Eu sou a cura escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 7
Amor


Notas iniciais do capítulo

amor
/ô/
substantivo masculino
1.
forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais.
2.
atração baseada no desejo sexual.



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Havia uma verdadeira aglomeração de pessoas. Jovens, adultos e velhos. Eu e Anthony estávamos, finalmente, na universidade. O sol estava forte e aquecia o piso de concreto, ao mesmo tempo em que a grande movimentação do lugar não permitia que eu sentisse frio. Por alguma razão, eu me via menor do que todos ali. Os homens eram fortes, esbeltos e transmitiam uma masculinidade forte, mas sem excessos. As moças eram lindas e delicadas, mas sempre com o ar de esperteza e vigilância. Eu e Tony? Dois cordeiros no meio daquela selva. Mas eu sabia que aquilo era um sentimento momentâneo. Sabia que a minha sensação de incapacidade era fruto da minha infância traumática, da minha adolescência difícil e do meu eterno embate com a autoridade da minha antiga casa.

Mas havia algo mais que eu sabia, algo que mudava completamente esse trágico quadro: eu estava em constante transformação. Eu disse “não” ao comodismo, ao vitimismo e ao sofrimento. Eu escolhi reagir, lutar contra tudo e contra todos. E, afinal de contas, quem é que não tem seus traumas? Todos ali tinham suas histórias de vida, umas mais sofridas que outras. Mas, no final das contas, todos nós trajávamos nossas máscaras, sempre buscando mostrar o nosso melhor. Ou o que achávamos ser o nosso melhor.

— Afinal, onde vai ser esse negócio? — Disse um impaciente Tony.

— É só seguir as massas, cara. Elas sempre levam ao abatedouro — eu respondi brincando.

Enquanto andávamos pela belíssima área aberta da universidade, não pude deixar de observar o encantador jardim com sua grama extremamente verde e seus arbustos simetricamente dispostos. Entretanto, algo quebrou a tão perfeita simetria: um cigarro fora jogado aos pés de um dos belos arbustos. Aquele cigarro abrira meus olhos: não estávamos, afinal, entre exemplos de pessoas perfeitas, modelos ou ídolos. Eram apenas pessoas com outros vícios. Se o meu pai era viciado no álcool, na universidade pude encontrar viciados em cigarros e em sua fumaça tóxica. Mas não só isso: o vício no narcisismo, na crença da superioridade, na autopercepção como o líder de um rebanho ou mesmo na fé de que nada pode o atingir. Pobres jovens.

— Não sabia que encontraria porcos até mesmo aqui — eu disse.

— Oi? — Tony não entendeu bem o que eu disse.

— Ali — eu apontei. — Jogaram um cigarro no meio daqueles belos arbustos. Você já viu quantas lixeiras existem aqui? Por que jogar no meio do verde? Nem mesmo jogar no concreto seria justificável. Seria preguiça ou simplesmente falta de vergonha? Pensei que aqui estaríamos entre os mais inteligentes.

Anthony me olhou com certo espanto. Talvez tenha me achado arrogante, e provavelmente eu realmente tenha sido. Poxa, até hoje eu sou arrogante. Mas fazer o quê? Quase sempre estou certo.

— Cara, vamos manter o foco — Tony disse.

— Foco! — Eu exclamei. — Isso é a chave de tudo, Anthony. As pessoas vivem tão ocupadas com futilidades que esquecem de seus objetivos de vida. Se é que já tiveram um!

— Você sempre faz discursos assim?

— Só quando estou inspirado — finalizei.

Andamos por mais uns dez minutos em meio a multidão para finalmente encontrarmos o ponto de encontro, onde ocorreria o ritual de iniciação do ano letivo na faculdade. No meio de todo o barulho e do calor, eu pude ver um grande palanque de madeira. Ele já estava gasto, tendo em vista que provavelmente era o mesmo usado nos anos anteriores e em outros eventos. O palanque estava protegido do sol por uma tenda da cor vinho com detalhes dourados. Em cima do palanque estavam alguns homens engravatados, além de duas senhoras muito bem vestidas, ainda mais se considerarmos que o evento ocorria ainda pela manhã.

