A Fera escrita por MileFer


Capítulo 15
Correntes Invisíveis


Notas iniciais do capítulo

SPOILER: Esse capítulo vai bagunçar seu coração!! RSRS

Boa leitura, amores!



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Adélia sentiu uma brisa gelada soprar suas entranhas quando Jeniffer anunciou, com uma expressão séria, que Rafael queria vê-la o mais imediatamente possível.

Ela não conseguia dizer se aquilo era uma sensação ruim – como se algo grave tivesse acontecido – ou se era apenas preocupação. Tentou extrair qualquer informação da mulher, que apenas deu de ombros e se calou.

Fora isso, tudo o que sabia era que o mesmo a esperava na biblioteca.

Tinha uma biblioteca naquele lugar?  - ela se ouviu murmurar a todo momento, enquanto descia os degraus da escadaria até o andar de baixo. Descia com pressa, ao mesmo tempo em que se esforçava para não tropeçar.

Foi o som melodioso de um piano que a guiou até o par de portas enormes e brancas diante de si, que ficava um pouco depois da escada. A música soava tão alta e dramática que Adélia a sentiu quase imediatamente.

Ela ficou observando a fresta que denunciava uma faixa do ambiente, pensando se deveria bater ou simplesmente entrar. Não queria ser indelicada, mas bater lhe pareceu inútil havendo grandes possibilidades de não ser ouvida.

Um segundo mais tarde e ela irrompeu pela porta com avidez e de olhos fechados.

Estava tão nervosa assim?

Quando a música parou de tocar, ela abriu os olhos e encarou o cômodo em que estava, de olhos arregalados.

Não era tão impressionante quanto a biblioteca do Instituto Florence, mas ainda assim era extremamente peculiar. Havia dois andares no lugar, todas as paredes infestadas de livros. Parecia um retângulo enorme e apenas a parede em sua frente não continha livros – pois estava ocupada com janelas de vidro com vista para uma parte que ela não conhecia do jardim.

Adélia engoliu em seco, se perguntando como ela nunca havia pensado que existia um lugar como aquele naquela casa. Estava vidrada, analisando cada tom pastel que dava cor ao ambiente e até os livros embutidos nas prateleiras quando seus olhos caíram sob uma figura sentada diante de um enorme piano, num canto da biblioteca.

Era obviamente Rafael, mas o modo como continuou sentado – como se não tivesse notado a presença dela – fez seu coração se apertar em seu peito. Ele estava tão curvado que parecia querer se esconder.

Mas ele a chamou até ali, certo? E o modo como Jeniffer anunciou parecia significar que era algo sério.

Muito lentamente, Adélia se aproximou dele. Ela esperava que fosse interditada, que ele pedisse para que ela se afastasse ou algo assim, mas Rafael não o fez.

Ao invés disso, ao notar que ela se aproximava, ele voltou para sua canção melancólica como se não estivesse nem um pouco incomodado com a presença dela.

Estava determinado a lhe dar o que quisesse naquela manhã e por isso a primeira ideia que surgiu em sua mente foi aquela. Ele até tentou conversar com Fordy, mas nada saía de sua garganta.

Mesmo depois de passar a noite inteira em claro remoendo a própria dor, ele não conseguia deixar de pensar em como as coisas seriam se Adélia o visse. Se olhasse em seus olhos e enxergasse o mesmo vazio horrendo que ele via em si mesmo, talvez ela mudasse de ideia e se manteria afastada.

Ele próprio sabia que a solidão era dolorosa, mas não seria ele a sugar toda a vida de Adélia mantendo-se perto só para o próprio prazer.

Rafael até pensou em irem ao jardim, mas estava se sentindo tão pesado e enlutado que não conseguia pensar em mais nada do que em uma canção. Era a ideia mais teatral que já tivera, e agora tinha a certeza de que Fordy adoraria o momento.

Enquanto Adélia se sentava perto dele junto ao piano, com os olhos fixo em seu rosto despido da máscara, ele se permitiu viajar junto com as notas que tocava. Permitiu-se também pensar na ideia de Fordy adorando o momento, para só então ter a coragem de encará-la.

Nada do que pensasse naquele momento ou qualquer sentimento que o levara a fazer aquilo havia o preparado suficientemente bem para o que aconteceria quando ele finalmente a encarasse. Não foi a coragem, o medo, a revolta ou a necessidade de mantê-la longe que fez com que Rafael olhasse bem nos olhos de Adélia.

