Time Web escrita por Mabée


Capítulo 13
Capítulo 13 - Rosas




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               — Não, inaceitável — a garota revirou os olhos e jogou a cabeça contra o travesseiro macio. — Você jamais pode dizer que matemática é melhor que as outras matérias.

Peter girou seu corpo enquanto batucava a caneta sobre o caderno, focado em não errar a resposta. Com uma sobrancelha arqueada e direcionada para a garota, ele bufou, erguendo uma mecha com o sopro.

               — Você só fala isso porque inglês é sua matéria favorita — ele esticou as pernas para poder empurrá-la levemente. — O fato é que não tem lógica. Matemática é lógica, só uma resposta, sem filosofias.

               — Não posso fazer nada se você não possui a capacidade do pensamento, Parker — Peony mordeu a ponta de seu lápis e soltou uma curta risada.

               — Mas agora, um papo sério — disse Peter ao ajeitar-se na cama, de modo a deixar seus olhos na mesma linha da jovem —, já que você consegue lutar tão bem e tudo mais, porque você não ajuda as pessoas no dia a dia?

               — Como uma super-heroína, você diz? — A jovem franziu o cenho com um sorriso leve pousando sobre os lábios, levando uma das mãos a boca para que pudesse mordiscar as pontas de suas unhas.

               — Não uma super-heroína, mas… como uma guardiã. Uma pessoa legal.

               — Me sinto ofendida, Parker.

O jovem pareceu repetir sua frase na mente, pois logo seus olhos se arregalaram e ele prensou os lábios juntos, a ponto de que perdessem a coloração rosada para uma branca de tanta força.

               — N-Não que você não seja legal — gaguejou ele, agora desviando os olhos da morena. — Porque eu acho v-você legal e tudo isso, mas…

               — Eu entendi, Peter — a jovem abriu um curto sorriso. — Só não acho válido. E eu não luto tão bem assim.

Mentira, obviamente.

O garoto deixou um longo suspiro escapar pelos lábios e ajeitou-se no pequeno espaço que sobrara na cama, tendo todo o restante ocupado pela jovem que ali se deitava de bruços, encarando-o por baixo com os olhos de esmeralda.

A verdade era que Peony nunca havia pensado em usar suas habilidades para os outros. Qual seria o sentido, afinal? Ela teria de salvar outros adolescentes que sofressem bullying ou ajudar pessoas que estivessem sendo roubadas? À que custo? O que ela ganharia com isso? Perdida nos pensamentos, a jovem passou a variar o olhar para seus arredores, procurando focar em qualquer coisa que não fosse no assunto anterior.

Aquele apartamento havia se tornado um local já assinado por Peony. Haviam evidências suas pelo local inteiro; como no quarto de Peter, o casaco jogado sobre a escrivaninha; livros de histórias complicadas demais que ela adorava sobre a cômoda do garoto; restos de aspargos em uma caixa vazia de pizza no chão; dois anéis seus na pia do banheiro, já que ela sempre esquecia de pegá-los de volta.

Após fazerem as pazes, Peter e Peony se tornaram cada vez mais próximos, começando a usar o tempo a favor dos dois. Durante a semana se encontravam na escola e jogavam conversa fora, mantendo companhia um ao outro enquanto se distraíam do mundo real. Gwen fazia parte desses momentos, já que havia decidido se tornar um percevejo e grudar na garota tempos atrás — e ela afirmava que achava a amizade dos adolescentes intrigante.

Sempre que podia, Peony passava no apartamento após as aulas para terminar tarefas de casa e reclamar sobre o dia — seu passatempo favorito — mas Peter nunca pareceu se incomodar, então ela prosseguia. E o garoto começou a fazer maratonas de suas obras cinematográficas favoritas após algumas semanas de amizade, decidindo que seria ótimo passar horas enfurnados no pequeno sofá abaixo de várias cobertas, tendo em vista que o frio já se aproximava, e comendo pipoca amanteigada.  

Algo que ela não estava acostumada era o uso da palavra "amigo" que lhe parecia muito distante da realidade. Agora Peony tinha o privilégio e o direito de poder chamar as pessoas que lhe interessavam de amigos. Peter, Gwen, até Michelle, a garota que mal trocava palavras, mas ainda assim era alguém que ela dizia gostar.

               — Peony — chamou May, adentrando o quarto rapidamente e alarmando os dois. — Você gosta de macarrão?

               — Gosto sim, Sra. Parker — respondeu a jovem, sorrindo.

               — May, querida — a mulher reciprocou o sorriso e abriu um tanto mais da porta. — Sra. Parker faz com que eu pareça velha.

