A Valsa de Vênus escrita por Sarah


Capítulo 1
Capítulo 01




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Dez anos.

Eliza se colocou na ponta dos pés descalços, debruçando-se sobre o parapeito da sacada naquele ângulo preciso que a permitia ver o pátio lá embaixo. Sua ama fez uma careta de desgosto, mas não disse nenhuma reprimenda, limitando-se a tamborilar os dedos na pedra. Apesar da cara emburrada, Eliza tinha consciência de que Brígida só permitira que ela estivesse ali porque também estava curiosa.

Ambas se sobressaltaram quando os portões foram abertos e as cornetas começaram a tocar. No pátio, seu pai, o Senhor da Curva do Vento, empertigou-se, aguardando os visitantes. Eliza apurou os ouvidos, esperando ouvir o trote de cavalos por cima das cornetas, mas não conseguiu escutar nada. No momento em que o último acorde soou, a comitiva das Filhas de Vênus despontou através dos portões.

A menina reteu o fôlego em antecipação, mas o que viu não foi exatamente o que estivera imaginando. Os destacamentos que seu pai costumava conduzir eram grandes e barulhentos, dúzias de homens retinindo em suas armaduras, cavalos e carroças para levar os mantimentos; além do mais, as Filhas eram sempre imponentes nas histórias que ouvia. Eliza esperava ver algumas dezenas de moças cavalgando em corcéis elegantes, os cabelos compridos escapando por baixo dos elmos, trajando armaduras repletas de ornamentos e portando espadas finas; mas, em vez disso, o sequito que chegou ao pátio era composto por apenas sete mulheres, vestindo armaduras desgastadas de couro fervido.  

Se o seu pai também esperava algo diferente, não demonstrou. Ele sorriu e seu manto azul deslizou pelo pátio quando ele se aproximou para cumprimentar uma das mulheres, que, pela posição em que chegara, à frente da comitivia, parecia ser a líder. Não havia nada de impressionante na aparência dela. A não ser pela desenvoltura com que ela retribuiu as cortesias tradicionais, não destoava em nada das senhoras do vilarejo.

As outras mulheres tampouco pareciam muito diferentes das servas que trabalhavam nas cozinhas, a não ser por uma figura pequena e encapuzada, cujas feições Eliza não conseguiu discernir, e de uma senhora aparentava ter ao menos o dobro da idade das outras. Um dos pajens se aproximou para ajudar a velha a descer do cavalo.

— Putas. — Eliza ouviu sua ama praguejar, em seguida Brígida cuspiu no chão, quase aos seus pés.

Certamente Eliza estava um pouco decepcionada, esperava ver as moças das histórias, aquelas donzelas que carregavam espadas, iam para guerra e usavam sua beleza como arma para aturdir os homens nas batalhas — não um punhado de mulheres comuns —, mas elas também não pareciam más.

— Por quê? — questionou.

— Não é direito uma mulher viver sem um homem.

Eliza estava prestes a dizer que a ama também nunca havia se casado, mas se calou a tempo de evitar um puxão de orelha.

— Pensei que elas seriam mais novas — comentou, em vez disso.

— Nahh. Todas já corrompidas.

— Acha que papai vai deixar eu conversar com elas? Gostaria de ouvir histórias...

Brígida bufou em desaprovação.  

— Nada do que essas mulheres possam dizer será bom para os seus ouvidos. 

Eliza estufou as bochechas, amargurada, enquanto traçava um plano para se livrar da vigilância estrita da ama e se aproximar de alguma das Filhas de Vênus. Ao menos era verdade que elas levavam espadas...

A ama estalou a língua, interrompendo seus pensamentos.

— Acha que não sei o que está tramando? Quando não tira os olhos de todos aqueles livros? Não interessa o que você lê neles, essas são mulheres torpes! Qual o dever de uma mulher? — ela exigiu, abaixando-se até ficar na mesma altura que a menina.

— Cuidar da família e dar filhos ao seu Senhor — Eliza repetiu a lição ensinada incessantemente.

— Exatamente. Ter filhos, gerar vida. Porém, em vez de dar à luz, essas mulheres se dedicam à morte, desvirtuam as ordens divinas. Fique longe delas.

Com seus dez anos, Eliza não soube como rebater aquilo. Assentiu, fazendo uma mesura como cabia a uma menina de boa educação. O gesto pareceu deixar a ama satisfeita.

Lá embaixo, as Filhas de Vênus começavam a ser conduzidas para dentro do Castelo. A ama notou isso também.

— Vamos, vamos, você deveria estar na sua aula de costura, sua mãe vai ficar brava se souber que eu deixei você assistir à chegada dessas mulheres.