Foi algo próximo ao que ele vinha sentindo ultimamente, e o que sentiu quando olhou e a viu desamparada no dia anterior. Era algo que queimava em seu peito, uma ansiedade inexplicável de vê-la mais uma vez e a vontade de simplesmente tê-la ali.

Rafael interrompeu seus próprios dedos, fechou os olhos durante dois segundos e a encarou.

E Adélia fez o mesmo.

O primeiro pensamento que ela teve foi algo próximo a um palavrão. Não era de seu feitio xingar, mas sua mente havia acabado de virar uma poça rasa.

De fato, ela não conseguiu segurar o próprio queixo.

Minha nossa, minha nossa!  sua mente gritava, fervendo. Seu coração batia com tanta rapidez que ela mal notava.

Rafael era... oh, Deus! Como ela poderia defini-lo?

Adélia fez uma análise mental de cada traço em seu rosto, investigando-o com avidez. Seus olhos percorriam sua pele de um lado para o outro e seu rosto expressava nitidamente sua incredulidade. 

Muito vagarosamente e o mais delicada que podia, ela ergueu a mão e fez menção de tocar-lhe a face. Esperou que ele a impedisse até que seus dedos estivessem a milímetros de distância, quando Rafael respirou fundo. Ela mal o havia tocado e parecia que ele já estava sofrendo com isso.

Sem querer, ela olhou diretamente em seus olhos, suplicando. Rafael mal conseguia decifrar o que se passava em sua mente, pois sua expressão estava congelada em algo próximo a ceticismo e medo, apenas.

Ele resistiu ao olhar enquanto tentava manter-se calmo, até que ela o tocou de fato.

A princípio, ela não fez nada. Simplesmente espalmou sua mão na sua bochecha e ficou encarando o local, como se esperasse que algo a mais acontecesse. Rafael suportou aqueles segundos com uma angustia moderada, até Adélia pressionar com mais firmeza seu rosto.

Era uma pressão leve, mas que o deixava receoso. O calor que emanava da pele dela e até o cheiro adocicado que vinha de seu punho eram inebriantes, mas não o suficiente para mantê-lo calmo e receptivo.

Ninguém nunca o tocou daquela maneira – nem mesmo Celine, nem mesmo Fordy.

Os únicos que de fato já encostaram em Rafael haviam sido seu próprio pai e o Dr. Salvatore, embora ambos sempre o machucavam no ato.

Ele não esperava que Adélia lhe desse um soco, mas também não sabia o que pensar ou como reagir diante daquilo. Nem quando ela tocou sua face coberta pela máscara havia sido tão embaraçoso.

No fundo, Adélia estava alheia a reação avessa dele. Sua fascinação estava tapando qualquer cuidado que deveria tomar naquele momento.

A pele dele era estranhamente áspera ao mais suave toque, mas se tornava macia depois de certa pressão, como uma cicatriz de queimadura. Era franzida como tal, mas não era tão visível quanto as linhas escuras que se espalhavam por seu corpo, sobressaltadas. Eram como as raízes de uma árvore velha, sem flores ou frutos.

O mais assustador era que elas pareciam vivas. Adélia percebeu isso quando Rafael respirou fundo e elas dançaram sob sua pele de uma forma tão sinistra que fez seu estômago embrulhar.

Como correntes, ela pensou rapidamente. Correntes que se enroscavam em seu corpo. Estavam abraçadas nele, como se se prendessem em seu ser, seu corpo e pele de forma que o impedia de respirar e – indo muito além daquela nova realidade e do pouco que o conhecia – impedia-o de viver.

Adélia seguiu uma dessas raízes com a ponta do dedo, até sua mão estar espalmada no pescoço dele, entre o colarinho de sua camisa. Pareciam se espalhar por todo o seu corpo, e aquela ideia só serviu para aguçar sua curiosidade.

Ela corou com a ideia, voltando sua atenção para seu rosto novamente. Rafael parecia ansioso demais, mesmo controlando a própria respiração.

—Você está bem? – Ele murmurou, ansioso para quebrar aquele contato. Mas Adélia não parecia nem um pouco interessada em falar.