— Sejam todos bem-vindos à maior e melhor universidade de Michigan! — Gritou ao microfone um velho barbudo e enrugado.

A gritaria dos jovens foi geral. Cheios de alegria, animação e orgulho. E devo confessar: aquela também era uma vitória minha. Não me esquivei de gritar e aplaudir. Enquanto isso, Anthony agia de maneira mais tímida, dando curtos e discretos aplausos.

— Este será o melhor ano da vida de vocês. “És um vidente? ”, vocês devem estar pensando. Eu respondo: não sou um vidente, mas tenho alguma experiência de vida. Lembro-me quando fui universitário em 1969. As coisas eram bem mais difíceis naquela época. Dinheiro era complicado e da tecnologia nem preciso falar. Mas mais importante do que isso: o espírito de busca, a ambição na quantidade ideal. Eu nunca me senti satisfeito com o status quo das coisas. Mas como mudar? Seja no que for: política, tecnologia, na sua família ou mesmo em você mesmo. O que fazer? A minha dica: não espere que as ferramentas venham até você. Cultive as ideias certas e veja tudo florescer no tempo certo. Mas vale lembrar: uma ajuda sempre vai bem. Vejam a universidade como uma terra fértil para o florescer de suas ideias. Usem, abusem, explorem. Estamos juntos por um mundo melhor. Carpe diem.

Curto, simples e objetivo. Ou apenas sucinto. Eu me vi em tudo que o velho dissera. Da terra infértil pode nascer uma planta que traz esperança. Mas na terra fértil? Bem, certamente dará frutos. E era isso que eu queria para mim. Quando me dei conta, já estava aplaudindo intensamente junto com as outras centenas de jovens ali presentes. Dessa vez, até Tony aplaudia com uma maior animação. O pobre garoto passara a vida na sombra do pai. Talvez a sombra da árvore que era o seu pai impedisse que o sol chegasse até ele mesmo. Talvez agora — finalmente livre — ele tivesse espaço para encontrar o sol e crescer.

— Incrível! — Os olhos de Anthony brilhavam.

— Tenho que admitir: é mais que um discurso genérico — eu disse.

O dia transcorreu com tranquilidade. Finalmente eu podia dizer, oficialmente, que era um estudante da Universidade de Michigan.

Os meses foram passando e cada vez mais minha amizade com Anthony ia se fortalecendo. Aos poucos ele começou a mostrar mais segurança, ao mesmo tempo em que se mostrava alguém em quem eu podia confiar. Paralelamente, eu comecei a esporadicamente fazer ligações para meu pai. O motivo? Eu sentia pena dele. Sim, mesmo depois de tudo que ele fez, a imagem e som de seu choro sempre ecoavam pela minha cabeça. Foram várias as vezes que ele demonstrava alegria em simplesmente me escutar, mesmo que eu falasse friamente com ele. Se fiz certo, até hoje eu não soube.

Com o passar do tempo, a universidade passou a ser uma extensão de mim mesmo. Por maior que ela fosse, eu sabia como chegar em qualquer lugar dela, além de conhecer a função de cada área. Sempre fui curioso e gostava de explorar cada canto que podia, ou mesmo os que não podia. Entretanto, eu estava entediado pelas últimas semanas: minhas aulas estavam chatas e as pessoas das minhas salas me causavam enjoo.

— Lembra quando falei de foco? — Disse para Tony nesse dia.

— Como não lembrar? Você parecia um louco. Na verdade, você ainda parece — Tony começou a rir.

Estávamos em um barzinho próximo à faculdade. Tony insistiu em ir. Ele não tinha muita experiência com álcool, por mais que seu pai fosse um beberrão e pegador no melhor estilo Hollywood. “Faça o que digo, mas não faça o que faço”, ele devia pensar.

— É que existem momentos em que eu não filtro meus pensamentos. Sabe, Tony, e se todas as pessoas fossem assim? Bem, certamente já teríamos a terceira guerra mundial — eu expliquei.

