Rosa Selvagem escrita por General Bear


Capítulo 1
Capítulo 1




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(...) Talvez tenha sido esse o momento em que parei de crer que os humanos tivessem alguma civilidade(…) Como ditavam os costumes gundarianos, o pretendente a desposar a filha de algum grande nobre passava dias, semanas ou até mesmo meses em busca de uma rosa-selvagem nas profundezas do bosque proibido de Navash(...) Colhida e trazida ainda fresca, a rosa era colocada em um enorme vaso de cristal translúcido, onde a mantinham submersa em água até que ela finalmente perecesse. Deixavam-na lá, exposta durante o casamento e por mais severos dias na casa da nova família, enquanto aquela beleza póstuma durasse e até que suas pétalas murchassem. Elas expeliam um perfume magnífico que poderia durar por anos impregnando o lugar. E era um sinal de boa sorte(...) As rosas sempre acabavam sendo o grande espetáculo dos casamentos, os convidados podiam passar uma eternidade apreciando inocentemente toda a crueldade do ato escondida naquela beleza fria e naquele perfume mórbido(...) Certa vez tive a infeliz oportunidade de presenciar um casamento gundariano — e os deuses que me perdoem a moléstia —, nunca em toda a minha longa vida presenciei algo tão magnificamente belo como a criatura presa naquele túmulo aquático.

 

~ TAHLÖBDAR, Vness Loh’gorn. Um Esboço Sobre a Crueldade Humana.

 

***

    “Algum problema, Gorak?” Hernick não estava mais com paciência para as dramáticas pausas feitas pelo meio-orc robusto e cinzento que guiava aquele pequeno grupamento pelas entranhas de Navash. “Está perto do anoitecer, talvez fosse melhor levantarmos acampamento o quant…”

“Shh…” Gorak interrompeu-o sem qualquer tentativa de decoro. O caçador meio-orc ignorou completamente o humano a quem devia obedecer. Seu focinho achatado retorcia-se enquanto farejava o ar úmido da floresta. “Acho que estamos perto de uma.”

    “Como?” Hernick definitivamente não estava preparado para a notícia. Ele deve estar mentindo.

    O caçador retorceu o focinho outra vez, em seguida gargalhou em toda sua rouquidão. “Temos uma preciosidade escondida aqui por perto, com certeza.” Gorak alisou os dedos contra a bainha de um punhal presa à cintura. Desguardou a lâmina fria e lambeu-a grotescamente num ritual que Hernick não fez questão de guardar na memória. “Tentem não se perder. Esses vermezinhos são ligeiros, e não vou esperar os atrasados.”

Hernick ainda pensou em fazer algum questionamento, mas — guiado por um instinto de autopreservação — conteve-se; e Gorak, numa fúria impetuosa, disparou em alta velocidade através de alguns arbustos ásperos. A patrulha, assim como o próprio jovem que os liderava, permaneceram inertes por alguns segundos diante do acontecido. Alguns dos homens buscaram os olhares do comandante, esperando uma ordem.

“Rápido, seus palermas! Sigam aquele pedaço de bosta cinzenta!” ordenou quando voltou a si. Não precisou de mais nenhuma palavra para que todo o grupamento o abandonasse no meio daquela floresta úmida e corressem atrás do caçador. Hernick esporeou sua montaria, que seguiu o rastro deixado pelo grupamento à passos vagarosos pelo terreno difícil.

Espero que essa escória valha mesmo o preço que pagamos pelos seus serviços. Era difícil acreditar que teriam encontrado uma rosa-selvagem. Somente três dias haviam se passado desde que adentraram verdadeiramente na região pantanosa do Bosque Proibido de Navash, onde diziam ser o único lugar ainda capaz de se achar, hoje, um espécime vivo. Hernick pensara que teria de passar meses no meio daquele mato fétido antes que seu pai ordenasse seu retorno à casa e desistisse da ideia daquele casamento. De fato, pensara que nunca iria sequer avistar uma rosa-selvagem, quanto mais capturar uma. Ao mesmo tempo em que isso alimentava um grande orgulho, também era estranho, jamais havia se preparado para a possibilidade daquele casamento realmente acontecer.

 

Seus devaneios foram interrompidos por burburinhos adiante. Não demorou a encontrar o grupamento todo reunido em uma clareira, onde um cheiro doce forte destacava-se de todo o odor nodoso do restante do pântano. Gorak estava enfurecido, farejava o ar intensamente, o focinho retorcendo-se. Deve ter perdido o rastro, pensou e, neste instante, uma onda alívio e decepção palpitaram em seu coração.