Ela encarou seus olhos, concentrando toda a sua atenção nos traços de um tom esverdeado que a encaravam de volta. Por um momento, aquele tom nublado que marcava aquele par de íris a fez se recordar de Adam – o tom tempestuoso, que a fazia tremer.

—Eu tenho tantas perguntas... – ela piscou, perdendo o raciocínio. Sua cabeça estava a mil, e Adélia estava se esforçando para manter o controle. Mal deu tempo a Rafael para resistir: - Quantos anos você tem?

Rafael piscou, surpreso.

—Aproximadamente, vinte – ele respondeu, sentindo o bolo na garganta se formando. Não estava preparado para um questionário, mas também não podia esperar outra coisa.

—Uau! – Adélia exclamou, surpresa. Ela nunca havia pensado diretamente naquilo, por isso não teve receio de perguntar. Mas havia ficado mais surpresa com a resposta do que esperava, para algo tão simples. – Aproximadamente? Não sabe quantos tem?

Ela sentiu vontade de rir no momento, de tão nervosa. Mas limitou-se a apenas um risinho.

—Parei de contar o tempo depois de... – ele se interrompeu. Celine era o que queria dizer, mas não podia. Pelo menos, não naquele momento. – De uns anos atrás.

—O que aconteceu?  - A expressão de Adélia havia passado de atônita para preocupada com uma velocidade tão grande que Rafael desconfiou de que ela estava fingindo. – Há uns anos atrás?

Rafael engoliu em seco.

—Eu apenas desisti de mim mesmo, Adélia. – Respondeu, brando. Não queria afetá-la ainda mais com a própria morbidez.

Ela o encarou por um momento, como se estivesse pensando no que acabou de ouvir. Era estranho poder deduzir o que se passava na cabeça dele apenas analisando sua expressão. Estava começando a ficar acostumada com os lábios congelados da máscara.

Adélia aproveitou para observá-lo, de fato. Não apenas aquelas raízes em seu rosto ou o tom empalecido de sua pele, mas a ele. A tristeza agora visível em seu olhar, a forma como seu cenho parecia deprimentemente franzido e o modo como os fios revoltos e claríssimos de seus cabelos o deixavam cansado.

Ela procurou em sua mente algo reconfortante para lhe dizer, mas não conseguia pensar em nada. Adélia não conhecia ele de verdade – o cara sentado ali com ela lhe parecia muito diferente do cara da máscara, e não era apenas pelo visual.

Era ele. Apenas Rafael.

—Eu sinto muito – ela disse, com toda a sinceridade. Adélia afastou sua mão, deixando-a repousar em seu colo. Agora que conseguia enxerga-lo, um sentimento de compaixão fez seu coração palpitar. – Deve ser muito difícil para você.

—Francamente, Adélia – Rafael respondeu. – Não preciso de sua pena.

Ele não havia sido ríspido, mas mesmo assim Adélia sentiu uma pontada em seu coração. Estava tentando ajudar, e não queria ser tratada daquela forma.

—Eu não tenho pena de você – respondeu, cruzando os braços. – Eu disse que sinto muito e que compreendo você.

­-Você não entende nada.

—Oh, explique-me então! – Ela disparou, surpresa por ter soado calma. – Se acha que sou tão antipática ou estúpida, por quê me chamou aqui?

Rafael sentiu vontade de rir, mas não o fez. Simplesmente levantou e se afastou dela.

—Não era o que você queria? – Ele murmurou, impaciente. Estava sentindo a sensação de que aquela discussão não acabaria bem, mesmo sendo inevitável. – Bem, aqui estou eu.

—Qual é o seu problema? – Adélia recuou, afetada pela rispidez dele.

—Seja sincera comigo, Adélia – ele continuou. – Acredite quando digo que não preciso de sua pena e não minta para mim. Acha que eu nunca ouvi o que está pensando agora?

—Do que você está falando, Rafael? - Adélia enrugou ainda mais a testa, confusa. – E como sabe o que estou pensando?

Rafael suspirou, fechou os olhos e deu-lhe as costas. Ele não queria ter de se explicar, e se sentia extremamente estúpido naquele momento.

Tinha a sensação de que Adélia o estava fazendo de idiota, mas uma olhada para seu rosto lhe mostrou o contrário.

