Sapatinho de Cristal escrita por Folhas de Outono


Capítulo 1
Capítulo 1




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Arrumei as malas no carro, espremendo-as para que coubessem. Depois de horas de voo na classe econômica, finalmente podia me mexer normalmente. Ou quase isso, já que uma das minhas pernas ainda estava dormente devido a posição em que fui obrigada a ficar dentro do avião enquanto minha madrasta e minhas duas meio irmãs se divertiam na primeira classe.  

            Logo que entramos no taxi, depois de muito esforço para que tudo coubesse no bagageiro, foi passado ao motorista o endereço de nossa nova casa. Sim, nova casa. Lady Tremaine, minha madrasta, tinha gastado todo o nosso dinheiro com sapatos para ela e suas filhas. Depois, nossos móveis, para comprar vestidos. Por fim, nossa casa, para pagar por seus outros “pequenos luxos”, como ela chamava as idas semanais ao SPA mais caro da cidade. Agora, a única coisa que restou foi a casa que meu pai herdou muitos anos atrás, pouco antes de falecer enquanto dormia.

O lugar onde ele morava quando criança, não passava de uma simples casa, perto da floresta, onde era possível ter uma vida simples e calma. Tudo o que aquelas mulheres não queriam. Em parte, saber da infelicidade delas me alegrava um pouco, mas outra parte de mim também estava triste, pois agora viveríamos em um lugar estranho para mim. Tive de abandonar todos os meus amigos para vir morar na Escócia, tudo porque Lady Tremaine e suas filhas, Anastácia e Drizella, não sabiam lidar com um cartão de crédito.

            E cá estamos nós. O taxista precisou atravessar quase toda a pequena, mas muito charmosa cidade onde moraríamos, mas enfim chegamos. Era um casebre relativamente grande. Suas paredes de pedra combinavam com a charmosa cidade pela qual acabamos de passar, mas destoava em meio ao campo verde e irregular onde se encontrava. Possuía uma cerca, um pouco quebrada, janelas e portas de vidro e uma floresta ao fundo. “Ótimo, animais silvestres” pensei ironicamente. A última coisa que precisava é ter que expulsar um gato selvagem.

            Por dentro, a casa era bem aconchegante, com um conceito bem aberto.  Da porta, era possível ver a sala, o primeiro cômodo do imóvel. Possuía um sofá grande, para mais ou menos quatro pessoas, da cor bege. Uma pequena mesa de vidro ao centro e uma lareira onde em cima repousava uma televisão. Era meio monocromática, mas alguns assessórios de decoração, uma cortina nova e almofadas e ficaria perfeita.

Mais ao fundo era possível ver uma bela e ampla cozinha. Era meio simples e rústica, com muitos armários de madeira escura, uma pequena mesa redonda com dois lugares e um tampo de vidro sobre a madeira. Haviam ali uma geladeira, um fogão e uma máquina de café. Sem lava-louças. Sinto meus ombros caírem em frente a esta constatação, de repente muito pesados. Lavar a louça era, sem dúvida uma das piores tarefas. A esquerda, havia uma pequena porta, onde deveria ser a dispensa.

A direita da sala, entre os dois cômodos, havia um corredor com três portas. Os quartos, provavelmente. O pé direito alto me deixou impressionada, apesar de que agora teria que adicionar “tirar teias de aranhas do teto” na lista de tarefas, caso elas aparecessem. Ele possuía vigas de madeira rústica a mostra, dando um belo contraste contra o branco, mas combinando perfeitamente com alguns dos moveis de madeira espalhados pelo local.

A casa estava com um ar pesado e cheiro de livro velho, portanto teria que abrir as janelas o quanto antes. Além disso, o assoalho de madeira rangia levemente em alguns lugares, o que era outro problema a ser resolvido.  

—Suba com as nossas malas, Elinha. – Sua voz esganiçada, como a de um gato com o rabo preso, me tirou de meus devaneios.

—Claro Anastácia. -Respondi, desejando que ela tivesse engasgado enquanto pronunciava o apelido pelo qual me chamara.

            Mesmo a contragosto, peguei suas malas e de Drizella, me dirigindo ao quarto que haviam escolhido para si. Lindo, realmente, mas tão frio quanto as donas. Possuía duas camas muito convidativas, paredes brancas como a de um hospital e um imenso armário de madeira prensada branco e preto. Joguei as bagagens em suas respectivas camas. Elas dariam conta de desfazer suas próprias malas, certo? Antes de ir embora, não pude deixar de reparar que ao lado da cama de Drizella, sobre o criado mudo, havia uma fotografia de três garotas presa a um porta-retratos de bordas finas e prateadas. Sem perceber, segurei-a em minhas mãos e me pus a observá-la.

