A Fera escrita por MileFer


Capítulo 22
Celine Carson


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus amores ♥

Espero que tenham uma ótima leitura! ;)



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Adélia parou no último degrau da escada e encarou o homem muito bem vestido à sua frente, aguardando por ela com uma expressão séria.

— Acredito que queira me agradecer pessoalmente – ele disse, embora soubesse muito bem do que aquele encontro realmente se tratava. Sabia que Adélia não desistiria tão cedo enquanto não soubesse a verdade. – Estou honrado pelo esforço.

— Adam – Adélia murmurou. Sentiu sua garganta doer, enquanto sua voz ficava cada vez mais rouca e baixa. – Sabe que estou aqui para...

—Eu sei  - ele a cortou, dando um passo para a frente até estarem próximos. – Quer descobrir a verdade. Sei muito bem o que deseja, Adélia. Não estou seguro que vá gostar das respostas que busca.

— Isso não importa agora. Estou determinada – ela também deu um passo para a frente, mas se esquivou de seu campo de visão ao contorna-lo. Estava de costas agora, treinando sua impassibilidade. Precisava se manter firme até o final daquela conversa. – Me conte tudo, Adam. Estou pronta.

Adam a encarou por cima do ombro, deixando-se se perder naquele perfil delicado que o assombrava. Aproveitou o momento de silêncio para pensar em um modo de lhe dizer o que precisava dizer, embora não se importasse muito em como as coisas soariam para ela.

No fim das contas, tudo dependia dela. E, naquele momento, cabia a Adam controlar a situação para não perdê-la.

— Existe algo na maldição que eu gosto de chamar de brecha, Adélia – ele se aproximou dela e segurou seu cotovelo com delicadeza, arrancando um olhar assustado da garota. – Por quê não vamos tomar um pouco de chá no jardim?

Adélia não protestou, seguindo-o até estarem diante da mesa redonda na varanda que dava para o jardim. A chuva havia dado uma trégua, despejando apenas suaves pingos de água gelada. Ela ficou encarando as poças pesadas de lama que alagavam o jardim, se lembrando brevemente da tarde que passara com Jeniffer ali.

Lembrou-se da expectativa de, enfim, poder voltar para casa. Lembrou-se também da duvida que se enrolava junto a sua saudade, o sentimento de perda até então desconhecido que sentira na época ao se imaginar deixar Rafael para trás.

Ainda queria ir embora. Ainda queria rever seus pais, falar e abraçar eles com todo o amor que a preenchia. Mas, agora, ela sabia que as coisas estavam diferentes demais para partir de qualquer jeito.

Não podia ir embora sem dizer adeus à Rafael, por exemplo. Ou fingir que nada daquilo havia lhe acontecido, embora esquecer fosse seu maior desejo há tempos atrás.

— Sente-se, Adélia – Adam pressionou seu ombro até que Adélia estivesse sentada em uma das cadeiras ao redor da mesa.

Adam sentou no outro lado, de frente para ela. Aquele ângulo a deixava completamente desconfortável, visto que ela estaria totalmente no campo de visão dele.

— Rafael sabe que estamos aqui? – Perguntou, apertando sua jaqueta jeans contra seu corpo. Ainda sentia o vento frio e úmido penetra-lhe a roupa, apesar do peso que sentia pela quantidade de tecido que vestia.

— Ele não vai nos interromper – Adam tentou tranquiliza-la, mas tudo o que conseguiu foi arrancar um olhar bravo vindo dela. – Não se preocupe, Adélia. Ninguém irá nos incomodar.

Adélia não sabia se aquilo era uma boa coisa. Estar completamente sozinha com Adam, sem a expectativa de ser acudida caso precisasse, a deixava ainda mais nervosa e desconcentrada.  Não queria que Rafael estivesse ali, mas, ao mesmo tempo, sentia sua falta.

— Você falou sobre uma brecha na maldição – ela disse. Adélia se remexeu desconfortável na cadeira, sentindo uma dor aguda nas costelas. -  O que isso significa?

Bom... — Adam a serviu com uma xícara fumegante, enquanto enchia seu copo com um liquido transparente e de odor forte. – Não é uma brecha, mas acredito que funcione da mesma maneira.

Adélia o encarou em expectativa, resistindo a vontade de torcer o nariz para o seu chá. Adam, ao notar o olhar afiado dela, soltou uma lamúria e tomou mais um gole do seu whisky.