— E a quarta e a quinta. — Tony pegou um pouco de conhaque e encheu seu copo. Sua voz já estava ficando um pouco embolada.

Eu apenas o acompanhava. Estava com meu caderno de anotações e um chá. Tony deu um breve gole no conhaque, mas logo fez uma careta.

— Por que você bebe isso se acha ruim? — Eu questionei.

— Só quero provar. E já paguei caro por essa merda, não vou desperdiçar. Quer um pouco? — Disse Tony.

Eu respondi negativamente com um gesto do meu indicador. Certamente, desperdício era a menor das preocupações de Anthony. Nenhum necessitado precisa de bebida alcóolica para sobreviver. Crianças da África não morrem por ausência de bebida. Anthony queria, na verdade, entender o pai. Ter a vida do pai. Crescer mais que ele. Mas eu não podia deixar isso acontecer. Anthony podia ser muito mais. Era gentil, dedicado e, no fundo de sua alma, tinha uma incrível força de vontade.

— Chega! — Eu segurei o seu copo e impedi que mais conhaque fosse até a sua boca. — Já deu a hora, meu amigo.

Ele me olhou com um misto de espanto e decepção.

— Mas que porr...

Anthony Grace tentara se levantar da mesa enquanto pronunciava algum impropério. Entretanto, o jovem sentiu uma fraqueza repentina (ou não) em suas pernas e desmoronou. Seu corpo tombou contra a mesa e logo em seguida ele caiu no chão. Tanto a garrafa como o copo acabaram caindo no chão e se partindo. O vidro se espalhou junto com o álcool, mas por sorte Anthony não sofreu nada além de pequenos cortes. As poucas pessoas presentes no bar naquela hora olhavam para a situação. Eu imediatamente me levantei da cadeira e fui até o meu amigo.

— Eu avisei, seu completo idiota! — Eu xinguei enquanto tentava levantá-lo.

Ele não havia desmaiado, afinal. Balbuciava algo completamente incompreensível. Estaria ele me xingando? Agradecendo? Bem, não importava. O carreguei para fora do bar. Já era tarde da noite e eu já não via qualquer transporte para retornar para casa. “Bem, não é tão longe do prédio”, eu pensei. As pernas dele começaram a ter sua força reestabelecida, e seus fracos passos me ajudaram a não perder completamente a força dos braços.

Estava frio e a escuridão me fazia sentir medo. Medo do imprevisível. O que viria a seguir? Um assaltante, um animal ou simplesmente eu cairia na realidade e enxergaria o quão idiota eram meus pensamentos? Qualquer das opções era aterradora para mim. Enquanto isso, Tony permanecia num reino distante, olhando para baixo enquanto falava algo em uma língua desconhecida. Até que eu finalmente sentia o gélido medo da morte. Do outro lado da esquina surgiu um encapuzado. Eu não via seu rosto, mas reparei que ele era franzino e tinha um andar tão desconfiado quanto o meu. Ia em minha direção e olhava para mim. “Não me mate, não me mate, não me mate”, eu pensava. A cada passo eu imaginava mil e uma formas de reagir. Deveria entregar o que ele pedisse? Deveria socá-lo, chutá-lo, ou mesmo jogar o corpo quase inerte de Tony em cima dele?

Então eu me lembrei do meu querido irmão, Liam. Como teria sido o momento em que ele foi morto? Teriam matado a meu irmão de maneira fria e cruel? Será que ele reagiu ou simplesmente morreu como um cordeiro? Bem, eu definitivamente não queria ficar inerte naquela situação. Conforme me aproximava do estranho, meu punho se fechava e minha pupila se dilatava. Quando ficamos a uma distância perigosa, o encapuzado acenou para mim e disse:

— Reed?

Era, afinal, uma voz feminina. Uma voz calma, suave e aconchegante. Agora, com a proximidade e com minhas pupilas dilatadas, eu pude ver as suas feições femininas. Seu rosto delicado, esculpido de maneira angelical.

— Oi? — Eu não sabia mais o que dizer.

A moça finalmente baixou o capuz e eu pude ver seus cabelos castanhos claros. Não eram tão longos, mas balançavam suavemente em decorrência da brisa noturna.

