O céu noturno seria um completo breu, se não iluminado pelas diversas estrelas e a grande lua cheia. De cima do telhado, onde estavam, Lance fechou os olhos e aproveitou a brisa que varria o calor do dia quente para longe, enchendo-lhe os pulmões com um ar renovado. Apontou para uma das constelações: Orion, o caçador que nunca descansa.

— Quando eu era menor — começou, chamando a atenção de Keith que observava, um tanto quanto maravilhado, o céu acima — Minha vó me ensinou algumas dessas. Ela me dizia as histórias delas na versão grega e na indígena, mas não me lembro muito bem. Alguns nomes ficaram guardados e algumas histórias, mas a maioria eu não faço ideia.

— Mesmo? E qual delas você sabe?

— É, mesmo. Lembro-me da Órion. Uma vez a deusa Ártemis foi banhar-se nas águas de um rio sagrado, e Órion infelizmente viu ela. Quando ela descobriu, ficou furiosa, claro, ela era uma deusa donzela, sabe?

— ...Sei, eu acho.

— Bem, eu não me lembro direito como exatamente ele entrou pro grupo de caçadoras dela, mas era sob a promessa de que ele nunca se apaixonaria por Ártemis. E aconteceu que ela se apaixonou. Se não me engano, por conta do irmão, Apolo. Ele desafiou Ártemis para uma disputa de pontaria, arco e flecha, essas coisas. Apontou pra um homem. Ártemis acertou. E o alvo dela foi Órion, que fugia de um escorpião gigante enviado por Gaia e- — Ele ficou em silêncio. Keith não parecia estar prestando atenção. — Tá que não é um dos melhores mitos, mas ocê podia pelo menos fingir que não tá me ignorando completamente.

— Ahn? Bem, você começou a falar e falar, não pensei que fosse notar. Eu só...Me distrai com a Lua. É realmente um céu muito bonito. Mas não é também como e eu estivesse admitindo que é melhor que o meu céu.

— Ah, ocê diz a Jaci? Eu acho ela muito bonita mesmo, em qualquer lugar.

— Jaci? — pergunta Keith, parecendo confuso.

— É, o nome da deusa da Lua na versão indígena. — Explica ele.

— Ártemis, Jaci… Tô começando é a achar que não tem nada de sua avó te contar essas histórias, não. Você que é apaixonado pela Lua.

— Ara, ocê fique quieto. Não tem nada de paixão pela Lua, não.

— É… Eu sei um pouco de mitologia celta, se te serve de consolo.

Ficaram em silêncio por minutos, esperando o tempo passar e também a vontade de voltar para o quarto. O ambiente tranquilo da noite silenciosa era calmante, cortado apenas pelo som de alguns grilos. Lance não podia deixar de imaginar se aquele local era agradável para Keith. Não era exatamente o tipo de lugar que ele parecia habituado, levando em conta suas ações quanto a falta de internet ou mesmo os horários que todos iam dormir.

Constava 22:14 minutos em seu relógio de pulso de correia azul. Ele gostava e odiava o silêncio. Queria falar mais com Keith, talvez perguntar sobre a vida na cidade grande ou mesmo alguma coisa boba. Olhou ao redor, procurando alguma coisa para comentar sobre.

— Então, ahn… Quer ir amanhã nadar no rio? Tem um aqui perto, dá até pra ir a pé, e eu poderia mostrar um pouco da cidade. — Soltou, ansioso pela resposta do recém-conhecido.

— Rio? Pode ser. Mas eu nem sei nadar.

— Nossa, sério? E ocê faz o que no tempo livre?

— Ah… Não sei. Eu ainda não posso andar de moto então ando de bicicleta pelas ruas, mesmo que elas sejam estreitas demais ou cheias de buracos. — Deu de ombros, parecendo um tanto desconfortável em continuar na conversa por muito tempo. Lance queria saber mais.

— Bicicleta é uma boa ideia. Eu tenho uma azul, meio velha, mas dá pra usar. É só uma, então a gente vai ter que revezar na garupa ou coisa assim. — respondeu — Aposto que mesmo que eu pilote da garupa minha bicicleta eu ainda ganho de ocê que é lerdo desse jeito até pra falar. — Alfinetou, apontando pra Keith. — Fala tão devagar que eu não quero nem ver correndo, deve parecer uma lesma.

— Ei, fique quieto. Não sou eu quem fala por horas e horas sobre a Lua e se enrola pra explicar como Órion foi atingido pela flecha de Ártemis e- Quer saber, esquece.

Lance assentiu, pondo fim na conversa. Claro que ele gostaria de continuar falando, mas o sono o invadia a cada dois minutos. Sentiu-se frustrado, queria conversar, não ficar quieto remoendo pensamentos e voltando pro discurso horrível de seu pai durante o jantar, mais cedo. A angústia queria se infiltrar em sua mente, e ele estava cansado de deixar isso acontecer.

— Aposto que eu vou mais rápido que ocê na magrela. — Tentou, de novo.

— Magrela é bicicleta, né? Se é assim, a gente podia apostar em alguma coisa de verdade, tipo um sorvete ou sei lá. Não vá reclamar quando eu ganhar, estou avisando — Respondeu Keith, entrando no modo competitivo.

— Magrela, bike, bicicleta, tudo a mesma coisa! — Respondeu, dando de ombros. — É melhor arranjar dinheiro, garoto da cidade, porque eu não vou economizar montando um pote cheio de coisa amanhã lá na Sol de Mel.

— Sol de mel?

— É o nome da sorveteria. Às vezes esqueço que ocê não é daqui, sabe? É que acostumei a todo mundo saber dos lugares que tô falando e deu nisso.

— Terá que desacostumar então, porque não conheço nada daqui e mencionar lugares aleatórios não vai fazer nada além de me confundir.

— Ah, cala a boca. — exclamou Lance, segurando o riso.

Não ficaram ali por muito tempo mais. Apenas voltaram para dentro da pensão e deitaram-se em suas respectivas camas.

 Lance adormeceu pouco depois de deitar-se, mesmo estando com a ansiedade estourando pela perspectiva de uma competição no dia seguinte. Keith, pelo contrário, demorou a dormir. Ouvia um zumbido em seu cérebro, a falta do barulho tão comum à ele de carros, buzinas e o trânsito incansável do centro da cidade, onde costumava morar, o assombrava. Ele havia perdido aquilo. Mas era o que era: teria que acostumar-se à nova realidade do som de grilos e silêncio perturbador.