— Há uma parte na maldição que diz respeito a quem estiver disposta a quebra-la. Nesse caso, a garota terá que seguir algumas regras – Adam disse.

Adélia segurou a cadeira e a arrastou para mais perto da mesa, de modo que pudesse se recostar. Adam mal havia dito algo significantemente grande e ela já se sentia cansada.

A garota? – Adélia sentiu sua voz tremer com aquela ideia. Quem poderia ser? pensou, irônica. – Essa garota... Quem é ela? E que tipo de regras está falando?

Adam a olhou como se Adélia fosse estúpida, mas preferiu guardar seu comentário para si.

— Adélia Moretz – ele murmurou, sugando o liquido de seu copo como se estivesse quente. – Celine Carson. Qualquer outra garota que esteja disposta a fazer o trabalho sujo.

Era a primeira informação que ele lhe dava e que provocou calafrios ainda mais gélidos em sua pele.

Celine Carson.

Até seu couro cabeludo pinicou ao ouvir aquele nome.  

— Que regras, Adam? – Adélia entrelaçou os próprios dedos, sentindo uma dor fina se alastrar por toda a sua mão quando, sem querer, torceu um deles.

Tudo bem— Ele suspirou, recostando-se em sua cadeira. – Primeiro, você precisa fazer uma escolha. Não com base no que provavelmente está vivendo agora, mas no que sente.

— Está me usando como exemplo? – ela murmurou. – Eu não sei do que está falando, se não estiver claro para você.

— Prefiro acreditar que você é muito mais esperta do que demonstra ser – Adam rebateu. Ele empurrou o copo já vazio para longe de si, sentindo os primeiros efeitos da bebida forte. – Sim, você é a garota de quem estou falando. Quem deve fazer a escolha.

Adélia caiu para trás até suas costas baterem na cadeira. Ela já sabia que estava ali por conta de um contrato, da maldição de Rafael e tudo mais. Não queria imaginar que a coisa poderia ser tão mais séria àquele ponto, onde precisaria admitir responsabilidades das quais não fazia a menor ideia de que existiam.

— Tudo tem um preço, Adélia – Adam continuou, mas falando em um tom como se soubesse no que ela estava pensando. – Rafael paga com a vida e, você, com um pouco de afeto se assim desejar.

Adélia balançou a cabeça, confusa.

Com a vida?!

— O que acontece se eu não escolher nada? – Murmurou. A dor aguda que apontava em suas costelas agora se alastrava por todo o seu corpo, acumulando-se em seu estomago como um vácuo. – Ou se eu fizer a escolha errada?

Celine Carson— Adam murmurou desta vez, e, se não estivesse enganada, Adélia poderia jurar que ouviu um tom de lamento em sua voz. – Ela fez a escolha errada, Adélia.

— Mas o que aconteceu com ela? – Adélia respirou fundo e consertou a postura. Havia sonhado com aquele nome, com aquela garota que sequer conhecia. Havia até inventado um rosto para ela, na expectativa de saciar suas dúvidas. – Quem ela era, Adam?

Adam apoiou os cotovelos na mesa e cruzou os braços, concentrando sua atenção no copo vazio em sua frente. Desejou que a mesa tivesse mais elementos além da garrafa de bebida e do bule de chá para dividir sua atenção.

Cada detalhe voltou para sua mente naquele momento de forma bruta.

Ele lembrou-se dos olhos úmidos de Rafael. Lembrou-se de ver seu corpo encolhido em um canto, enquanto tentava se esconder de todo aquele pesadelo que acontecia em câmera lenta ao seu redor. Mal se lembrava da ultima vez que vira o garoto em uma posição tão vulnerável.

Aquele mesmo sentimento que o preenchera dois anos atrás voltou com brutalidade naquele momento, ao encarar os olhos claros de Adélia. 

— Ela... – ele não conseguiu. Amaldiçoou a si mesmo por parecer tão covarde naquele momento quando, na verdade, deveria se mostrar o mais firme e indiferente que podia. Mas era o peso da culpa, da raiva e da desesperança que o abominava. A culpa, desde sempre, era que o perseguia com a destreza de um caçador. – Ela era uma das garotas do Instituto. De todas da turma daquela época, era a que mais precisava...

— Estar aqui? – Adélia tentou ajuda-lo, mas recebeu um olhar afiado em resposta.