Outra coisa que Peony havia aprendido com sua observação; sua amizade com Peter estava irradiando na tia. A mulher que a jovem avistou antes, aquela vestida em roupões sujos e descabelada, essa não existia mais. A Sra. Parker — May — pareceu receber energias positivas que vinham do sobrinho e tomou-as para si, vestindo-se em roupas de pessoas normais e tomando mais banhos ao dia, agora também alcançando a faixa de sair do quarto; ou até mesmo deixar o apartamento hora ou outra!

E Peter costumava comentar o quão feliz ele ficava ao vê-la de tal modo. Óbvio que ele tinha seus momentos, afinal, não era fácil morar no apartamento em que ele foi criado por seu tio, sua figura paterna, que agora não estava mais ali, mas ultimamente, o garoto estava lidando tão bem com a situação que parecia já estar superando parte da dor. O que deixava Peony satisfeita — não que ela fosse admitir isso um dia.

               — Claro, May — sorriu a jovem, puxando os joelhos para perto de seu peito.

               — Então teremos macarrão para jantar — concluiu a mulher ao piscar com um olho e sorrir novamente enquanto deixava o quarto.

Jantar? Isso era novo para Peony. Normalmente, após passar as tardes com Peter, ela ia embora e buscava algo para comer com seu pai, então ao ouvir as palavras de May, a jovem não sabia se se sentia feliz ou surpresa com o convite.

               — Você não precisa ficar, se quiser… May é um tanto… impulsiva. — Peter focava os olhos de chocolate nas mãos que brincavam entre dedos. Ele pareceu ter notado a expressão que a jovem fizera para sugerir aquilo.

               — Não! — A garota disparou. — Quero dizer… eu adoraria!

               — Você não vai jantar com seu pai?

               — Nós não sabemos o que é jantar — afirmou a garota, soltando um leve riso enquanto corria os dedos pela franja. — Faz dez anos que não comemos uma refeição real.

               — Dez anos?! Por que? — Peter aproximou-se um tanto, parecendo intrigado.

               — Porque desde que minha mãe morreu, ninguém mais cozinhou — a jovem disse e só então notou como a frase causou certa dor em seu peito. — Eu tentei cozinhar, mas eu mal sei como usar o micro-ondas, quem diria um fogão.

               — Sua mãe morreu? — Questionou ele.

Peony se surpreendeu com a questão, não porque fora algo pessoal, mas porque ela não imaginava que algum dia compartilharia aquilo com alguém. Suas memórias de infância eram vagas, mas ela podia se lembrar da mulher e de algumas de suas ações, mesmo que aparecessem como imagens turvas e borradas.

               — Sim, mas faz tempo — ela fez um sinal de "não é nada demais" com as mãos e torceu a boca, fazendo com que o assunto não parecesse tão delicado quanto era.

Mesmo com todo o esforço para descontrair e destorcer sua face, aquela foi a primeira vez em que Peter havia visto Peony vulnerável. Ele aproximou-se um tanto e posicionou uma de suas mãos no ombro da jovem, não parecendo lembrar-se do quão tímido ele era, e a garota apenas o encarou, não onde ele a tocava, mas diretamente nos olhos.

               — É sério, Parker. Faz tempo. Eu não lembro dela.

               — Como aconteceu?

               — Eu não lembro também — respondeu a garota, desviando o olhar das órbitas sinceras dele.

Com isso, Peony começou a brincar com a barra de sua camisa cinza de botões e respirou fundo, tentando afastar seus pensamentos que se voltavam àquilo.

Desde que a jovem decidiu que seria uma boa ideia ler os diários de sua mãe, sua mente se encontrava na pior das bagunças. Peony conhecia desordem, mas ela também conhecia seus pensamentos, e eram ainda piores. Sua leitura não havia acabado, mas até o lugar em que parou a leitura — por ser muito tarde da noite e ter acabado com o estoque de café —, não pôde evitar confusão.

Acontecia que Rose Seagha escrevia lindamente, com letras curvas e arredondadas, na mais perfeita caligrafia que podia sair de um tinteiro encostado ao papel; mas seus parágrafos traziam medo, repulsa e ódio. Em várias das páginas, Peony precisou parar para reler novamente, tentando entender alguma de suas palavras e o porquê delas, mas em especial, uma das folhas ficou em sua memória, e ela podia se lembrar de cada uma das letras ali escritas.

"Eu estou cheia. Cheia! Meu tempo sempre está acabando e eu sempre estou precisando demais. Não quero sair daqui e não quero deixar Dustin, mas e se for o que eu preciso e estiver me recusando ao que o destino me traçou? Cada toque de Halztroc me ilumina por cinco segundos, e depois, durante um ano inteiro, eu me apago, até o momento em que recorro, novamente, a ele. O que será da cria?"

Entende? Não há sentido algum nas palavras! Peony não sabia sobre o que sua mãe podia estar desabafando; sobre uma fuga? Sobre a morte? Sobre a vida? Insatisfação? Injúria? E o que Halztroc tinha a ver com tudo aquilo? E… cria? Sobre quem ela se referia?