— Sou a Lily. Digo, Lilian. Acho que já nos vimos algumas vezes na faculdade. — Ela finalmente se apresentou.

Ela mentiu, de certa forma. Eu tinha uma memória boa, mas não me lembrava de forma alguma de tê-la visto. Caso a tivesse encontrado em qualquer outro momento de minha vida, eu lembraria. Seus olhos transmitiam paz, sua voz me acalmava e a breve ameaça de um sorriso já fazia algo queimar em meu peito. Foi como se um raio tivesse me atingido.

— Prazer, Lilian. Como pode ver, esse meu amigo não está no melhor momento — eu disse.

— Por que vocês não passam na minha casa agora? Ao menos para ver se seu amigo ainda sabe andar. — Ela deu uma risada.

“Um tanto solícita para desconhecidos”, eu pensei. Algo estava errado: o que ela fazia andando pelas ruas naquele horário? Por que nos ajudar? Seja como for, eu aceitei o convite. “Ela não vai nos matar e nem vender os nossos órgãos”, eu refleti.

Chegando na casa dela, descobri que era — na verdade — uma república. Um embriagado a mais no sofá não seria grande coisa para aqueles jovens desajustados.

— Muito obrigado — eu disse enquanto colocava meu amigo no velho sofá.

Lilian foi até a cozinha e trouxe um copo d’água para Anthony. Aos poucos ele foi despertando, mas sem impedir que eu e a belíssima jovem pudéssemos conversar um bocado.

— Então, como você me conhece? — Eu questionei.

— Eu sempre te vejo pela universidade. Parece que você está em todo lugar. Não pude deixar de notar. E bem, eu faço física, mas admito que também valorizo os trabalhos da bioquímica e afins — ela respondeu.

Meu coração estava disparado. Eu nunca havia me sentido assim. Definitivamente, eu estava perdendo o foco que eu tanto falava e valorizava.

— Fantástico — eu disse.

— Você é estudioso. Sempre com um caderno — ela reparou.

— É um hábito — eu expliquei. — E você? Tem o hábito de sair pela noite encapuzada assustando jovens medrosos?

Lily caiu na gargalhada. Sua risada era macia, calorosa e fazia eu sentir paz. Na minha mente, eu sabia: tudo era fruto da química em meu cérebro. Reações em cadeia que proporcionavam em minha pessoa determinadas reações. Mas não tinha como fugir disso. Não tinha como ser apenas a aleatoriedade das nossas cabeças. Era como se tudo fosse traçado, por mais que eu nunca tenha acreditado em destino.

— Sabe, eu gosto de caminhar neste horário. Gosto do frio, da calmaria, do silêncio. É como se fosse uma versão diferente do mundo que conhecemos. Sem toda a barulheira que a juventude de hoje está acostumada. Nossa, as vezes penso que sou mais velha do que meu corpo faz parecer. E sobre o capuz: acredito que evitou que eu fosse assaltada várias vezes — ela contou.

Eu não pude deixar de rir. Tudo fluía tão naturalmente. Seus pensamentos se aproximavam tanto de mim e ela parecia me entender plenamente. Por mais que Anthony fosse um grande amigo (o único que tive desde a morte do meu irmão), ele não me entendia em plenitude. Mas Lilian? Nós estávamos conversando pela primeira vez e ela simplesmente sabia ler a minha mente.

No fim das contas, Tony acabou dormindo no sofá enquanto eu e Lilian conversamos durante a madrugada sobre os mais variados assuntos. Ela já havia morado em New York, Texas, entre outros. Não havia tido a oportunidade de criar laços com algum lugar. Seus pais trabalhavam para o governo e tinham que se mudar com frequência. Ela também me disse que almejava seguir uma carreira acadêmica, desejando ser uma física consagrada. Ela, definitivamente, tinha foco em sua essência.

Os dias foram passando e, cada vez mais, eu e Lily conversávamos mais. Eu, por mais introspectivo fosse quando o assunto era falar do meu passado, comecei a me abrir com ela. Ela era a única pessoa ali que sabia quem eu era. E ela sempre tentou me ajudar a me tornar melhor.