Eliza sentiu os dedos da senhora, finos como garras, prenderem seus ombros, guiando-a para longe da sacada com uma força irresistível.   

.

.

.

As costas de Rozênia doíam, o peito infantil comprimido dentro de um corset. Haviam conduzido ela e sua mãe a um quarto de hospedes, onde as duas tinham se banhado e trocado as roupas de viagem. Leonora apenas vestira outra combinação do traje severo, composto por calças de tecido rustico, botas de couro até os joelhos e uma bata de linho, que era característico das Filhas de Vênus. Ela, porém, fora obrigada a usar um vestido. Podia contar nos dedos as vezes em que tivera que calçar sapatos com fivelas, e aquela não era uma das suas sensações favoritas no mundo. Mas estava para entrar no salão de um Senhor, um nobre, e, se as coisas acontecessem como sua mãe esperava, existiriam muitos outros vestidos pela frente.

Uma serva as guiou pelos corredores do Castelo e as deixou junto a uma enorme porta de mogno, enquanto anunciava a presença das duas. Durante aquele curto momento em que foram deixadas sozinhas, Lorena alizou seu cabelo, certificando-se de que os fios continuavam no lugar.

— Lembre-se do que eu ensinei. Não fale se não dirigirem a palavra a você e porte-se com respeito.

Rozênia aquiesceu. Leonora passara toda a viagem até ali reforçando seu cartel de mesuras e cumprimentos. Durante metade do tempo Rozênia devaneara sobre ignorar tudo o que ela dizia e simplesmente se comportar da pior forma possível, para que eles não a quisessem sobre o seu teto nem por um segundo; mas naquele instante, às portas do Pequeno Salão da Curva do Vento, sabia que não teria coragem de decepcionar sua mãe.  

Finalmente foram chamadas ao aposento. Leonora entrou primeiro, e Rozênia a seguiu, esforçando-se para manter a coluna reta e equilibrar-se nos sapatos apertados.

O recinto era pequeno e quase desnudo de móveis, a não ser por uma mesa de seis lugares no meio do salão, onde repousava um prato de sal, uma jarra e uma única taça. O pé-direito era muito alto, com janelas além do alcance de qualquer homem e, se batesse nas paredes, Rozênia podia apostar que seriam ocas, destinadas a abafar o som. Quando as portas de mogno eram fechadas, não havia muito que alguém pudesse fazer para espiar o que acontecia lá dentro.

Ao colocarem-se à frente do Senhor e da Senhora do Castelo, sua mãe fez um meio cortejo, sem se curvar, fazendo apenas um aceno respeitoso enquanto mantinha os olhos fixos no Senhor. Rozênia, por sua vez, ainda não era uma Filha de Vênus, e a ela cabia o cumprimento completo. Assim, dobrou o joelho esquerdo, inclinando a face para os Senhores e dizendo as palavras tradicionais para aquela região:

— Que os ventos tragam bons presságios.

— E que a brisa carregue seus temores, minha filha — o Senhor respondeu com um sorriso gentil.

Em seguida ele se levantou, aproximando-se de Leonora e a abraçando como a uma irmã. Rozênia nunca havia visto um homem se aproximar da sua mãe com tanta desenvoltura, nem esperava que ela correspondesse àquela demonstração de afeto como o fez, com um sorriso, retribuindo o abraço.

— Parece forte como sempre, Leonora! Dez anos que não nos vemos e aposto que você ainda acabaria comigo em uma briga.

De fato, sua mãe ainda não alcançara a meia idade e parecia forte, alta e esquia, o corpo feito de músculos e rigidez. Enquanto isso, o Senhor da Curva do Vento não media mais do que um metro e sessenta e ostentava uma barriga que começava a ficar protuberante. Já vira Leonora lutar com homens muito mais robustos e vencer sem esforço, mas o fato de um Senhor admitir que ela poderia vencê-lo era algo novo.

— Só se eu conseguisse passar por Lorena primeiro, Lorde Bernard, e você sabe que nunca fui boa nisso — Leonora devolveu o cumprimento, fazendo um aceno em direção à Senhora.

Perante a menção do seu nome, a Lady também se aproximou, tomando o lugar do marido e abraçando Leonora, para depois plantar um beijo em cada uma de suas bochechas, em uma cortesia reservada a parentes próximos.

— É bom ver você, prima — Lady Lorena declarou com ternura.