“Acampamos aqui esta noite?” Hernick preferiu não repreender diretamente seu guia por mais um fracasso. O meio-orc parecia orgulhoso demais para se preocupar o suficiente com o grupinho fajuto de guardas que o escoltava caso decidisse trucidar um nobre humano — que considerava mimado e fraco — que o humilhara.

“Não! Tem uma rosa perto daqui, tenho certeza! Nunca senti um cheiro  tão forte em toda a minha vida! É como se ela estivesse por todo o lugar.” Gorak ignorava completamente a hierarquia daquela relação

“Tem até o anoitecer.” Pela primeira vez o jovem comandante tratou de mostrar sua autoridade diante do guia. O meio-orc resmungou algum insulto, entretanto, Hernick não o conseguiu escutar. Não por falta de atenção, mas exatamente pelo contrário.

Hernick não conseguia acreditar naquilo que via, não muito adiante, encolhidos nas copas das árvores, três pares de olhos dourados encaravam-no amedrontados em figuras femininas. Tentou falar, dizer alguma coisa, apontar para cima, gritar, gargalhar, sorrir, chorar… mas estava em choque. Nunca antes havia visto algo tão magnífico. Era tudo tão confuso surreal e grotescamente belo que ele não conseguia reagir. Ali, bando de idiotas! Como vocês não estão vendo aquilo? queria dizer, mas tudo o que podia fazer era sorrir debilmente e gargalhar. Gorak ficou confuso com as ações do humano e até pensou em ver o que o aturdira, mas não teve tempo.

O mundo de Hernick girou depois que um vulto multicolorido — surgido sabe lá os deuses de onde — saltou sobre ele, derrubando-o do cavalo. A razão somente lhe voltou à mente quando o ar faltou-lhe nos pulmões. As costas doeram absurdamente quando chocaram-se contra o chão e a cota de malha engaiolara o peito que estufou atrás de ar. Mãos macias e apertadas enrosacaram-se-lhe ao pescoço, sentiu como se dezenas de agulhas rasgassem-lhe a garganta.

A criatura tinha olhos dourados como uma alma deveria o ser, e eles estavam furiosos encarando Hernick. Os guardas assistiam-na sufocar seu senhor sem nada fazerem, como o comandante alguns momentos antes, estavam embasbacados, presos no retrato inimaginável daquilo que se mantinha diante deles. Quando os sentidos de Hernick voltaram, ele pensou em lutar contra o agressor, porém, a simples ideia de macular tamanha beleza parecia um pecado maior que aceitar a morte; e tudo o que conseguiu fazer foi acariciar a face que daquilo que o sufocava. Queria tocá-la, acariciá-la, tê-la, sê-la.

“Parece que temos alguns espinhos aqui!” Garok gargalhava enquanto observava, do topo de sua altura, Hernick asfixiar. A cena parecia dar-lhe um prazer imensurável. “Acordem, bastardos desprezíveis!” O meio-orc finalmente resolveu intervir naquilo tudo. Um chute bem dado na cabeça do ser foi mais que o suficiente.

Uma chuva de pétalas bailou no ar quando Hernick recuperou o fôlego. Ele arrastou-se desorientado para longe da criatura que, agora, encolhia-se de dor no chão. Levou as mãos ao pescoço e percebeu que havia muito sangue. Repuxou um espinho encravado na carne.

“Não se preocupe, molecote, as farpas não penetram fundo na carne.” Gorak também sangrava enquanto dominava sem qualquer dificuldade a rosa-selvagem. Não demorou muito e ela estava de punhos atados e, mesmo assim, tentava soltar-se e avançar em direção a Hernick. “Parece que alguém gostou mesmo de você, molecote!” Gorak tornava a gargalhar. Mais um golpe, dessa vez com o cabo do punhal contra a nuca, foi o suficiente para acalmar de vez a flor rebelde.

Hernick encarou outra vez o ser. Olhos ainda agressivos e dentes trincados em fúria, queria matá-lo, queria fulminá-lo e nada disso parecia fazer sentido para o humano. Não que capturá-lo e leva-lo para a morte certa não fossem motivos suficientes, mas de todos os relatos que havia lido e ouvido a falar sobre, as rosas não eram conhecidas pela agressividade, e prefeririam fugir a lutar. E ainda assim, ali estavam. E, apesar de toda a violência, Hernick não conseguia parar de admirar a figura que o encantava.