— Já ligou para o seu pai? — Ela insistia.

— Eu ligo amanhã. Ele deve estar embriagado ou trabalhando. Espero que a segunda opção seja a correta — eu respondi.

Mesmo com os problemas e traumas, ela sempre me fez ser melhor. E então ocorreu o dia em que eu senti o gosto do paraíso. Era princípio da noite e Lily me chamou para assistir “Curtindo a vida adoidado”. Aceitei na hora, obviamente.

— Espero que o filme seja bom — eu disse enquanto sentávamos nos assentos.

— Se não for, ainda dá para fazer a noite valer a pena — ela ousou.

O filme era, afinal de contas, extremamente divertido. Mas a noite ainda podia ficar melhor. Durante os créditos e a escuridão da sala de cinema, Lily tornou o corpo para minha direção e disse:

— Até que não foi tão ruim, hein?

Eu, inocentemente, respondi:

— Nunca duvidei de suas palavras.

— Bom saber.

Lily então passou os braços em torno do meu pescoço, segurou minha nuca com sua suave mão direita e me beijou com uma intensidade que eu não esperava. Diabos, eu nem esperava que ela me beijasse de maneira tão repentina. Obviamente eu retribui o beijo em intensidade semelhante. Até que, infelizmente, as luzes se acenderam e, por uma questão de bom comportamento, nós cessamos a troca de amor.

— Melhor que o filme — eu disse de maneira abobalhada.

Ela apenas sorriu para mim enquanto seus olhos brilhavam. Ela, definitivamente, era a mulher da minha vida, meu verdadeiro amor. Nada poderia mudar isso. E eu estava certo em meus pensamentos.

Passou-se um curto período de tempo e finalmente eu e Lily começamos a namorar oficialmente. Contei a notícia a meu pai e ele se alegrou, por mais que — mais uma vez — eu tenha contado de maneira fria. Por outro lado, Tony sentiu um pouco de medo ao ouvir toda a história sobre meu novo relacionamento. A negligência, o abandono e o esquecimento passavam em sua cabeça. Mas eu não sou e nunca fui alguém que esquece dos verdadeiros amigos. Lembro-me bem da nossa conversa quando contei sobre meu namoro com a Lily.

— Ela é incrível, cara — eu disse. — E ela me conhece de uma maneira inacreditável. Eu nem sei o que dizer direito.

— Definitivamente você foi flechado, meu amigo — ele disse, ainda com bom humor. — Só espero que não se esqueça dos amigos de sempre.

Aquilo foi, obviamente, uma indireta bem direta para mim. Foi a oportunidade perfeita para eu soltar mais um dos meus discursos.

— Como me chamo, Anthony Grace? Reed Kaas, como você deve bem saber. Alguma vez negligenciei você em prol de algo? Nunca. Por outro lado, você já trocou minha atenção e meu conhecimento muitas vezes por uma garrafa cheia de álcool. Mas eu não o julgo, pois é um direito seu. Eu apenas quero que você entenda uma coisa: eu enxergo o valor das coisas e sei tomar decisões. Posso muito bem discernir se vale mais uma garrafa de cerveja ou uma boa piada de um amigo. E sei muito bem viver em equilíbrio. Então não venha com indiretas e brincadeiras que só mostram o quão fraco você é. Você pode ser bem melhor do que isso.

Por mais duro, raivoso e sincero que eu tenha sido, minhas palavras surtiram um efeito extremamente positivo em Tony. Ele compreendeu que eu não o negligenciaria, mas mais do que isso: entendeu que eu não sou uma vítima de joguinhos emocionais. Ou não era, pensando bem. O fato é: desde então, Anthony começou a ter uma atitude mais proativa, puxando a responsabilidade para si e se tornando alguém muito mais ativo, sem os antigos medos que tinha durante o tempo em que fora educado pelo seu pai. Ele agora tinha certeza que poderia ir mais longe que seu progenitor.

