendo numa bolsa que carregava consigo.

— Onde estão os remédios?

— Eu menti. Não trouxe remédios.

— O quê!?

— Eu só queria conversar. Espero que não se incomode. – tirou da bolsa algumas frutas e uma barra de cereais, que jogou para Sophie – Não vi você no refeitório. Fiquei preocupada.

Dentre todas as coisas com que Sophie estava disposta a lidar dentro daquela instituição, uma garota tentando fazer amizade não estava nos planos.

— Se está tentando se aproximar de mim, é bom que saiba… eu não sou muito de conversar.

A jovem não pareceu surpresa enquanto mastigava uma maçã.

— Eu acho que vale a pena tentar.

A insistência dela estava se tornando cansativa.

— A minha aula de Introdução à Alquimia começa daqui a pouco. Eu tenho mesmo que ir, Elae.

— Sophie, eu também nunca fui de muitos amigos. E sou tão caloura quanto você aqui. Quero me aproximar de pessoas que valham a pena o esforço. Você é uma delas.

         –  Agradeço por isso, mas eu tenho motivos para não me aproximar das pessoas.

— Todos temos. Só esquecemos disso. Por favor. Só uma conversa.

         Tudo aquilo era estranho demais, até para Sophie, que já vivenciara muitas coisas estranhas.

          – O que eu tenho de tão especial para despertar seu interesse?

          – Eu… eu não sei. – ela piscou, fitando um ponto aleatório no chão. – Acho que ver você na enfermaria, tão… frágil… é meio instintivo, sabe? Eu sinto que você precisa de um ombro amigo.

          Sophie não sabia se ficava honrada ou ofendida. Acabou por assentir.

— Tudo bem, mas, como eu já disse, não sou muito de…

— Sophie.  – Elae interrompeu. Parecia um pouco assustada – O que é isso?  – a garota puxou uma folha de papel que surgira de debaixo da cama. Para o azar de Sophie, era exatamente a com o desenho perturbador do laboratório.

Aquela fração de segundos pareceu mais longa do que o normal. A feciter claramente não sabia como reagir, então deixou o instinto tomar lugar em sua mente e puxou o papel imediatamente da mão de Elae.

— Eu ficaria agradecida se você fingisse que não viu isso.  – disse, nervosamente. Escondeu a folha atrás de si.

— Mas…

Não é nada, Elae. Juro.

Elae estava claramente frustrada. Suspirou.

— Então… se algum dia eu tiver a sua confiança…

— Certo, eu digo. Mas ainda é cedo pra cogitar que eu vou confiar em alguém. Você dizia…?

— Ah, às vezes eu fico pensando… você acredita em destino, Sophie? – Elae se pôs de pé, e sentou-se novamente, mas desta vez ao lado da “amiga”, na cama.

— Prefiro duvidar que ele exista. Mas, infelizmente nesse caso… nada é impossível.

— Sabe quando você conhece uma pessoa, e você sente que aquela pessoa vai mudar sua vida drasticamente?

— Talvez não por experiência, mas… sim, eu sei.

— Minha cabeça está meio caótica desde que entrei aqui, porque eu simplesmente sinto isso com cada pessoa nova que conheço. É como se o universo tivesse posto a todos nós, mais de setecentos novos alunos, para nos encontrarmos dentro destes muros. Eu sei que pareço maluca, que isso tudo soa sem nexo, mas acho que um dia você vai me entender. Nós não seremos os mesmos quando sairmos. Eu mal entrei e já mudei como nunca! – ela parecia se empolgar mais e mais a cada sílaba. Sophie estava curiosa para saber o que seria concluído a partir daquilo.  – Eu te disse… te disse que me aproximo de pessoas que valem a pena, certo? – Sophie concordou, balançando a cabeça – Acho que faria bem te apresentar algumas destas.

Então era isso. Todo aquele discurso para tentar forçar Sophie a socializar. Ela esperava mais de Elae.

— Elae, eu já disse que não! Eu só quero ficar em paz. É tão difícil entender isso? Eu não me sinto sozinha ou vazia, nem nada do que você estiver presumindo. Estou bem como estou.

— Eu não quis insinuar nada disto… só pensei que…

Os sinos tocaram.

— Introdução à Alquimia. Tenho que ir, Elae.

Sophie se levantou e começou a arrumar suas coisas, ignorando-a. Não que quisesse ser má ou indiferente, mas se parasse para ouvi-la, aquela conversa não acabaria nunca. E, querendo ou não, estava mesmo atrasada.

— Tudo bem. Eu entendo.

Elae saiu do quarto. Alguns segundos depois, Sophie fez o mesmo, antes fazendo questão de guardar cuidadosamente as anotações dos seus sonhos num fundo falso da gaveta da escrivaninha. Percorreu os corredores apressadamente, quando notou que Elae seguia no mesmo percurso que ela.

— Elae. – cutucou-a – Aonde vai?

— Para a aula de Herbalis… – ela não se deu ao trabalho de terminar a frase – … Cuja sala é ao lado do Laboratório Alquímico!

Foi a vez de Sophie dar um longo e profundo suspiro.

— Acho que estou começando a acreditar em destino.

Elae, por sua vez, sorria enquanto falava quase que sem parar.


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