A primeira pessoa retratada era a própria Drizella, com seus belos e ondulados cabelos loiros em um corte reto, que suavizava os olhos negros da garota, combinando com sua pele branca e levemente rosada. Já a segunda, era Anastácia. Na época ela já usava os cabelos presos em um coque rígido como atualmente. Apesar de serem fisicamente muito parecidas, Anastácia já possuía o corpo mais desenvolvido que o da irmã e era mais esbelta também, afinal, mesmo com os constantes regimes, Drizella sempre foi a mais rechonchuda de nós três. Por fim, lá estava eu, com meus cabelos champanhe presos em uma trança lateral, meus olhos cinzentos sem nenhuma maquiagem e corpo modesto. Mesmo tendo se passado três anos desde que tiramos aquela foto, ainda permanecíamos iguais a como éramos naquela época, apenas um pouco mais maduras. Essa era com certeza a única fotografia que já havíamos tirado juntas, e mesmo assim, havíamos sido obrigadas pela antiga escola em que estudávamos. Algo sobre dia dos pais. O porquê de Drizella deixa-la ali era um mistério.

Sem querer me demorar mais, recoloquei o porta retratos onde estava.

Voltei a sala e puxei a minha mala e a de Lady T. desta vez.

O quarto da matriarca se revelou ser mais aconchegante do que eu esperava que ela fosse capaz fazer ficar com uma decoração, graças a ajuda de uma lareira que fica frente a cama de casal e a um aromatizador de ambientes em cima da cabeceira de cama, de cheiro doce e enjoativo. Além disso, o quarto era, pelo que pude perceber, uma suíte com um closet, onde minha madrasta provavelmente estava. Com essa cobra eu precisava ter sempre mais cuidado, então apenas deixei sua mala perto da porta e me dirigi a saída tentando fazer o mínimo de barulho ou ruído possível.

            -Ella, querida. Já viu o seu quarto? - Disse saindo do cômodo. Sua voz rouca e grave denunciava os anos de fumo deixados para trás.

Estaquei na soleira e me virei lentamente. Ela realmente parecia uma cobra à espreita, prestes a dar o bote em uma preza fácil e saborosa. Imponente, em saltos agulha em seu último tom de preto, vestido de tricô de mesma cor que começava em seus joelhos e subia justo até o pescoço, de onde pendia um colar de três correntes de pérolas tão falsas quanto a dona, que assim como as mangas do vestido, alcançavam o cotovelo flácido da mulher a minha frente. Seu rosto, no entanto, apesar de mostrar certa idade, permanecia tão conservado quando as idas semanas ao SPA puderam comprar. Os cabelos já totalmente grisalhos estavam em um coque firme e elegante. Já os olhos negros, esbugalhados e tipicamente cobertos com uma sombra ainda mais escura, me encaravam semicerrados, com a ferocidade de uma leoa a se preparar para dar o bote.

            -Não. Ainda não. –Fui sucinta.

            -Porta a esquerda da cozinha, querida.

            -Achei que fosse na porta ao lado, em frente ao de Anastácia e Drizella. –Disse realmente confusa.

            -Ah não, aquele é o banheiro social. A não ser que prefira dormir no chuveiro... –Diz satisfeita.

            -Não, melhor não.- Digo de uma vez. A imagem mandada pela minha mente de alguma daquelas mulheres decidir ligar o chuveiro enquanto durmo para me acordar me deu arrepios. Sem contar no frio que faz neste país.

            -Foi o que pensei. Agora, guarde suas coisas e vá pegar a sua nova lista de afazeres na bancada da cozinha. Comesse o mais rápido possível e de preferência tirando a poeira deste lugar, está tudo imundo. –Disse satisfeita.

Mentira, a casa parecia uma joia brilhante de tão limpa. Havíamos contratado uma equipe de limpeza que passou aqui ontem mesmo, só para que quando chegássemos, tudo estivesse em seu devido lugar, sem panos nos móveis ou um grãozinho de poeira no chão, por esse motivo tudo estava limpo e brilhante. E eu sabia disso.

Cobra —Sibilei baixinho, sem conseguir me conter.

            - E quando terminar de desfazer suas malas e seus afazeres, pode ir conhecer a cidade, logo eu e as meninas sairemos para visitar os lugares e não precisaremos dos seus serviços esta tarde.- sorriu irônica, antes de empurrar o meu ombro, me fazendo dar dois passos para trás, e por fim, fechou a porta de seu quarto, quase batendo-a em meu nariz.

            Apesar do descaso que ela derramou sobre mim, ainda senti contentamento. Conhecer a cidade era uma aventura pela qual eu ansiava. Ver as pessoas, as roupas, as cores, admirar a arquitetura do local do banco de alguma praça com uma bebida quente em minha mão. Deixar-me esquecer da minha vida conturbada e ser, mesmo que por alguns momentos, uma simples pessoa comum, com uma vida comum, fazendo coisas comuns. Permitir-me ser uma pessoa livre por alguns breves momentos, mesmo que seja para escolher o caminho da cidade que gostaria de seguir ao invés de escolher o caminho da minha vida.