—Acha que eu não sei o quanto sou horrível? – Disse, escondendo as mãos úmidas nos bolsos. – Ou o quão monstruoso eu pareço? Pois bem, não precisa esconder que pensa o mesmo de mim, pois eu sei muito bem, Adélia. Mas não vou admitir e me recuso a receber sua pena.

Ah!, foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça naquele momento. Como ela poderia reagir àquilo?

Adélia admitia que sentia um pouco mais de pena dele agora, mas não iria cometer o erro de demonstrar isso novamente.

—Desculpe, Rafael – ela murmurou, receosa de parecer afetada. Não queria que ele ficasse ainda mais bravo com ela por isso. – Mas se quer minha sinceridade, então olhe para mim.

Rafael hesitou e até se intimidou um pouco, mas não resistiu a seu pedido. Estava pronto para ouvir.

—Não me sinto assustada com você. -  E era verdade. Adélia não estava tremendo como de costume sempre que estava diante dele. – Sua aparência é diferente, peculiar até. E quer saber mais? – Ela ergueu-se de seu assento, exasperada.  – Você não precisa ser um monstro só porque as pessoas só querem enxergar isso em você. Não seja tão tolo a esse ponto.

Rafael pensou em um contra-argumento, mas nada lhe vinha a mente naquele momento. Era estranho o quanto Adélia parecia saber aquele tipo de coisa e o modo como agia, como se o conhecesse durante tempos.

—Você não faz ideia do que é ser um monstro, suponho. – Ela concluiu, e, naquele instante, Rafael jurou ter visto seus olhos umedecerem.

—Você não me conhece tão bem, Adélia – Rafael avisou, mas não em um tom intimidador.

—Eu sei muito mais sobre você do que imagina, Rafael – Adélia rebateu, e se arrependeu na mesmo hora. Ele não deveria ter a mínima ideia daquilo, e muito menos Jeniffer.

Ambos ficaram em silêncio durante alguns segundos, se encarando. Rafael não tinha a mínima coragem de saber do que ela estava falando, pois temia o que quer que Adélia soubesse sobre si.

—Então por que ainda está aqui, agora? – Ele indagou, incrédulo. 

Adélia franziu os olhos, como se não entendesse o que ele acabou de falar.

—E para onde eu iria? Você me acharia em qualquer lugar – ela murmurou, cruzando os braços. – E, se quisesse me machucar, já não teria feito?

Rafael engoliu em seco, sem conseguir dizer nada mais.

—Ainda preciso de você – aquelas poucas palavras fizeram o coração de ambos disparar.

Adélia, por ter de admitir aquilo em voz alta e Rafael, por ouvir aquilo e não ter a menor ideia do que aquele calor em seu peito significava.

Foi tão inebriante vê-la falando algo do tipo que ele quase pediu que repetisse. Seria ridículo se o fizesse? O que Adélia pensaria dele?

Talvez ele não fosse tão vazio assim, ou insensível – se só aquelas poucas palavras eram capazes de lhe tirar o peso da consciência.

— Eu quero ajuda-la – foi tudo o que conseguiu admitir. Queria dizer mais, mas como? E o que diria?

Adélia sorriu lentamente para ele e, um passo depois, estava próxima demais.

Rafael sentiu sua pele esquentar quando Adélia se aproximou e pegou suas mãos, apertando-as afavelmente.

Seus olhos expressavam tantas coisas naquele momento que Rafael ficou confuso, mas tampouco quis perguntar. Sabia que era difícil para ela conviver com aquele turbilhão de sentimentos e não queria força-la a ter de explicar cada um deles.

—Eu me importo com você, Adélia – ele murmurou timidamente. Sentiu vontade de se esconder no mesmo instante, amedrontado com a reação dela.

Mas Adélia apenas apertou sua mão como resposta, dando-lhe um sorriso amarelo.

 

Adélia deslizou os dedos pelas lombadas dos livros, tentando manter a própria boca fechada. Rafael havia voltado para o piano a pedido dela, e agora tocava outra musica melancólica – mas, bem menos solitária.

Vez ou outra Adélia lhe lançava um olhar por cima do ombro e o pegava observando-a. Rafael parecia distraído demais em seu piano para conseguir enxergar o que se passava do outro lado da biblioteca, onde ela fingia observar os livros e ler algumas de suas páginas.

