Eu sou a cura escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 2
Ápice


Notas iniciais do capítulo

ápice
substantivo masculino
1.
extremo superior, topo ou ponta; cume, vértice, cimo.
2.
fig. ponto máximo; culminância, apogeu.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/733309/chapter/2

Você deve estar pensando que eu sou só mais um criminoso tentando justificar meus atos ou jurando inocência. Não, eu não sou inocente. Pelo contrário, digo em alto e bom som: eu sou culpado por tudo que aconteceu nos últimos anos. Sou culpado, inclusive, pela droga de vida que levo agora. Encarcerado entre quatro paredes cinzas, uma comida de qualidade duvidosa e sem ninguém para conversar algo mais inteligente do que quem ganhou o jogo de ontem. Eu realmente não recomendo que você seja preso.

Entretanto, nem sempre foi assim. Eu já tive família, amigos, poder e dinheiro. Muito dinheiro. Aliás, mais do que dinheiro: eu já tive um império. Lembro-me muito bem do dia 14 de Julho de 2015. Estávamos eu, minha amada esposa Lilian (Lily para os mais íntimos) e meu filho Liam. O local? Centro de Convenções em Washington DC, a capital do poder do país mais poderoso do mundo. Estávamos numa esplêndida festa promovida pela minha empresa do ramo farmacêutico: Cure. Música, risadas e gritos de alegria (ou de quem bebeu demais) enxiam o ambiente. Posso dizer que era uma balada da alta sociedade americana. Políticos, famosos e muito mais estavam presentes.

Diante de toda agitação, chegara a hora que todos esperavam: o discurso. Missão encarregada a mim, presidente da instituição. Lembro-me do beijo que dei em minha esposa, que trajava um lindo e longo vestido azul. Logo depois dei um rápido abraço no meu filho, além de dar uma bagunçada em seus cabelos loiros, como um pai inconveniente deve sempre fazer. Em meio a todo barulho e flashes, eu subi as escadas cinzas com cuidado, até que finalmente encontrei o palanque e o microfone estrategicamente posicionados.

Lá estava eu, literalmente do topo do topo do mundo. “Acima de mim, nem Deus”, eu pensei. Abaixo, fotógrafos usavam suas câmeras quase que como metralhadoras, enquanto algumas pessoas menos acostumadas com alta sociedade se apertavam para tentar tirar um selfie em que eu aparecesse. Quem diria que chegaríamos no tempo em que um reles farmacêutico seria visto como celebridade.

Usando meu traje branco, como um cavaleiro da luz, comecei o discurso:

— O tempo voou, não é mesmo? Eu me lembro quando eu tinha um sonho: tornar a vida das pessoas algo melhor. As enfermidades afligem o homem desde Adão. Desde sempre passamos por grandes crises: Peste Negra, Tuberculose, Gripe Espanhola, Ebola, entre outros. Homens e mulheres sofreram e sofrem na mão da mãe Natureza. Mas existe algo a ser feito. Nós temos a capacidade de nos levantar e reverter essa situação, meus amigos. E é essa capacidade de agir diante do suposto impossível que nos torna humanos. É exatamente por isso que posso dizer: eu estou vivendo o sonho.

Tive que parar de falar para ouvir os quase incessantes aplausos. Fico me perguntando quantos ali realmente entenderam minhas palavras. Quer dizer, é muito fácil seguir o efeito manada e aplaudir alguém que fala relativamente bonito. Não exige esforço, não exige raciocínio. Mas quem realmente entendeu o que eu disse? Eu posso contar nos dedos: Lily, Liam, Tony (tenho que falar dele ainda) e talvez a Jennifer. Mas tudo bem. O meu único dever naquele momento era sair bem na foto. Literalmente.

— Muito, muito e muito obrigado. Como eu ia dizendo, eu estou vivendo o sonho. Mas não o vivo sozinho. Anthony, por favor, se levante. — Um velho rabugento de cabelos grisalhos e barba mal feita se apresentou em meio ao público. — Esse homem é coluna vertebral da Cure. Sem ele, estaríamos literalmente no chão. Uma salva de palmas, por favor.

Mais uma vez, seguindo o efeito manada, as pessoas aplaudiam alguém que sequer conhecem. Anthony Grace era meu melhor amigo e sócio da Cure. Um verdadeiro irmão e alguém em quem eu confiaria minha própria vida. Eu realmente fui sincero no discurso: a Cure não seria nada sem ele. Após o fim dos aplausos, eu voltei a falar:

— Agora, vamos aos fatos: vivemos por décadas amedrontados pelo mal que era a AIDS. Mas, como vocês bem sabem, isso agora é passado. Hoje completa um mês que a autorização de vacinas contra esse mal fora autorizada. As vacinas estão indo para todo o mundo, tendo uma remessa especial para os países africanos, aqueles que mais sofrem com esse mal. Sim, nós estamos melhorando a vida das pessoas. Ninguém mais sofrerá com essa doença maldita. Em alguns anos, eu arrisco dizer, ela será erradicada!