— Ela fez uma escolha, Adélia – ele continuou, postando-se firme diante do olhar desconfiado que ela lhe lançava naquele momento. Ele não poderia deixar que Adélia tomasse controle da situação. – Ela escolheu seguir seus sentimentos, como deveria ser. Mas, como eu disse, tudo tem um preço.

— Ela escolheu os próprios sentimentos? – Adélia estava mais confusa do que nunca, e temia fazer qualquer pergunta à Adam depois do olhar afiado que lhe foi lançado. – Por que isso parece ser tão ruim?

— Porque isso matou ela, Adélia - ele murmurou.  Adélia sentiu todo o seu corpo esvaziar como um balão, murchando lentamente, mas, ao invés de se sentir leve como tal, parecia que todo aquele vazio que se formava dentro de si estava sendo preenchido com milhões de pequenas pedras pesadas, enchendo-a até o limite. – Rafael sempre quis esconder isso de você porque esse é o risco. Saber demais nunca é algo tão saudável quanto parece.

Adélia negou, engasgando-se com o ar gélido e o gosto de terra molhada que a cercava. A simples menção ao nome de Rafael fez seu coração pesar. Era difícil de aceitar.

— Como ela... – sua voz sumiu, e Adélia se viu obrigada a beber um gole daquele xá suspeito que já estava frio. O liquido rasgou sua garganta, fazendo-a querer cuspir.

— Rafael a encontrou – ele disse, esfregando os olhos. – Ela se enforcou, na verdade. Como pode adivinhar, ele era muito próximo dela.

Foi inevitável para Adélia segurar as lágrimas. 

Sua garganta doía agora não por conta da inflamação, mas sim pela bile que a sufocava. Ela chorava pela garota, mas, bem no fundo do seu coração, todo aquele sufoco, pontadas e calafrios eram por conta de Rafael.

Estava chorando por conta dele. Por medo de que alguma daquelas informações revelasse algo que ela não queria que fosse real em relação a Rafael.

— Eu não sabia o que estava acontecendo com ela, mas eu sabia que havia algo de errado. – Adam continuou, mostrando-se cada vez menos imparcial. – Ela era muito diferente de você – Adélia o encarou com os olhos franzidos. – Não era o tipo de garota que lutava, como você tem feito desde que chegou aqui. Ela não dava a mínima se nunca mais veria a família de novo ou se teria que viver ao lado de uma aberração para o resto da vida.

Não — Adélia murmurou, limpando o rosto úmido com a manga de sua jaqueta. – Pelo visto, você não faz ideia de quem ela era de verdade. Não faz ideia do que ela teria passado aqui para fazer o que fez.

— Ah, não me venha com essa! – Adam vociferou. Adélia recuou em seu assento, assustada com a súbita transição de humor dele. algo na voz dele incomodava Adélia como vidro quebrado em seus sapatos. – Ela era doente, Adélia. Eu a ajudei de todas as formas que pude. Eu dei tudo o que sempre faltou para a família dela; comida, uma casa, dignidade. Foi uma escolha dela...

Escolha? – Adélia não conseguia controlar o tom de voz que, apesar da dor que sentia em sua garganta, aumentava cada vez mais. – Não a culpe por isso, Adam! Você não conhecia a dor dela!

— Eu, não. – Sua voz saiu como um murmúrio, calando Adélia com o tom obscuro da raiva que transparecia com uma delicadeza brutal. – Mas Rafael conhecia muito bem ela.

Adélia engoliu em seco, desejando ter um copo de água para aliviar a queimação.

Ela encarava Adam com certo temor, ao mesmo tempo em que parecia querer se arriscar e força-lo a continuar aquela história. Adam, por outro lado, estava exausto. Nunca passou pela sua cabeça que seria uma tarefa tão difícil contar a verdade para alguém.

— Rafael faria de tudo por aquela garota porquê estava apaixonado por ela – ele continuou, mas desta vez usando um tom gutural e controlado de voz. – Ela o desprezava de todas as formas possíveis, mas isso era pouco para ele. Ele nunca se importou se ela sentia nojo dele, ou se o odiava. No fundo, ele só queria ser amigo dela, Adélia.

— Eu não acredito que ele tenha feito algo para machucá-la a esse ponto – Adélia sentiu seu peito se apertar com a expectativa de estar certa.

Ela não queria acreditar, na verdade. Porque, no fundo, ela sempre teve a certeza de que ele era diferente – não por conta de sua aparência, de sua maldição. Adélia sempre preferiu enxergar o que havia de bom nele – ou, pelo menos, era o que achava.