Ela mordeu o lábio, nervosa. Podia sentir seus olhos sobre ela naquele momento, tão palpável quanto o livro que segurava em mãos. Havia algo estranho em seu coração, um fio gelado que se enroscava vagarosamente por seu corpo aos poucos.

Adélia sustentou seu olhar por um momento, distraindo-se apenas quando Rafael fechou os olhos e voltou a se concentrar em sua musica.

Ela aproveitou o momento de distração para analisa-o de longe. Sentia um embrulho no estomago e uma sensação de adrenalina correr em suas veias com a expectativa de ser pega o encarando.

Por um momento, ela quis voltar para ele e sentar-se ao seu lado, tocar-lhe a pele e poder reviver toda aquela sensação de fascínio outra vez. Sabia que não deveria, pois não queria que Rafael se irritasse com a curiosidade dela.

“Não preciso de sua pena” ele falou, em um momento. Mas era inevitável para Adélia não se compadecer com ele.

Adélia não sentia pena de Rafael por sua aparência, mas pelo o que ele era. Não era um monstro, ela deduziu. E não era isso que a amedrontava.

Havia algo nele que fazia o coração de Adélia bater rápido, mas de forma receosa. Ela o encarava agora para entende-lo, na verdade. Estava a procura daquilo, daquele fio que prendia-se em seu coração e a ligava a ele.

Ela pensou no Acordo, na historia de maldição e em toda a dor que sentira ao chegar ali. Pensou em seus pais, no propósito daquilo tudo e, por fim, na própria maldição.

Ela mal acreditava que aquilo era real, que Rafael era real.

Parecia que havia levado uma injeção daquela realidade – havia sido dolorido no inicio, mas agora ela mal sabia o que pensar. Seu coração já não estava mais com todo aquele ódio, aquela revolta e negação. Claro, ainda doía estar longe de seus pais, mas estar perto de Rafael agora era...

Era difícil dizer. Adélia não conseguia pensar em uma palavra que descrevesse o que sentia ao encará-lo ali, sentado e tocando uma música clássica de forma sobrenatural.

Não havia nada de comum fisicamente falando. Rafael era desfigurado e amaldiçoado. Mas havia algo comum nele, algo que Adélia se identificava e conhecia bem – algo que o fazia ser mais humano.

Estava fascinada por ele, na verdade.

Como? Por quê?

Eram perguntas como essas que embrulhavam seu estomago e sua mente. Parecia simples fazê-las – era só entoar as palavras e pronto. Mas Adélia sabia que não podia.

Não era tão simples para Rafael.

—Venha aqui – sua voz entoou, despertando-a.

Adélia sentiu seu rosto arder de vergonha por ter sido notada encarando-o. Mal percebeu quando Rafael retribuiu o contato visual.

Ela guardou o livro debaixo do braço e caminhou até o piano, de frente para ele.

Será que um dia ela irá se acostumar com sua aparência?

—O que foi? – Perguntou, com a voz entrecortada. Adélia sentiu a bile bloquear sua garganta.

—Fique aqui – Rafael pediu, voltando para sua musica. – É melhor do que ficar encarando de lá, não acha?

Adélia abriu e fechou  a boca, mas não disse nada. Rafael não parecia magoado, mas seu tom parecia recluso. Quase conformado, como se estivesse acostumado com os olhares inquisidores.

—Eu não queria ficar encarando – Adélia argumentou, mudando o peso de uma perna para outra.

—Eu te perdoo por isso – Rafael murmurou, com a cabeça baixa. Adélia observou com fascínio enquanto seus dedos mudavam de uma tecla para outra, com a habilidade que um dia ela desejou ter.

A lembrança daquele piano abandonado naquele quarto vazio quase a fez rir. Era seu primeiro dia ali? Ela mal se lembrava mais – apenas do vaso quebrado e da cara de reprovação de Fordy.

—Não posso responder a suas perguntas se não fizer nenhuma, Adélia – Rafael murmurou novamente, despertando-a.

—O que? – ela esganiçou, surpresa. – Oh, eu...

—Faça. – Rafael pediu.

Ele não a encarava naquele momento, envergonhado. Não sabia se seria capaz de responder, mas queria pelo menos tentar, por ela.