Ele — e não haveria dúvidas de que suas feições e anatomia assemelhavam-se bem mais a de um homem — tinha um rosto forte. Uma pele macia que parecia veludo, mas, além dos olhos dourados, aquilo que mais chamava a atenção no espécime eram as pétalas e flores e rosas. Dispersas nos mais variados tons de bege, laranja, creme e vermelho concentravam-se em várias partes de seu corpo… Cabelos, sobrancelhas, barba; não havia um fio de cabelo nele, entretanto, tudo isso era facilmente associado pelos amontoados de pétalas. Não havia qualquer explicação lógica para a atração estonteante que a imagem dele trazia. E, ao mesmo tempo que tudo aquilo se mostrava belo, espinhos espalhados por todo o seu corpo traziam uma natureza selvagem e perigosa a ele.

“Temos que reajustar o preço do produto, molecote.” Gorak outra vez tirava-o do transe que a presença lho trazia.

“Já não acertou o valor com meu pai? Não tenho ordens ou ouro para negociar qualquer oferta extra.”

“Humf… — resmungou irritado — É um macho. Me contrataram pelo preço de uma fêmea.”

Hernick sabia quando estavam tentando tapeá-lo e tinha certeza que uma hora ou outra seu guia iria tentar fazer isso. “Não li nada sobre essa diferenciação de valores no contrato que fez com meu pai… E já recebeu seu ouro! Não pode voltar com sua palavra agora.”

“Pelo preço de uma fêmea! É assim tão difícil de entender, molecote asno?!” Gorak apertou o punhal que carregava em mãos. “E essa diferença de preço existe agora! Eu nunca tinha visto um macho antes. Na realidade, pensei que todas as rosas fossem fêmeas! Se quiser eu devolvo seu ouro... Posso ficar muito mais rico se vender isso aqui para a pessoa certa!”

Hernick recuou amedrontado. “E quanto seria essa diferença?”

O meio-orc retorceu o focinho achatado e espremeu os olhos, não tinha uma resposta pronta e, obviamente, queria extorqui-lo. “O dobro? — ponderou — Não, não... definitivamente o triplo.”

“Isso é um absurdo!”

“É meu preço.” Sorriu malicioso, e o efeito foi mais ameaçador do que o gesto anterior com punhal. “Se quiser eu fico com este e continuamos nossas buscas pela manhã, atrás de uma fêmea para expor no seu casório.”

Talvez isso não seja um problema, pensou consigo ao lembrar da imagem que o hipnotizara momentos antes. Mais uma vez Hernick olhou para cima, e elas continuavam lá... Espantadas e encolhidas.

Deslumbrantes.

“Quieto, maldito!” Gorak uma vez mais tinha que controlar a rosa que se debatia em suas mãos e tentava avançar contra o comandante. Um cheiro forte e violento diluiu-se na atmosfera. Outra vez o humano encarou a criatura, mas agora com mais curiosidade do que fascínio. Viu o próprio reflexo no fundo daqueles olhos, e somente então percebeu o porquê de toda a agressividade.

Estava tentando protegê-las? Era isso? Seria um pai? Um marido? Um irmão?

“Continuamos com as buscas amanhã?” Gorak estava perdendo a paciência, talvez porque seu cativo não parava de se debater em seus braços; as mãos do caçador estavam encharcadas de sangue e infestadas de espinhos.

“Não, amanhã vamos partir.” Hernick continuava a observar a rosa-selvagem. “Não aguento mais um segundo nesse inferno de lugar.”

“E o meu ouro?”

Hernick iria mandá-lo olhar para cima.Tem mais algumas ali, acho que é ouro suficiente para todos nós; mas nesse mundo sempre existiram coisas mais fortes e sombrias que a razão; e todas estas coisas, em todas suas formas, são sempre inexplicáveis. Talvez por isso, o humano respirou fundo aquele aroma que empesteava o ambiente.

Ele ofereceu-se como sacrifício, compreendeu. E oferendas não podiam ser ignoradas, ele sabia disso. O comandante deu as costas a Gorak para montar novamente em seu cavalo.

“Trate com meu pai quando retornarmos. Eu não passo mais um dia aqui, e ele não vai querer bancar outra expedição pra isso… Se ele não quiser pagar, você fica com a rosa do mesmo jeito”. O humano ignorou a ilha de músculos cinzenta e fitou os olhos dourados que o fulminavam, ainda estavam inquietos, fúria e medo. Não fazia a menor ideia do tom que tomava aquela conversa.

“Me parece bastante justo!” O caçador gargalhou.


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