— De fato, ele não fez – Adam disse. – Celine sempre soube de tudo, Adélia. No início, a princípio, tudo o que ela sabia era sobre o que Rafael era. Mas depois, e assim como você, surgiram duvidas em sua cabeça que ela não aguentou guardar para si. – Adam fez uma pausa para respirar. – Eles estavam sempre conversando sobre tudo o que ela queria saber a respeito de sua maldição.

Adélia sentiu uma pontada em seu peito ao imaginar Rafael conversando sobre qualquer coisa com outra garota que não fosse ela, sem esconder nenhum detalhe. Não queria parecer má ou coisa do tipo, mas o pingo de ciúme que sentiu ao imaginar aquela cena fez seu coração murchar.

— Ele contou tudo para ela? – Ela tentou adivinhar.

— Contou o pouco que sabia, mas foi o suficiente para ela fazer a sua própria escolha. – Adam continuou. – Rafael sempre escondeu isso de você porque tinha medo do que poderia acontecer. Na cabeça dele, ele era o próprio assassino. E Celine, bem, soube na hora que seria incapaz de viver com aquilo e foi embora do seu jeito.

Adélia respirou fundo até seu peito estar totalmente inflado. Prendeu a respiração durante um momento, soltando todo o ar muito devagar.

Celine Carson, a primeira garota selecionada e, segundo Adam, amiga de Rafael, havia se suicidado há anos atrás. Aparentemente, toda a sua motivação para acabar com a própria vida havia sido por conta das respostas que buscava.

Rafael também amou aquela garota. Se eram tão próximos como Adam a fazia acreditar, então ele deve ter sofrido muito com o acontecido. Ela tentou imaginar o quão traumático deve ter sido para ele lidar com a morte de alguém a quem tinha muita estima, alguém que dedicara até seus maiores segredos – segredos esses que, se não fosse por Adam, Adélia jamais teria conhecimento algum.

— Foi humilhante, para falar a verdade -  Adam mantinha seus olhos fixos na paisagem pesada pela chuva que alagava seu quintal, de forma pensativa. Havia desistido de beber, deixando de lado seu copo parcialmente cheio com o liquido de cheiro forte. – Rafael era fraco, não tinha pudor sobre sua situação e, por sentimentalismo, entregou todos os seus podres na mão de uma desconhecida. No fim, acabou exposto, culpado e sozinho.

Aquilo partiu seu coração. Doía imaginá-lo naquela situação: sôfrego por um amor, arriscando tudo o que tinha para uma pequena porcentagem de estima de alguém que claramente não sentia nada por ele.

Adélia tocou os próprios lábios, sentindo um misto de compaixão se mesclar a uma fúria inexplicável, atormentando seu coração. Não sabia como explicar as emoções que se sucederam naquele momento, mas no fundo tudo se resumia a uma pontada aguda em suas estranhas, sufocando-a de dentro para fora.

— Sente pena dele? – Adam a encarou por um momento. – Celine também sentiu quando o viu. Todos sempre sentem, na verdade. Mas eu, não.

Adélia o encarou, sentindo a frieza de suas palavras congelar sua pele quente de febre. Seus olhos lacrimejavam por conta do frio e da dor. Adam a encarava exatamente como Rafael a encarou na biblioteca um dia antes.

Havia raiva em seu olhar, penetrando amargamente seus poros. Parecia se esforçar para mostrar o quanto a desprezava no momento, o quanto não precisava de sua compaixão e o quanto seria malvista a sua intenção de amenizar as coisas com pena.

—Eu admito, Adélia; nunca fui um bom pai para ele. – Ele murmurou isso com certa eloquência no olhar, como se se orgulhasse de ser quem era. – Rafael sempre foi um tolo, fraco e ingênuo. Nunca foi capaz de dar-se conta do que era, chegando ao ponto de conviver bem com isso. Mas eu nunca fui capaz de viver com essa maldição. Nunca fui capaz de conviver com ele.

— Como pode dizer uma coisa dessas sobre o seu filho, Adam? – Adélia perguntou, sem se importar nem um pouco com o tom de magoa em sua voz. – Você quem deveria apoiá-lo e estar ao seu lado...

— Besteira! – Adam bateu na mesa com fúria, assustando-a. – Não diga uma coisa dessas, Adélia! Rafael foi um parasita em minha vida, destruiu tudo o que eu mais prezava. É um encosto, um inútil, uma maldição...

