Eu vejo-te ir... escrita por Shianny


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Eu não sei dizer de onde veio a inspiração para isso.
Porém, contudo, todavia, espero que aqueles que se dispuserem a ler, apreciem o que aqui encontrem.
Obrigada por qualquer atenção que puderem oferecer. ^~



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Sozinho e imóvel, vejo-te ir caminhando na direção do horizonte, contemplando o céu aberto e seguindo o rastro há muito feito pelo astro diurno e que o noturno aos poucos também segue. Observo, em sepulcral silêncio, o modo como tuas madeixas escuras ondulam, obedientes ao tom imposto pelos sussurros da brisa fria que percorrem as gavinhas das plantas de beira de estrada, enroscadas nos muros e cercas dos terrenos ocupados desta ruela. Teus passos firmes, apesar de suaves, reverberam e fazem bambear minha estrutura que, putrefata, ameaça tombar ou mesmo se desfazer em pó para ser carregada junto ao vento.

Ainda consigo sentir teu perfume, distante, que invade meus pulmões e me induz a profundo estado hipnótico, estarrecendo-me a sanidade e me obrigando a submergir em dúvidas e receios que sequer sonhavam em existir há pouquíssimos minutos. O odor que por tantos dias serviu para mim como um meio de reconhecer meu ninho, que indicava prenúncio de calmaria ainda que estivesse existindo no meio de uma tempestade insana de desespero e angústia, que me anestesiava os sentidos ainda que na mais pura amargura, ah, bendita fragrância que agora tão facilmente podia se apresentar como minha mais solene maldição.

Mesmo de costas, consigo ainda definir bem teus traços mais singulares. O jeito como as covinhas de teu rosto se punham em evidência até mesmo com o mais singelo sorriso, o arqueamento sutil das sobrancelhas ao desconfiar de alguma coisa, e mesmo o modo como suas narinas se abriam um pouco mais ao se permitir envolver pela frustração. Características miúdas e quase dispensáveis, arrisco afirmar, mas que se encaixavam na belíssima pintura de teu ser como o mais puro e perfeito acabamento.

Quando sinto que minhas articulações começam a destravar, fisgo o isqueiro e a cartela retangular do bolso, para recuperar um dos objetos cilíndricos dali de dentro e acendê-lo logo a seguir – guio o cigarro para junto aos lábios e dou um trago generoso, assoprando o fumo após longos e infindáveis segundos de aproveitamento. Para minha infelicidade, não é a fumaça que me impede de observar o contorno de teu corpo, e o tabaco apoiado entre os dedos jamais poderá se comparar com tuas curvas que enchiam minhas mãos com tanta entrega.

Em minha mente, inúmeros flashes serpenteiam para me recordar dos tantos momentos juntos que tivemos nesses últimos meses. É engraçado, mas me vem à memória até mesmo o nosso primeiro encontro desengonçado, abundante em o quês, por quês, pedidos de desculpas e risos frouxos, tímidos, mas amáveis o suficiente para que pudessem brilhar em inesperado encontro às escuras. Armado por nossos amigos, você lembra?

Ah, é claro que lembra. Eu quem sou responsável por todos os esquecimentos presentes em nossa relação, não é verdade? Pelas indiferenças, as brigas... Por tanta coisa que, sinceramente, não dou a mais fodida mínima. Talvez, se soubesse desses pensamentos tão abruptos e esquisitos que perpassam meu sistema nervoso nesse exato momento, se perguntasse o motivo de tantas reflexões num momento em que não é mais possível voltar atrás.

Você jamais saberá, mas ainda assim explico: É que em hora alguma eu me dei conta que eu também poderia ser responsável por estar aqui, agora, tendo que assistir teus passos de afastamento sem sequer dar-se ao trabalho de olhar para trás.

Eu rio, antes mesmo de dar-me conta de fazê-lo. Chega a ser patético como estou levando tudo isso, se formos considerar as tantas vezes que já passei por isso – no entanto, sem jamais esperar pra observar quando exatamente a outra pessoa desapareceria engolida pelo horizonte. Talvez seja por conta disso que estou assim. Assistir uma despedida é tão mais profundo que simples e somente fazer parte de uma? Encarar enquanto lembranças e sentimentos desvanecem em algo que é tão corriqueiro mundo afora? Isso é errado em tantos níveis. Um adeus nunca fez tanta diferença assim, então, por que agora?

Rindo, tento me convencer o quão apático vai ser o espaço que você já está deixando, afinal, qualquer outro que se adeque aos meus desejos pode facilmente ocupar o mesmo lugar, como foi com tantas outras pessoas. Você não é tão especial quanto pensa, e tampouco vai me dominar dessa maneira – eu sou um espírito livre. Nunca precisei de um par fixo e não será dessa vez que alguém vai ser tão necessário assim.

E é em meu riso suave que estou fadado a encarar a visão do mundo, meu mundo, se distorcer vagarosamente, fato que logo dá vida às gotas aquosas que deslizam com paciência pelo meu rosto, umedecendo e criando trilhas para todas as outras que desejarem nascer e seguir pelo mesmo caminho.

Assim como elas, a fumaça do cigarro novamente é expelida para fora de meu ser.

Diferente delas, o que – ou melhor, quem – eu mais queria que desaparecesse do meu coração nesse exato segundo insiste em manter suas raízes fincadas em meu âmago.

É a vida ou o carma?

Então, como um estalo, percebo que tua imagem já quase não consegue ser captada por minhas pupilas, e me pergunto há quanto tempo o rebuliço que tua decisão deixou em minha alma está se reformulando dentro de mim. De repente, sou capaz de reparar que mesmo o chão se equipara com redundante simplicidade a um abismo profundo, que não suga e nem permite que prossiga caminhada; uma definição estranha que palavras e atos não bastam para explicar o que realmente ocorre no segundo exato em que sua existência perdura.

Um... Buraco negro.

Eu vejo-te ir, não por vontade. Talvez por falta de compreensão ou mesmo de forças para gritar que não vás, pois um orgulho podre me corrói por dentro em cada centímetro do corpo.

Eu vejo-te ir, porque não te mereço. Não sou digno de receber o teu sorriso alegre, tua vivacidade e simpatia, o carinho que me oferece mesmo nas mais duras penalidades que te faço sofrer em uma mera mudança de humor por algum motivo qualquer. Porque a tua luz não precisa do agarro sombrio que minha escuridão oferece.

Eu vejo-te ir, porque no fim de tudo, o teu espírito livre jamais me pertenceu.


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