—Eu não posso fazer isso – ela murmurou, sentindo o nó se apertar ainda mais em sua garganta. Estava morrendo de curiosidade? Sim, mas não podia força-lo. – Não agora.

—O que há de errado com você? – Rafael sibilou, atingindo-a.

Adélia sentiu a pontada em seu coração quebrar o gelo que se espalhava por seu corpo, fazendo seu rosto corar. No fundo, ela ficou magoada, mas o modo como Rafael estava defensivo, escondendo o rosto e respondendo-a daquele jeito foram motivos suficientes para fazê-la desistir da ideia de interroga-lo.

—Não vou força-lo a responder nada – ela respondeu, no mesmo tom. – E, a propósito, prefiro que me conte sem interrogatórios.

—Não sei se farei isso – Rafael tinha um tom de sarcasmo em sua voz. – Como se já não bastasse...

—Não basta – Adélia respondeu rapidamente. – Não basta tirar a máscara, Rafael. Você não é só isso.

Quando os dedos de Rafael socaram as teclas violentamente, Adélia recuou. Seu coração doía em seu peito, e o susto fez seu couro cabeludo pinicar em alerta.

—Eu sou assim, Adélia. Eu nasci assim, fui criado assim – ele apontou para o próprio rosto. – Meu pai me abandonou aqui por que sente nojo de mim. Nunca saí daqui por que ele tem vergonha de me apresentar para os amigos dele, tem vergonha de criar uma aberração como eu.

Rafael parou para respirar um pouco.

—Não sei por que sou assim, não sei o que é essa maldição. Vivi todos esses anos forçado, Adélia. Não tenho propósitos, não tenho sonhos e muito menos uma vida – ele encarou os olhos lacrimejantes de Adélia por um momento apenas, antes de desviar. – Não sei se sou humano ou se sou um demônio.

Ambos ficaram em silencio por um momento. Rafael encarava a paisagem através da enorme janela, enquanto Adélia o encarava perplexa. Ela queria lhe dizer algo reconfortante, mas não conseguia. Mal podia respirar.

—Não quero que tenha pena de mim, Adélia. Não quero que chore por que minha historia é triste ou por que sou vazio. – Ele continuou, calmo. – Você não merece passar por isso, não merece estar aqui comigo. Não precisa tentar me entender, sentir a minha dor...

—Rafael – ela o interrompeu. – Não quero que me diga o que fazer ou sentir.

—Você não entende, Adélia! – Rafael vociferou. – Você não consegue enxergar nada do que está acontecendo? Você não vê o que eu sou, ou o que eu já lhe fiz?

Adélia sentiu sua garganta explodir junto com as lagrimas que rolaram por seu rosto. Ela sentia que Rafael estava irritado com ela, mas muito mais magoado consigo mesmo.

—Eu vejo quem você é, Rafael – ela murmurou, piscando os olhos para conter as lágrimas. – Eu vejo...

O meu coração? – Rafael fechou os olhos com força, impaciente. De onde saíra toda aquela raiva e euforia?  – É a única coisa que você pode ver em mim? A porra do meu coração? Você é ridícula, Adélia.   – Ele calou-se, incrédulo.  

Muito lentamente, Rafael ergueu a cabeça para encarar Adélia, que tinha os olhos semicerrados e o rosto molhando de lagrimas.

—É isso o que pensa de mim? -  Ela murmurou, irada. – Que sou uma ridícula? Uma imbecil tola e... – ela perdeu o folego. Seu coração doía tanto e batia tão forte que Adélia sentia suas costelas racharem com o impacto das batidas.

—Não. Eu não acho que você seja isso.  – Ele admitiu, envergonhado. – Me perdoe, Adélia.

Te perdoar? – Ela vociferou. Estava com tanta raiva que até seu rosto estava vermelho. Ela ficou calada por um momento, pensando no que dizer. Queria dizer mil coisas, ou qualquer coisa que o magoasse instantaneamente, na mesma proporção. Mas tudo o que saiu foi um: - Vá a merda.

Ele mal teve tempo de lhe dizer qualquer outra coisa, pois a mesma já atravessava a porta da biblioteca e partia, furiosa, para longe dele.

Rafael quis segui-la, quis segurá-la e mantê-la durante mais um tempo perto dele. Acima de tudo ele queria poder apagar tudo o que disse.


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Notas finais do capítulo

Já já tem a segunda parte ;)



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