Antes que pudesse terminar a frase, Adam foi interrompido por um tapa em seu rosto.

Adélia não sabia como aquilo havia acontecido, mas lá estava ela de pé, arfando furiosamente diante de Adam. O tapa havia sido fraco, mas mesmo assim sua mão ardia e vibrava pelo espasmo repentino.

Nenhum dos dois disse mais nada.

Adélia, trêmula, não sabia se deveria voltar para seu assento ou se deveria correr imediatamente para o seu quarto. Adam, no entanto, arfava de ódio. O tapa serviu apenas para despertar em si uma fúria incontrolável, sufocante. Estava cego pelo sangue que lhe subia até a cabeça.

Ele ergueu-se de seu assento também, ficando à altura da garota que o encarava com um olhar arrependido. Muito lentamente, apoiou as mãos sobre a mesa para não correr o risco de perder o pouco controle que ainda lhe restava, tentando organizar seus pensamentos.

Adélia prendeu a respiração e se preparou para o pior. Esperou durante alguns segundos que seu tapa fosse retribuído com muito mais força e violência, ou que seu corpo inerte fosse parar dentro de uma das enormes poças de lama no jardim. Esperou que Adam a xingasse, amaldiçoasse sua alma e a torturasse.

Um calafrio horrendo percorreu sua espinha quando Adam suspirou e, murmurando, disse:

— Saia. – Sua voz rouca e feroz, mesmo baixa, falou muito mais alto do que o dilúvio que agora se estendia por todo o horizonte, preenchendo a paisagem antes colorida com uma nuvem grossa e cor de chumbo. Adélia estava tão surpresa com o castigo que não se moveu; ao contrário. Ficou pasma, encarando os olhos escurecidos do homem à sua frente. – Saia da minha frente agora!

Adam gritou, fazendo os ombros de Adélia estremecerem.

Desta vez, ela não hesitou. Andou de costas até o enorme par de postas envidraçadas, sem tirar os olhos da vermelhidão que pintava a pele pálida de Adam, que manteve seus olhos fixos no mesmo lugar em que ela esteve segundos atrás.

Adélia não parou de correr nem mesmo quando subia a escadaria. Seus olhos estavam embaçados pelas lágrimas e suas pernas tremiam tanto que mal a sustentava. Parecia que havia uma enorme massa negra atrás de si, prendendo suas pernas ao chão e retardando seus movimentos. Estava sendo sugada pela câimbra que pesava seus músculos, dolorida.

Foi só quando seus joelhos caíram de encontro ao penúltimo degrau que Adélia conseguiu parar para respirar. Os soluços que escapavam rasgavam o tecido interno de sua garganta com tamanha violência que doía muito mais do que o atual hematoma causado pelo tropeço.

Mesmo com a dor, ela conseguiu soltar um pedido de socorro do topo da escadaria para a figura que se aproximava de seu corpo as pressas, gritando seu nome com igual desespero.

Ela não sabia como, mas conseguiu concentrar toda a sua atenção em Fordy no momento em que o velho passava um braço por debaixo de seus joelhos e, com o outro, agarrava sua cintura.

Não!, ela gritou, temerosa.

Mas Adélia arfou quando o velho ergueu seu corpo com uma destreza impressionante, como se o peso dela não fosse nada para ele. Outro grito ecoou de sua garganta quando sua perna sacudiu no ar com um estalo violento, molenga e pesada.

A dor que se alastrava por seu membro era tão intensa que Adélia se viu obrigada a morder um de seus dedos para não gritar mais, agarrar o ombro de Fordy com as unhas e arfar.

Fordy abriu a porta de um quarto com um chute violento, depois repousou o corpo de Adélia com uma suavidade bruta sobre a cama perfeitamente arrumada.

— Fordy! – Ela choramingou, agarrando com força o braço do velho quando ele se debruçou sobre sua perna e pôs-se a puxar delicadamente seu sapato, buscado avaliar os danos.

— Quieta! – Ele vociferou para ela, avançando sobre seu rosto e segurando suas bochechas com brutalidade entre o polegar e o indicador. – Se gritar, Rafael irá ouvi-la! Chega de fazer merda por hoje, Adélia.

Apesar do próprio estresse, Adélia esteve atenta a todos os movimentos que o velho fazia ao seu redor. Estavam no quarto dele – ela percebeu, meio zonza.

