Rewind escrita por Lubs


Capítulo 1
Timão


Notas iniciais do capítulo

Não sei nem se enquadra no tema, mas... Espero que gostem ^^



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            Fazia exatamente um ano que aquilo tinha acontecido, mas o coração de Nancy continuava completamente estraçalhado.

            Não saberia dizer exatamente quando havia abandonado sua casa no recife junto de suas irmãs e sua mãe para morar no meio daquelas ruínas abandonadas de navio, se torturando todos os dias pelo que tinha ocorrido. Era quase como se ela esperasse que a garota de cabelos louros e vestido branco surgisse de volta dos mortos, com uma cauda de sereia que nunca tivera, para que ambas pudessem nadar livremente pelos mares. Juntas.

            Tudo que Nancy queria era que um dia elas tivessem ficado juntas antes que Alana morresse, mas talvez fosse pedir demais.

            Principalmente quando ela era a assassina.

            Acordou em um sobressalto, com os gritos da voz melodiosa ecoando em seus ouvidos, como já era rotina. Nadou por entre o mastro em decomposição, observando o pedaço de pano puído e esverdeado pelo muco que habitava as profundezas do oceano, mas que um dia fora uma imponente bandeira branca que ostentava o nome daquele grande cruzeiro famoso. Passou por entre a madeira apodrecida do convés principal, os buracos abertos no chão em virtude da decomposição do navio facilitavam sua descida até a cabine do capitão – a cabine dela. A cabine de Alana.

            A porta de metal oxidado pendia quebrada, já que afundara quebrada, e Nancy se vira obrigada a arromba-la para entrar pela primeira vez. A cauda azul avançou, causando pequenas ondas na água salgada, quando ela entrou no local onde uma das capitãs mais famosas um dia comandara um interatlântico famoso. Tocou o vidro quebrado por onde a sua amada, Alana, tentara escapar ao perceber que estava submersa em água, por onde se viram pela última vez, onde trocaram o último toque. O último beijo.

            Dirigiu, então, a mão delicada até o timão de madeira já desgastado. No primeiro toque, pareceu congelar, com os olhos claros vidrados na paisagem, nublando-se, e nesse estado passaria por um bom tempo.

            Rebobinar...

            Os gritos podiam ser ouvidos novamente, a cantoria também. Uma bela melodia hipnotizando vinha do fundo do mar, atraindo o navio para baixo, enquanto os passageiros gritavam em desespero ao perceberem que iam morrer. Alguns poucos, do sexo masculino em sua maioria, que tinham a mente fraca pulavam, entregando-se para as águas tempestuosas. Nancy observava tudo de cima, horrorizada, principalmente por conhecer a voz que cantava.

            Era a sua própria, afinal.

            Mergulhou. Nadou, nadou e nadou, mas não conseguia se achar. Se estava ali novamente, tinha que impedir o que viria a seguir de acontecer, tinha que fazer com que a embarcação não naufragasse e levasse consigo a moça que fizera seu coração bater mais forte, mas a cabeleira castanha não era visível em lugar nenhum. O caminho para a pedra onde costumava cantar pareceu ter sido apagado de sua mente, então ficou vagando em círculos por preciosos minutos. A voz parecia vir de todos os lados, essa era a mágica das sereias.

            Finalmente enxergou. A cauda azul reluzindo, em contraste com a rocha cinza, os fios marrons flutuando graciosamente em volta da face de traços delicados, os olhos fechados e um sorriso de paz estampado nos lábios rosados. Lembrava perfeitamente no que estava pensando:

            “Quando será que verei Alana novamente?”

            Tentou gritar para si mesma para parar, mas pela primeira vez a água estava entrando em sua boca, deslizando por sua garganta e sufocando suas palavras. Em sua própria frente, ela mesma continuava a despejar o canto que arruinaria seu psicológico e seu coração. Nadou até a Nancy do passado – se não podia falar, iria usar as mãos. Parou de frente para si, esperando que ela notasse a presença de alguém, mas era como se fosse invisível.

            Esticou os braços, para tapar a boca e impedir-se de cantar mais, mas os dedos atravessaram a figura como se fosse água. Em um grito mudo horrorizado, Nancy observou enquanto toda a paisagem em torno de si se distorcia, juntando-se, girando e repuxando, esticando e encolhendo, rodopiando, até formar um novo cenário.

            A maior parte dos gritos desesperados havia cessado, assim como o som macabro e dócil da voz da sereia. Ela se via, de gente para Alana, o olhar aterrorizado e cheio de culpa. Os cabelos se misturavam na água, o castanho com o louro, enquanto os olhos verdes mergulhados em desespero encontravam os cinzentos que aos poucos iam perdendo a consciência.

            —Alana! Fique comigo! Eu te levarei até o recife, minha mãe irá transformá-la também. Tudo vai ficar bem. Você vai ficar bem! Você não vai morrer!

            Quase sem forças, a humana assentiu. Nancy tentou gritar para si mesma que ela precisava se oxigênio, que deveria ser levada para a superfície, ou então morreria antes da metade do caminho, mas as palavras novamente não encontravam caminho. Desesperada, nadou entre as duas, tentando separá-las, mandar sua mensagem através de gestos, mas o beijo cheio de paixão, arrependimento e desespero que a sua versão do passado selou na boca da semi-consciente Alana acabou por atravessar sua barriga.

            “Ela tem que respirar! Não!”

            —Vem. Você vai ficar bem, Alana, você vai ver. Não me deixe. Por favor.

            Ver a jovem loura abrir a boca para falar e engasgar com água, antes de amolecer nos braços da sereia causou ânsia de vômito em ambas as Nancys. Os gritos de desespero agora vinham da moça que causara a morte de tantas pessoas, dentre elas a amada.

Talvez aquela fosse sua punição, pensou, enquanto o local ia sumindo e os gritos e choro iam ficando cada vez mais distantes. Quantas pessoas não tinha matado, quantos amores não tinha acabado?

Ao acordar de seu transe e recolher a mão automaticamente, Nancy notou que chorava. Era o que sempre acontecia, dia atrás de dia, mês atrás de mês. Tratou de secar logo as lágrimas, não era digna nem mesmo delas. Fazia aquilo por punição, certo? Queria se castigar por tudo que já fizera.

Por isso morava nas ruínas daquele navio naufragado.

Por isso, todos os dias, descia até a cabine e tocava o timão.

Para se punir, ela teria que fazer aquilo para sempre.

Rebobinar.


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Notas finais do capítulo

Eu não mordo não, tá? Pode comentar! Posso demorar, mas juro que vou responder!
Até mais!