Salva de palmas, novamente. Fotos, filmagens e, como já dito, selfies. Cada um escondido atrás de seu mundinho particular buscando registrar o melhor momento. Espero que eles tenham entendido alguma coisa do que eu tinha dito.

— Era para eu falar por dez minutos aqui, mas cá entre nós: seria uma chatice. — Todos caíram na gargalhada, enquanto eu prosseguia. — Ao invés disso, irei fazer um pedido simples: divirtam-se. Hoje é o dia de comemorar a vitória da humanidade. Nós conseguimos!

O som aumentou consideravelmente, sendo dividido entre a música completamente comercial, as conversas aleatórias dos presentes e o barulho das máquinas fotográficas que insistiam em registrar tal momento. Ao descer do palanque, Anthony se adiantou e logo me abraçou.

— A vitória é sua, meu querido. Você nos guiou até aqui — ele disse enquanto me abraçava.

— A vitória é nossa — eu corrigi.

Após aquele momento breve de fraternidade, uma inundação de jornalistas se aproximou para fazer perguntas, tirar fotos (mais ainda) e encher a minha paciência (é a teoria em que eu mais acredito). Eu me afastei de todos eles e rapidamente achei a pessoa mais importante da minha vida: Lily.

— Você foi incrível, meu amor! — Seus olhos castanhos brilhavam enquanto olhavam para mim.

— Aceita uma dança? — Eu, agindo como um cavalheiro, segurei sua mão e a beijei.

— Sempre.

Por mais que a música fosse extremamente genérica e cheia de efeitos eletrônicos (algo que não me agrada nem um pouco), tudo parecia perfeito quando eu estava com ela. No momento em que eu olhava para ela, minha visão clareava e eu podia apreciar sua beleza. 23 anos de casados, mas nada havia mudado. O seu sorriso sincero, o seu olhar que acalmava meu espírito e a sua voz que instantaneamente ganhava minha atenção. Ela era, leitores, a mulher da minha vida.

— Como está se sentindo? — Eu perguntei a ela.

— Como um peixe fora d’água. Mas com você até que consigo respirar — ela brincou.

Eu dei um longo beijo em Lily. Enquanto isso, o nosso filho, Liam, tentava se divertir na festa. O garoto sempre fora muito bonito, mas ligeiramente tímido e com uma espécie de tristeza no olhar. Ele andou um pouco pelo salão de festa até achar o buffet e pegar um pequeno pastel. De longe, ele via todas aquelas pessoas aproveitando intensamente a comemoração, enquanto o mesmo só fazia isso: assistir.

— Você parece desanimado — disse uma bela mulher de cabelos negros.

Jennifer Hoggart. Uma das grandes cabeças da Cure. Não, ela não era uma anciã com anos de experiência na área, ou alguém com dezenas de especializações e mestrados. Jennifer era uma jovem (pouco menos que 30 anos de idade) que crescera no mundo das ciências biológicas e logo fora contratada pela Cure. Eu mesmo tinha uma grande admiração com ela, mesmo que o seu perfil talvez não se encaixasse perfeitamente no que eu e Tony planejamos.

— Opa — Liam se assustou — Eu só estou um pouco cansado. A faculdade anda pesando, sabe?

Ele fitava os belos olhos verdes da garota enquanto a mesma dava um leve sorriso.

— Entendo bem até demais. Mas então, não vai dar um abraço no seu pai? — Era quase que um interrogatório.

— Acho que ele já sabe o quanto eu o admiro.

Cada vez se impressionando ainda mais com a beleza de Jennifer, Liam resolveu tentar romper as barreiras da timidez e ter um pouco mais de ousadia:

— Mas então, essa conquista também é sua, certo? Digo, o sonho e a cura. Você faz parte disso tudo, não?

Jenny se aproximou um pouco mais do garoto e respondeu:

— Nós somos um time. Ajudei, claro. Mas sozinha não iria a lugar nenhum. Você deveria ver seu pai em ação para compreender como ele é foda. — Ela começou a rir. — Com o perdão da palavra.

O meu filho riu e começou a se soltar.

— Curando o mau humor. Você realmente parece ser boa no que faz — Liam disse.

— Mas pode melhorar. Que tal dançar um pouco?

Liam foi com Jenny até a pista de dança. De longe, Lily viu seu filho trajando o arrumado terno preto acompanhado da bela moça de olhos verdes.

— Parece que nosso filho se deu bem — ela comentou.

— Com certeza. Jennifer é uma mulher esforçada e que é imprescindível para as conquistas futuras da Cure — eu disse.

Após mais alguns minutos de dança, eu — que não sou mais um jovem — pedi um tempo e fui pegar uma bebida. Desviando passo a passo da multidão que dançava entusiasmada, eu logo cheguei no bar. O barman — um careca com uma expressão dura no olhar — se aproximou e disse:

— O que vai ser?

— Duas tequilas Sunrise.

Eu não havia respondido. Anthony Grace havia aparecido e feito o pedido por mim.

— Sempre certeiro, hein? — Eu disse.

— É o costume. Você foi muito bem lá em cima, meu amigo — Tony falou.

— Deixa de besteira. Eu só estava lá em cima por causa de você.