Mesmo sob os apertos e beliscões da garota, Fordy conseguiu arrancar seu sapato e o arremessou longe. Seu próximo passo fora erguer a boca de sua calça até um ponto em que seu pé estivesse exposto o suficiente para ele avaliar.

— Me perdoe – Adélia soluçava, entre um beliscão e outro. Em resposta, Fordy segurou com força o seu tornozelo que já inchava por conta da torção, arrancando da garota um grito que foi abafado com as mãos.

— Precisa de gelo – ele disse, erguendo-se e olhando ao redor. Ele correu até um mini freezer em um canto de seu quarto, próximo a mesa espaçosa a qual servira para expor seus livros a ela um dia atrás. Trouxe consigo uma bolsa plástica azul e uma lata de alumínio.

Adélia observou enquanto ele massageava o local com a lata e, em seguida, espalmava a bolsa fazendo o possível para que ela cobrisse o máximo de pele que seu tamanho conseguia. Os olhos dela se encheram de lágrimas quando ele ajeitou seu pé sobre um travesseiro alto, sem deixar de pressionar o local com suavidade.

Estava encolhendo-se não de dor, mas de um súbito rubor que ardia em sua pele facial. Estava com vergonha por estar ali, deitada na cama dele e sendo atendida por Fordy por ser tão desastrada e sem noção.

— Me perdoe, Fordy – ela murmurou. Sua voz raspou-lhe a garganta de dor, e Adélia se arrependeu imediatamente por abrir a boca.

— Já me pediu isso – o velho respondeu, sequer encarando-a. Parecia muito mais preocupado com seu tornozelo do que com a pessoa esparramada em sua cama. – Francamente, Adélia. Guarde seus lamentos para quando Rafael quiser ouvi-los, pois é para ele quem deverá pedir perdão.

Adélia sentiu vontade de chorar de novo, mas se conteve. Fordy tinha razão, e o peso da culpa havia sido tão grande que sua cabeça pendeu para trás.

— Espero que tenha valido a pena – ele se afastou de Adélia e puxou uma cadeira para perto da cama, de modo que pudesse estar próximo dela. – Conseguiu tudo o que queria?

Adélia esfregou a ponta de sua jaqueta em sua testa, enxugando o suor frio causado pela tensão do momento.

— Não faça isso – pediu, embora se sentisse na obrigação de ouvir calada todas as provocações que viriam com desencargo de consciência de Fordy. – Eu precisava disso. Precisava saber a verdade...

— Não importa qual fosse o preço – Fordy a interrompeu desdenhosamente. Ele apoiou os cotovelos sobre os joelhos e cruzou as mãos, curvando-se para mais perto de Adélia com um sorriso de escárnio no rosto. – Admiro sua coragem, Adélia, embora tenha um pouco de receio de que seja um tanto estupida. É impressionante a sua determinação por respostas, mesmo que isso tenha um preço alto a se pagar. Você me parece ser o tipo de pessoa disposta a fazer qualquer coisa por um objetivo, mesmo que isso inclua magoar o amiguinho que mais precisa de sua ajuda.  

— Eu não fiz isso para magoar Rafael! – respondeu, seca. Estava irritada pela petulância de Fordy, e tentava ao máximo não se mostrar mal-agradecida pelo socorro que ele lhe deu. Mas não aguentaria suas provocações por muito tempo. – Fiz porque me importo com ele, porque quero ajuda-lo.

— Me poupe, Adélia! – Fordy voltou a se recostar em sua cadeira, lançando um olhar furioso para a figura em sua cama. – Você é uma pessoa extremamente egoísta, que visa apenas a própria satisfação. Pouco se importa se vai magoar quem você adora chamar de amigo.

Adélia sentiu seu queixo cair. Fordy levantou-se e, caminhando pelo próprio quarto, continuou:

— Você é tão falsa que até mesmo eu acreditei em você – ele cruzou os braços. – Você não se importa com os sentimentos de Rafael, não se importa se suas ações lhe farão mal.

— Você está errado, Fordy! – Ela ergueu-se da cama para que sua voz rouca e fraca chegasse até ele com a intensidade desejada, mas o som saiu fino como o pio de um pássaro recém-nascido. – Eu fiz porque...

— Você quer ajuda-lo? Pare de mentir para si mesma, Adélia! – Fordy agarrou com força o dossel velho da cama, fazendo todo o objeto tremular. – Você só quer descobrir coisas sobre o seu passado porque sua curiosidade é maior do que o seu afeto. É obvio que Rafael nada mais é para você do que um passatempo para matar o seu tédio.