Daquela forma, as faces muito perto uma da outra, Rozênia pôde perceber a semelhança entre as duas mulheres mesmo através da delicadeza de Lorena e da rechonchudez de seu rosto. Rozênia sabia que as duas eram relacionadas por sangue e que tinham sido criadas uma com a outra. Porém, quando uma moça se juntava às Filhas de Vênus era incentivada a deixar os outros laços familiares para trás, e Rozênia tinha ouvido apenas histórias vagas sobre a juventude de sua mãe.

Ao se desvencilhar de Leonora, Lady Lorena dedicou um olhar de carinho a Rozênia, deslizando os dedos pelo contorno do seu queixo.

— Você parece sua mãe quando jovem — ela declarou em um tom elogioso, que fez Rozênia sorrir, afastando-se em seguida. — Sentem-se — a Lady convidou, tomando seu assento e apontando para os lugares de honra à frente do Senhor e da Senhora.

Rozênia empertigou-se. Era uma honraria que a deixassem sentar com eles como uma igual, sendo que ainda era uma criança.

Quando se sentaram, Lorde Bernard tomou a jarra sobre a mesa e serviu a taça. Em seguida ele despejou uma colher de sal dentro do recipiente e tomou um gole. Lady Lorena também bebeu, passando a caneca para sua mãe, que sorveu um longo gole. Quando foi sua vez, Rozênia sentiu o amargor da cerveja e o gosto de sal queimarem sua língua, mas bebeu obedientemente. Sua mãe e Lorde Bernard sorriram com aprovação quando ela pousou o copo de volta na mesa.

— Vocês tomaram minha bebida e compartilharam meu sal, têm as honras do meu Castelo — Lorde Bernard declarou. — Que notícias você trás do norte?

Rozênia tinha tido educação suficiente para saber que aquela era uma pergunta padrão, que esperava deitar fora as questões políticas antes de permitir que os presentes se colocassem completamente à vontade uns com os outros. Era naquele ponto que saberiam se realmente seriam bem-vidas ali ou não.

— Infelizmente os ventos que estão soprando de lá não estão trazendo bons presságios.

A amistosidade de Lord Bernard deu lugar a uma expressão cansada e ele pareceu muito sério, recostando-se melhor na cadeira e demonstrando atenção.

— Temos conhecimento sobre os rumores de que haverá guerra. Gostaria que os nobres do conselho tivessem impedido que o sobrinho do Rei Leon assumisse, ao invés de deixarem Ronan tomar o poder apenas para lançarem o reino em batalhas seis anos depois por causa disso.

— Não é só um jogo político. Auriga e Antares voltaram a vender escravos depois de trezentos anos, e contam que rio que corta Capella correu vermelho por sete dias depois do massacre que houve na região. Gostaria que os deuses nos abençoacem com a guerra, é algo que os homens entendem, algo para que fui treinada, mas acho que tudo o que conseguiremos serão levantes. O rei se tornou forte demais, as Filhas de Vênus vêm desmoronando sob o reinado, e depois da carnificina em Capella os Senhores têm medo de desafiá-lo.

O rosto de Lord Bernard se tornou mais vermelho diante dessas palavras.

— Não concordo com o modo como o Rei vem fazendo as coisas, mas os Castelos do Sul estão presos pelo Pacto, nós nos comprometemos a não atacar a Coroa.  

             O que significava que não iriam se envolver até ser tarde demais, mas também que o aperto de ferro de Sua Majestade demoraria mais para chegar até as terras do Sul. Era por isso que sua mãe estava ali. 

— É verdade que o Rei...? — Antes que Lady Lorena pudesse terminar a pergunta, Leonora fez um aceno afirmativo.

— Dizem que ele não pode ser morto, e eu acredito. Pessoas em quem confio tentaram o regicídio, mas o sangue dele simplesmente não verte.

O Senhor e a Senhora trocaram um breve olhar. Mesmo em salas como aquela, falar sobre regicídio com tanta desenvoltura como Leonora fazia causava um frio na espinha.

— O que você espera de mim? — A pergunta foi feita em um tom de suspiro, e Rozênia percebeu que, no fundo, aquela era a verdadeira questão que preocupava o Lorde. — Não serei conhecido como o perjuro que abandonou o Pacto, e o auxílio que eu poderia oferecer às Filhas de Vênus...

— Não há nada que você possa fazer por nós — Leonora o interrompeu. — Os nobres nunca apreciaram muito o fato de sermos uma alternativa para as mulheres que não desejam se casar e seguir o caminho tradicional, apesar de aprovarem nossos serviços com mercenárias. Porém agora nos contratar é desafiar a coroa, e não valemos o preço. No último virar de lua Ronan proibiu que qualquer mulher portasse uma espada. Não acho provável que nossa irmandade dure mais uma geração.