            Suspirei, cansada só de imaginar os itens que ela havia adicionado à lista dessa vez. Para ela, achar cada vez mais coisas a serem feitas por mim, não importando o nível de relevância, era como um esporte que deveria ser sempre praticado com esforço e destreza.

            Continuei arrastando minhas malas até a porta a esquerda da cozinha, como minha madrasta havia me instruído. Qual foi a minha surpresa ao perceber que aquilo não era um quarto de verdade, certamente havia sido uma dispensa antigamente. Ainda era possível ver as marcas das antigas prateleiras nas paredes e os furos de seus suportes sequer haviam sido tampados. Havia uma pequena cama e um armarinho de duas portas ali. Uma janela quadrada bem pequena no topo da parede e uma lâmpada pendendo do teto sem uma luminária como suporte. O cheiro de mofo era tão forte no lugar, que pude senti-lo assim que abri a porta.

Ódio e frustração. Foram tudo o que consegui sentir.

Larguei a mala no único espaço disponível, o caminho até a cama, e segui para a cozinha ver o que teria de fazer. Como esperado, a lista era grande.

Limpar todas as vidraçarias da casa.

Concertar a cerca quebrada.

Trocar toda a roupa de todas as camas.

Limpar todos os sapatos de Anastácia e Drizella.

Aspirar a tapeçaria.

Desempacotar os objetos que trouxemos e coloca-los cada um em seu respectivo lugar.

Tirar o pó de todos os móveis.

Levar para fora todo o lixo produzido pelos papeis, caixas e plásticos utilizados para embalar os nossos pertences.

E por aí vai. Ela havia preenchido uma folha inteira, me fazendo murchar cada vez mais conforme lia cada um daqueles itens. A ideia de visitar a cidade se tornou algo muito distante. Levaria toda a tarde e parte da noite naquelas tarefas, certamente não terminaria antes das nove, quando todos os restaurantes e o comércio já estaria fazendo seus últimos pedidos. Lady T. havia planejado tudo direitinho.

Mesmo desanimada, fui atrás de todos os produtos que precisaria para cumprir as devidas tarefas. Decidi começar de fora para dentro, então primeiro concertei as partes danificadas, seja pela humidade, descuido ou cupins e traças. Não possuída uma habilidade em manusear pregos e talhas de madeira, mas me esforcei para que ficasse tão bom quanto era capaz. Depois limpei as janelas. Enquanto passava o produto nas vidraças, meu pulso começou a arder e não consegui parar de pensar em como não queria fazer tudo aquilo. Como não queria ter que viver assim. Como, em um mundo perfeito, eu seria amada pela minha família. Minha mãe não teria sido uma prostituta, meu pai não teria morrido. Eu teria irmãs que me amassem, brincassem comigo quando fosse criança e me ajudariam a planejar o meu casamento.

Ah, o meu casamento. Seria à beira da praia, no pôr do sol e repleto de orquídeas e flores brancas. Tecidos alvos como a neve flutuando com a brisa do mar e denunciando a direção do vento durante a minha primeira dança com meu marido, ao som de uma música que fosse nossa, que tivesse marcado nossa história como um selo marca uma carta. Eu trabalharia como violinista. Conheceria o mundo e tocaria nos concertos mais bem vistos e respeitados pela comunidade da música.

No meu mundo perfeito, eu não dormiria em um armário, eu dormiria em um quarto amplo, aconchegante como um ninho de amor. Teria pequenos seres, réplicas minhas e de meu esposo, correndo e gritando pela casa. Com pegadas de lama pela sala. Eu brigaria com eles, mas por dentro, acharia graça. Brincaríamos de construir cabanas com lençóis e cadeiras na sala de estar.

Se fosse em um mundo perfeito...

Mas não era. Na vida real, meus braços doíam tanto devido ao trabalho excessivo que estava sendo obrigada a fazer, que pareciam querer cair ao chão a qualquer momento.  Minha coluna, estalava sempre que me erguia de entre os sapatos ou tapeçarias, como se de tanto ficar curva, essa fosse sua forma natural.

Olhei novamente a lista. Já havia cumprido boa parte dela, mas também havia me demorado mais que o previsto nas tarefas. Precisaria respirar por alguns segundos e retirar coragem do fundo de meu âmago para conseguir seguir em frente e ir até o fim. Assim o fiz, correndo de um canto a outro até tudo estar feito.

Por fim, consegui terminar tudo duas horas antes do previsto. Estava exausta, meu corpo inteiro doía. Cada membro, braços, mãos, pernas, pés e até mesmo meu pescoço e coluna clamavam por um pouco de descanso. No entanto, forcei-me a tomar um banho quente e me vestir apropriadamente. Não sabia quando teria outra oportunidade de ver a cidade.

 


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