A Valsa de Vênus escrita por Sarah


Capítulo 3
Capítulo 03




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Doze anos.

Adaptar-se à vida na Curva do Vento foi surpreendentemente fácil; especialmente quando os dias passaram sem notícias de revolta, e Rozênia parou de temer que os corvos trouxessem o aviso de que sua mãe tinha morrido.

Em vez disso, a cada volta de lua ela recebia cartas amenas de Leonora, que não contavam muito sobre a situação das Filhas de Vênus, mas ao menos davam a entender que as coisas prosseguiam com certa naturalidade.

Assim que se recuperara, fora movida da ala dedicada aos hóspedes para um aposento contíguo ao quarto de Eliza, como cabia a uma dama de família menor que servia sua Senhora. O gesto tinha sido uma honraria, considerando que ela não era origem nobre — embora Leonora e Lady Lorena compartilhassem o mesmo sangue, sua mãe tinha abandonado qualquer laço de parentesco quando se tornara uma Filha de Vênus. Ainda assim, Rozênia teria sentido seu orgulho ferido por ter sido colocada naquela posição servil se Eliza fosse diferente.

Entre suas obrigações, devia acordar a menina, escolher suas roupas e ajudá-la a se vestir, pentear seus cabelos e preparar seu banho ao fim do dia, porém Eliza costumava retribuir-lhe os aqueles favores, como se fazê-lo fosse algo natural, e na maioria dos dias ela também trançava o seu cabelo e apertava seu espartilho. Essa reciprocidade tornava as coisas mais parecidas como eram na casa das Filhas de Vênus, onde cabia a uma irmã ajudar a outra em suas necessidades.

As duas compartilhavam as aulas de letras e de música, bem como as lições de costura com a ama de Eliza; além disso, Marcella dividia seu tempo ensiando-lhes botânica, história e geografia. Rozênia sentava-se junto com as senhoritas de baixa nobreza durante os banquetes que Lord Bernard promovia, mas aqueles eram os únicos momentos em que se via numa posição realmente diferente de Eliza; de qualquer forma, não achava aquilo de todo o mal, pois os fundos do salão sempre eram mais animados. Sob qualquer outro aspecto as duas tinham se arranjado em uma relação muito mais de amizade do que de subserviência.

Ainda assim, por causa das tarefas que eram esperadas de uma dama de companhia, em dois anos na Curva do Vento Rozênia poderia contar quantas vezes Eliza acordara primeiro que ela. Naquela manhã, porém, despertou sentindo seu colchão afundar e os dedos de Eliza escovando seu cabelo com delicadeza.

Uma claridade pálida entrava pela janela e a única coisa que pôde vislumbrar do céu foi uma faixa rosa.

— Ainda é cedo — falou para a outra, a voz embargada de sono.

— Mas eu tenho uma surpresa para você! — Eliza contestou em um tom animado, e Rozênia duvidou que ela sequer tivesse dormido aquela noite. — Anda, você precisa levantar!

Preguiçosamente, Rozênia afastou as cobertas. Eliza tinha se livrado da camisola por conta própria e, embora não tivesse conseguido fazer os laços sozinha, colocara um vestido de algodão bruto, que ela normalmente usava uqando Marcella as levava para as estufas durante as lições de botânica. Reparou que seu vestido também já estava pendurado na cabeceira da cama.

— Onde vamos?

— Você já vai ver! — Eliza respondeu, levantando-se e puxando-a junto.

A animação que Eliza vinha contendo nos últimos dias de repente parecia escapar pelas bordas, e Rozênia sorriu.

— O que você aprontou?

— Nada ainda, mas você vai gostar! — ela prometeu entre risinhos, girando em volta de Rozênia.

Insistir não iria fazer diferença, então Rozênia se concentrou em trocar de roupa, ajudando Eliza com os laços em seguida. Mal teve tempo de lavar o rosto e calçar as botas e viu-se empurrada porta afora.