O barman preparou nossas bebidas e as deixou na nossa frente. Tony pegou o seu copo, deu um gole e disse:

— É verdade? É verdade que você vai mesmo parar?

De novo aquele assunto. Eu e Tony havíamos conversado milhares de vezes sobre eu abandonar a cena da indústria farmacêutica. Eu queria descanso disso tudo. Era muita pressão, tensão e dias sem dormir. Depois de tudo que fiz, eu merecia dar uma pausa, não? Mas não era assim que ele pensava. O velho homem de cabelos grisalhos insistia em ter o espírito de um jovem ambicioso. Nada era suficiente. Sempre se podia fazer algo a mais. Eu até admirava esse espírito, mas uma hora isso se tornaria insustentável.

— Tony, eu sei que você admira muito a empresa. E ela vai continuar aí. Você vai colocar a Cure para andar. Você é a Cure.

— Não. Eu admiro você e tudo que você fez, Reed. Aliás, tudo que podemos fazer. Vamos lá, um último projeto. Estou com algo incrível em mente e que vai render muito para nós dois. Vai enriquecer nossas famílias por gerações — Tony insistiu.

— Olha, eu já tenho dinheiro para gerações — eu respondi.

Tony deu mais um gole. Batendo o copo sobre a mesa, ele passou a olhar fixamente para meus olhos. Sua testa franziu e ele falou:

— Nós podemos entrar para a história. Você sabe disso.

— E você sabe que nós já estamos na história. Nós criamos a vacina para a AIDS. Preciso repetir tudo que disse ali no palanque? — eu estava começando a realmente me sentir irritado.

Tony deu mais um gole, acabando completamente com a bebida que tinha em seu copo. Mais uma vez, franzindo a testa, ele olhou fixamente para mim e disse:

— Ok. Você está completamente certo. Dane-se o dinheiro, dane-se a história. Nós já temos tudo isso. Mas vamos fazer só mais um projeto. E aí você se aposenta. Uma última vez, cara. Pelos anos de amizade. Desde a faculdade e desde que essa empresa começou. Eu não sou a Cure. Você é.

Eu olhei para meu copo. Ainda cheio e se movimentando apenas pelas ondas sonoras da música alta que tocava no local. Olhei para Anthony e vi o rapaz de 18 anos que conheci há quase trinta anos. Ele não havia mudado muito. Ele me via como uma espécie de professor, um tutor ou mesmo um irmão mais velho. Ele talvez fosse o irmão mais novo que eu nunca tive, mesmo que nossa diferença de idade fosse quase que inexistente. Eu sempre fui mais maduro que ele. Mas como ele disse, nossa amizade era realmente forte demais. Eu sentia que podia quebrar o galho para ele. Um último projeto, um último trabalho. Que mal faria?

— Ok, você me convenceu. Uma última vez e pronto. Não quero ver essa cara de velho chorão de novo, certo? — Nós dois começamos a rir e eu, finalmente, bebi a minha tequila Sunrise.

Após beber o drinque eu finalmente me despedi de Anthony e voltei para Lily com uma bebida para ela.

— Insistindo de novo? — Ela questionou.

— Sempre. Mas eu pensei: tantos anos de amizade. Prometi um último projeto a ele. Você não vai ficar brava, não é? — Eu brinquei.

Lily pegou o drinque, bebeu um pouco, sorriu e disse:

— Acho que você tem um coração enorme. Salvando o mundo uma vez mais.

— Sim, salvando o mundo — eu menti para ela, como já fiz tantas vezes.

Enquanto isso, Liam devia estar curtindo com Jennifer, eu pensei. Eu então comecei a dançar e beijar minha belíssima esposa. Quanto mais velha, mais bela Lilian ficava. Seus olhos brilhavam, sua pele branca se tornava mais macia e o seu toque me enxia de alegria.

— Viu o Liam por aí? — Eu perguntei.

— Estou bem aqui — ele apareceu repentinamente.

Eu e Lilian paramos de dançar. Finalmente eu pude dar um abraço em meu filho.

— Como você está se sentindo, pai? — Ele perguntou com sua usual educação e seriedade.

— Melhor ainda com vocês — minhas mãos seguravam Lilian e Liam. — E você? Aproveitando a festa? A Jennifer é uma boa moça.

— Ah, a Jenny. Eu preferi deixar ela aproveitar a festa. Não estou no meu melhor dia — ele respondeu com desânimo.

— Ei — Lily disse — Você é mais do que pensa. Um rapaz educado, lindo, estudioso e, acima de tudo, uma boa pessoa.

— Sim, meu filho — eu completei — O mundo é duro. Seja forte. Você não nos terá para sempre.

Lilian deu uma leve cotovelada em mim, como se eu tivesse falado a coisa errada para o garoto. Apenas dei uma aula sobre como o mundo funciona, ora. Dei mais um abraço em meu filho e disse para ele procurar Jennifer de novo. O garoto se encheu de ânimo e foi em busca da moça. Olhei mais uma vez para Lilian e disse:

— Vamos aproveitar.

E esse foi o meu ápice.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!