Adélia sentiu suas narinas se eclodirem de forma violenta, sugando o ar para dentro de si como furacões. Por que estava sendo atacada tão brutalmente por alguém que julgara ser de confiança?

Por que Fordy parecia odiar tanto a sua pessoa naquele momento?

— Eu não pedi para estar aqui, Fordy – ela respondeu, ignorando a dor que estalava em sua garganta como bombinhas. – É justo que me odeie por eu ser... curiosa, mas não admito que ponha a culpa em mim por algo que não tive escolha. Talvez não seja óbvio, mas estou tentando sobreviver aqui dentro assim como Rafael têm sobrevivido. – Ela aproveitou o momento de raiva e adrenalina para se erguer e mancar até a porta. – Você não faz ideia do que eu sinto por Rafael e do que eu realmente desejo para ele. Por isso, não tem o direito de julgar o que você chama de falsidade.

Cada pisada, mesmo que fraca, arrancava de Adélia uma dor insuportável.

Demorou muito mais tempo do que esperava para chegar até o seu quarto, por isso deliciou-se tristemente com o silêncio e calmaria que alcançou com esforço ao chegar no ambiente que, pela primeira vez desde que chegara ali, servira como lar.

Mal conseguia acreditar em tudo o que havia acontecido. Mal conseguia acreditar em tudo o que Fordy dissera sobre si, no que ele acreditava que Adélia era de verdade.

Nunca tivera sua personalidade contrariada com tanta voracidade como Fordy o fez. Sentia-se realmente suja, podre e má como ele descreveu. Não precisava fazer esforço algum para acreditar nas palavras que lhe foi dito, pois, ela admitindo ou não, era exatamente daquela forma que vinha agindo.

Adélia traíra Rafael.

Havia traído ele no momento em que aceitara ouvir tudo o que Adam tinha para lhe contar, pequenas verdades, segredos sombrios que, para ela, fariam toda a diferença. Adélia desrespeitara Rafael e sua amizade ao ir de encontro com Adam naquela tarde, sedenta por informações que, agora que as tinha, pouco parecia significar.

Ela pensou na história de Celine. Adam havia dito que ela tratava-o desdenhosamente, pouco se importava em como ele se sentiria enquanto sugava o máximo de segredos que podia – não, espere...

Aquela era ela mesma, Adélia.

Adélia nunca sentira tanta raiva de si mesma como sentia naquele momento. Odiava-se com todas as forças, desprezava-se. Sentia-se desgraçada pela dor que voltava com enorme intensidade, se alastrando de seu tornozelo até a cintura. Sentia-se desgraçada pela dor de cabeça por tanto chorar, pela dor na garganta que a sufocava e pelo arrependimento que a arrebatava.

Ela jogou-se sobre sua cama aos prantos.

Pela primeira vez na vida, Adélia se odiou. Odiou mais a si mesma naquele momento do que odiara Adam durante todo aquele período, mais do que odiava a Jeniffer por ser tão falsa e mais do que odiava a Fordy, por ter instalado nela aquele alerta de que, oh Deus!, estava sendo uma pessoa asquerosa, desumana e horrível.

Estava sufocada com todo aquele pesar, toda aquela massa pesada que se alastrava em seu coração.

A única pessoa a quem não odiava naquele momento era Rafael. Talvez porque ele fosse a única vitima de toda aquela história, o único que parecia se salvar naquele mar de pura hipocrisia o qual Adélia era navegante.

Como ela olharia em seus olhos, depois de tudo o que fizera? Como ela conseguiria escutar tudo o que ele tinha a lhe dizer, depois de descobrir sobre Celine, o preço que sua maldição causou sobre a garota?

Adélia apertou a própria garganta quando a queimação, de forma impossível, se intensificou brutalmente. Até a dor em seu tornozelo se intensificava à medida que seu coração pesava mais e mais, tomado pela dor de sua consciência suja e pesada.

Ela aceitou todo aquele desconforto como castigo, um troco dado inconscientemente por Rafael que, mais cedo ou mais tarde, a amaldiçoaria justamente pelo o que fizera consigo. Adélia se encolheu junto com os cobertores, abraçando-se. As dores eram tantas que ela chegava a revirar os olhos, mas não faria o mínimo esforço para amenizar o seu castigo.


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