Ao chegar no corredor, no entanto, a animação de Eliza tornou-se mais silenciosa.

— A ama vai nos esfolar quando descobrir que não estamos no quarto, não é? — Rozênia intuiu.

Eliza deu de ombros.

— Papai me deu autorização. — ela disse, mas mesmo assim continuou andando na ponta dos pés.

Atravessaram o Castelo e sairam para o pátio pelas cozinhas. O cheiro de pão recém saído do forno, leite fervido e manteiga era enebriante, porém, apesar de um gemido de Rozênia, Eliza não parou.

O lugar onde os garotos treinavam luta de espadas e arco e flecha ainda estava vazio, e as duas o cruzaram com facilidade em direção à Torre do Viveiro. Rozênia costumava ir ali com regularidade para mandar corvos à sua mãe, mas não podia imaginar a razão de Eliza estar conduzindo-as até aquela torre.

Uma mistura de piado, crocitar e arrulho abafou o passo das duas conforme subiam. O primeiro pavimento era destinado aos pombos, que levavam as cartas em distâncias pequenas, acima ficavam as gaiolas dos corvos. Por um instante Rozênia achou que parariam ali, mas Eliza a incitou a continuar subindo, dando palmadinhas nas suas costas. A menina estava começando a ficar ofegante, as faces coradas por causa das escadas.

Deram de cara com uma porta fechada ao chegarem no último nível. Eliza não se intimidou, no entanto, tirando uma chave das vestes e fazendo as dobradiças girarem em seguida, revelando os viveiros das aves destinadas à falcoaria.  

O vento nunca parava de uivar naquele canto do mundo, mas lá em cima o zunido parecia agourento, como se o vento estivesse o tempo todo tentando derrubar a torre. Rozênia só estivera naquele aposento algumas vezes, quando Lorde Bernard permitira que ela e Eliza o acompanhassem em suas caçadas. Um casal de águias do mar as seguiu com os olhos quando as duas atravessaram o lugar. Búteos e falcões estavam dispostos em diferentes viveiros, as cabeças ainda debaixo das asas.

— O que estamos fazendo aqui? — Rozênia perguntou baixinho, para não perturbar as aves.

Porém, em vez de responder, Eliza sorriu e apressou o passo, sumindo entre os viveiros. Rozênia aguardou, plantada no meio da torre, até que, alguns minutos depois, Eliza reapareceu. Ela trazia uma gaiola nas mãos, obviamente muito grande e pesada para o seu tamanho.

Rozênia se adiantou para ajudá-la.

— Está tudo bem — Eliza reclamou, mas ela já tinha tomado uma parte do peso para si. Juntas, carregaram a gaiola até um banco abaixo de uma das janelas.

O que quer que estivesse lá dentro, grunhiu em protesto.

Eliza não tinha feito um trabalho muito bom com suas tranças e uma parte do seu cabelo se soltara pelo esforço de subir as escadas e carregar a gaiola, mas quando ela sorriu de canto, ciente de que estava cometendo uma travessura, Rozênia achou que aquela aparência ficava melhor nela do que os penteados repuxados que as duas eram obrigadas a usar. Com cuidado, a menina removeu a capa de tecido azul que cobria a gaiola.

Assim que ela fez isso um gavião se sacudiu lá dentro, dando um pio profundo. As penas eram rajadas de castanho e creme e o bico formava uma curvatura afiada. Rozênia teve ganas de acariciá-lo, mas se tentasse fazer isso provavelmente acabaria sem um pedaço do dedo.

— É um macho— Eliza informou.

— Ele é lindo — Rozênia falou com reverência.

O gavião eriçou as penas. Não era o tipo de bicho forjado para voos altos, porém seu tamanho parecia perfeito para se encaixar no braço de uma dama, e podia jurar que ele seria incrível nas caçadas.