Rozênia tinha conhecimento do desgosto do rei pelas Filhas de Vênus, mas até então sua mãe tinha feito a ameaça parecer realidade distante. De repente se deu conta de que Leonora apenas não queria assustá-la.

— Então? — Lorde Bernard questionou com cuidado, uma sobrancelha levantada.

Rozênia apertou os punhos enquanto Leonora fazia um aceno em sua direção.

— Minha filha ainda é muito nova para fazer os votos e se tornar uma Filha de Vênus. E eu tampouco gostaria que ela assumisse esse risco, considerando os tempos que estamos vivendo — ela declarou, e Lorde Bernard assentiu. — Venho pedir para que vocês a tomem sob a proteção do seu Castelo.

— Eu assumiria o risco! — Rozênia deixou escapar entredentes, ganhando um olhar de reprovação de sua mãe.

Por sua vez, Lady Lorena sorriu.

— Tenho certeza que sim — ela concedeu com gentileza, antes de se voltar para Leonora.  — E suponho que sua mãe finalmente encontrou vingança pelo que você a fez passar quando decidiu se juntar às Filhas de Vênus — disse com um sorriso.

A contragosto, Leonora também se permitiu um ligeiro sorriso.

— Acho que sim — ela concedeu.

Lady Lorena apertou ligeiramente a mão do seu marido, para, então, assentir.

— Será um prazer ter Rozênia em nossa casa, se ela nos conceder a honra.

Rozênia sentiu o afago de sua mãe sob suas costas, carinhoso e imperativo. Oh, desde que tinham deixado a irmandade para fazer aquela viagem ela sabia que não haveria escapatória deste momento.

—A honra é toda minha, Lady — falou conforme o devido

— Nossa filha mais nova deve ter a mesma idade de Rozênia, elas serão boas companheiras — Lorde Bernard falou, acrescentando sua aprovação à de Lady Lorena, e Leonora suspirou de alivio ao seu lado. — Minha filha mais velha se casou há poucas luas, e meus meninos estão sendo treinados em Altair, Eliza vai apreciar ter uma amiga.

Ao ouvir aquelas palavras, Leonora levantou, para então se curvar perante os senhores, sua testa quase tocando a mesa. Em nenhum lugar do reino podia-se exigir tal cumprimento de uma Filha de Vênus, e Rozênia jamais tinha visto alguma delas prestar esse tipo de agradecimento. Sua boca se entreabriu de surpresa.

— Mãe? — deixou escapar em um sussurro assustado, temendo que algo estivesse errado.

No entanto a voz de Leonora pareceu muito firme quando ela falou:

— Agradeço o favor que me prestam.

Lady Lorena, aparentemente, surpreendeu-se tanto quanto Rozênia. A senhora ergueu-se e tocou os ombros de sua mãe.

— Claro que a acolheríamos. Você também pode ficar aqui se quiser, ninguém a julgará por isso.

Pelo canto do olho Rozênia percebeu a postura de Lorde Bernard tornar-se mais dura diante da oferta de sua esposa. Abrigar uma criança era uma coisa, mas certamente não seria bem visto acolher uma das líderes das Filha de Vênus quando a Coroa se opunha a elas.

No entanto aquele não era um problema com que o Lorde precisaria se preocupar, Rozênia considerou, uma onda de amargor fechando sua garganta. Sua mãe nunca aceitaria deixar as Filhas de Vênus.

De fato, Leonora negou a oferta com gentileza, voltando a se incorporar e devolvendo o afago de Lady Lorena. Ela aproveitou a deixa para fazer outros pedidos, porém. Lorde Bernard não poderia casar Rozênia com nenhum homem contra sua vontade, e Marcella, uma das Filhas de Vênus, também ficaria no Castelo, a fim de auxiliar em sua educação, prestando o mesmo serviço à Lady Eliza. Se Lorde Bernard percebeu que aquele arranjo era menos uma forma de complementar a educação das meninas do que de prover um lugar seguro para anciã residir, não fez nenhum comentário.

Antes que percebesse o assunto dos adultos voltou para as questões de estado, e Rozênia se deu conta de que tudo em relação ao seu destino havia sido resolvido. Apesar de visto sua mãe se curvar pela primeira vez na vida, tudo parecera muito simples e rápido.

Após um tempo, quando Lorde Bernard ordenou que a comida fosse posta, Rozênia se serviu de uma enorme quantidade de carne cozida com cebolas, engolindo tudo com a ajuda de grandes goles de cerveja, apenas para vomitar tudo alguns instantes depois, seu estômago dando voltas de puro nervosismo.


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