E assim seguiram os meses e anos até minha formatura. Meu namoro com Lily se tornava cada vez mais forte e eu tinha certeza que me casaria com ela. Ao mesmo tempo, meus laços de amizade com Tony se tornaram mais firmes; confiávamos plenamente um no outro, criticávamos um ao outro buscando evoluir como estudantes e futuros profissionais, além de que tínhamos planos de montar nossa empresa. O nome Cure começava a surgir em nossas mentes.

Finalmente chegara o dia de nossa formatura. Foram anos de trabalho duro e noites mal dormidas em prol de algo maior que nós mesmos. O foco estava conosco. Lily já estava formada em física havia alguns meses. Ela se fez presente no evento.

— Você está realmente sexy — disse ela brincando.

Ela, definitivamente, mentia muito mal. Eu trajava a famosa beca de formatura negra e o chapéu igualmente negro. A única cor que trazia luz era o verde presente em pequenos detalhes. Dei um breve beijo nos lábios de Lily e fui até a cadeira ao lado do meu grande amigo e companheiro desses anos de batalha: Anthony. Aguardávamos o início da formatura, enquanto eu olhava ansiosamente para as intermináveis filas de cadeiras dos convidados. Além de Lily, eu só esperava ver mais uma pessoa: meu pai. Havíamos conversado no dia anterior por telefone.

— Filho, você sabe demais o quanto eu errei nessa vida. Sabe como fui um pai falho e uma pessoa ruim. Mas eu ando me esforçando. Sabe, vão completar quatro anos sem que eu encoste álcool na minha boca. Isso é incrível, não? E sabe o que é mais incrível que tudo isso? O seu dia amanhã, a sua formatura. Você é o primeiro na família a se formar, ainda mais numa universidade tão importante. Você é o melhor de nós, Reed. Seu irmão ficaria orgulhoso. E acredito que ele está vendo você de algum lugar. Amanhã eu aparecerei aí, do jeito que combinamos. Nós dois estamos mudando de vida, meu filho. Mas com uma diferença: estou mudando graças a você. Eu te amo — assim disse meu pai, Preston Kaas.

Depois de tão belas palavras, eu finalmente me prestei a ser um pouco mais caloroso com ele:

— Fico feliz, pai. De verdade. Aguardo o senhor amanhã. Te amo.

E a chamada foi encerrada. Sabe, enquanto escrevo isso eu reflito. Talvez eu tenha errado. Talvez Preston Kaas tenha sido, afinal de contas, um pai para mim. Mesmo que por um curto tempo e mesmo com todas as besteiras que ele fez ao longo da vida.

Enquanto eu esperava ele sentado, diversos pensamentos invadiam minha cabeça: ele irá se atrasar, se esquecer, abandonar, morrer? Morrer. Será? Não, não naquele momento. A vida não seria tão injusta comigo. Ela já havia sido injusta durante todos meus outros anos de vida. Agora tudo se alinhava: eu tinha uma mulher que me amava, um amigo leal e um pai que, supostamente, me valorizava.

Mas, como de costume, as coisas não foram como eu esperava. A formatura começou e eu não parava de observar a cadeira do meu pai vazia. Os discursos passaram, os estudantes comemoraram e nada. A cadeira continuava ali. Percebi então que uma pessoa estranha falou algo no ouvido de Lily. Minha então namorada fez uma expressão de espanto, da pior forma que se pode imaginar. Ela então olhou para mim de maneira penosa. Ao fim do ritual de formatura, dei um abraço em Anthony e fui até Lily.

— Reed... — ela estava sem ar.

— Calma. O que aconteceu? Meu pai não veio? Já notei isso e está tudo bem. Eu estava preparado para isso. — Não, eu não estava.

Lágrimas então começaram a cair dos seus olhos. Ela se preocupava comigo da maneira mais genuína possível. Então ela disse:

— Ele estava há alguns quilômetros daqui. Dirigia o carro tranquilamente até que um bêbado se chocou contra ele. Ele não sobreviveu, Reed.

Lilian chorava mais que eu. Mas eu sofria verdadeiramente. Foi um golpe seco e gelado em minha alma. Maldito destino, sempre pregando suas peças. Lily me deu um forte abraço e me acolheu.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!