— Também é seu — ela disse, e Rozênia percebeu que Eliza estivera esperando por aquele instante durante toda a semana.

A menina torceu os dedos das mãos e prendeu o fôlego, ansiosa por uma reação. Rozênia a fitou por um segundo, e então encarou os olhos cor de âmbar do gavião. Era uma ave de pequeno porte, mas imponente, destinada à falcoaria e criada para acompanhar uma donzela bem nascida na caça.

— Eu não posso aceitar. Seu pai com certeza o criou para você...

— Sim — Eliza a interrompeu, um tanto exasperada por Rozênia não estar tão empolgada quanto ela tinha esperado. — E eu disse a ele que queria dar o gavião para você, e ele não se opôs.

Devagar, Rozênia se atreveu a tocar na alça da gaiola. A animação de Eliza tinha cedido um pouco, dando lugar a uma expressão resoluta. Obviamente ela não estava disposta a ser contestada sobre aquilo.

— Você não precisa fazer isso — Rozênia falou mesmo assim, e a outra balançou os ombros.

— Mas eu quero! Você já me viu montar em um cavalo, Rozênia, sabe que eu só consigo o suficiente para não me envergonhar. Nunca vou ser uma boa caçadora, mas você é! — ela disse e então hesitou, olhando para baixo em vez de fitar Rozênia. — Também não gosto muito da sensação de caçar. Prefiro não matar a caça.

Diante da declaração, Rozênia firmou os dedos sobre a gaiola. Percebendo o movimento, o gavião sacudiu as asas.

— Vou cuidar bem dele — disse, sorrindo, e finalmente Eliza pareceu satisfeita.

— Sei que vai! — ela falou. — Ele está apenas meio adestrado, você precisa terminar o treinamento para que ele a reconheça como sua dona, mas o Mestre das Aves disse que você tem jeito para isso e que ele vai ajudar.

A felicidade de Eliza era quase pálpavel, e Rozênia sentiu algo quente preencher seu peito.

— Você é estranha — disse sem pensar, mas declaração não abalou a outra.

— Por quê? — ela perguntou, displicente, girando o vestido e sentando-se no banco, deixando uma distância da gaiola. Rozênia também sentou ao lado dela.

— Você está feliz por me dar algo que é seu, algo importante.

— Ora! É você quem foi criada com as Filhas de Vênus... Achei que fosse normal compartilhar.

— É diferente! — Rozênia contestou, sacudindo a cabeça. — Quando eu vim para cá achei que iria servir você, só isso.

— Você sabe que não a vejo como minha serva, não é? — ela questionou com uma sobrancelha erguida. — Além do mais, fazer isso seria um grande desperdicio — acrescentou com um sorriso de lado.

Oh, Rozênia sempre se achara um tanto mais forte e sábia do que Eliza, que nunca tinha dado um passo para além da Curva do Vento, ofegava ao subir escadas e não sabia montar um cavalo direito, mas naquele instante percebeu que havia sido completamente superada.

Em um ímpeto, inclinou-se para frente e beijou a outra na bochecha.

O gesto durou um segundo a mais do que o estritamente necessário. Eliza permaneceu muito quieta, mas Rozênia pôde sentir o calor da menina sobre os lábios. Quando se afastou, ela estava mais corada do que nunca.

— O que foi isso? — Eliza perguntou em voz baixa, e foi a vez de Rozênia dar de ombros.

— Obrigada — falou no lugar de realmente responder.

Eliza abriu a boca para dizer alguma coisa, mas se conteve ao vê-la sorrindo. Em vez de falar, ela arrastou-se para mais perto, de forma que seus ombros se tocavam. A quentura era agradável, e antes que Rozênia percebesse as duas enveredaram por uma acirrada discussão sobre o nome que o gavião ganharia.

Embora tivesse soado sinistro antes, naquele instante, misturado à voz de Eliza, o barulho do vento parecia ecoar como música.  


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