Peony foi esperta ao tentar visitar o casarão em que conhecera o tal presenteado. Halztroc nunca estava em casa, na verdade, e ela não conseguia ter suas respostas. Seu colar também não brilhava mais, e nenhuma voz soava em sua mente além da própria mente, mas ela estava sempre alerta para saber de que se tratava. E ainda assim, tudo era um mistério.

               — Acho que o macarrão está pronto — afirmou Peter e os dois se levantaram.

Após a noite maravilhosa que Peony havia passado com os Parker, a jovem recebeu convites para dormir lá mesmo, e ainda assim, decidiu que voltaria para casa — de modo muito educado, claro. E ao chegar em sua residência, a garota achou estranho o fato de seu pai não estar em casa, mas ao ver que o relógio marcava 21:24, soube que ele havia partido para o trabalho.

Com isso, ela subiu até o próprio quarto e sentou-se à escrivaninha, pegando o diário número 3 com rapidez, abrindo no local em que uma nota fiscal marcava a página e retomou sua leitura. Normalmente, ela passaria as páginas sem muito interesse, parando apenas quando capturava de relance algo que fosse intrigante ou que pudesse explicar sobre seu cordão ou qualquer outra coisa dentre as loucuras em que ela havia se envolvido, involuntariamente.

Mas naquele caso, ela encontrou uma página inteira que havia detalhes que pareciam ser intrigantes, então parou para lê-la enquanto seus dedos traçavam com delicadeza as palavras escritas.

"Não é certo, eu sou horrível. Me olhar no espelho se tornou o maior desafio, sabendo que eu tenho esses olhos. Não olhos verdes como as esmeraldas, mas verdes como as chamas. Verdes como os demônios em que habitam dentro de mim e me tornaram esse ser tão horrível. A criança chora no quarto todas as noites e Dustin cuida dela. Não vou me entregar ainda, por mais que me odeie por isso. E também não lhe darei o cordão. Ela não o merece."

Ela não o merece.

Com a vaga escrita, Peony sentiu seu nariz coçar com as lágrimas que chegavam aos olhos, junto da sensação de angústia que navegava em seu peito em direção ao corpo todo. Ela respirou fundo e decidiu não reler, aceitando o que já estava a machucando o suficiente.

Foi naquela noite que a garota chegou à conclusão que ela havia juntado há muito tempo de leitura, e algo que ela não admitiria para si mesma, por mais que soubesse perfeitamente do que se tratava.

Não foram poucas as noites em que sua figura de quatro anos acordara assustada com os gritos entre Rose e Dustin, em discussões árduas e intermináveis, sempre sobre o mesmo assunto que nunca morreria; nunca, por culpa da mãe, que nunca arcara com suas ações.

E a conclusão; sua mãe nunca se importou com ela. Por mais que lhe machucasse, era a realidade. Sua realidade, e ela só desejava ter a mão de Peter em seu ombro para sentir-se melhor.

[…]

Os corredores estavam vazios àquela hora da manhã, com exceção de uma única figura que caminhava como se fosse dona de todo o espaço. Os pequenos saltos de suas botinas pretas estalavam no piso enquanto o simples blazer vinho cobria o suéter de crochê salmão, uma combinação que a protegeria do inverno que se aproximava cada vez mais. A única pele mostrada era a que se encontrava no espaço entre a dobra da barra da calça e o cano da botina.

Peony caminhou até seu escritório e sentou-se na cadeira giratória, colocando o café em sua frente enquanto abria o notebook, tirando-o do modo "soneca" e resumiu sua edição do dia anterior, tentando adiantar tudo para poder publicar no site do colégio ao fim da semana. Respirando fundo, bebeu um longo gole do café e passou a organizar as colunas de acordo com suas próprias normas; a única coisa que a afastava dos pensamentos ruins da noite anterior.

               — Pey? — Chamou uma voz do lado de fora, um tanto familiar, mas que a garota havia reconhecido no mesmo instante.

               — Entre! — Deu a autorização e encarou a porta que abria lentamente.

               — Pensei em passar aqui antes de fazer os anúncios matinais — Gwen adentrou a sala e sentou-se em uma das poltronas de frente para a escrivaninha. — Uau, nunca tinha reparado muito no seu escritório. Como você conseguiu tudo isso?

               — Tenho meus contatos — a jovem disse e retomou sua edição.

               — Contatos eu sei que você tem — a loira lhe lançou um olhar malicioso que Peony optou por ignorar. Mesmo assim, a outra insistiu. — Sr. Parkeeeeeer.

               — Eu tenho coisas mais importantes para fazer do que escutar suas ideias, Gwendolyne — Peony parou de digitar e revirou os olhos.

               — Você é muito sem-graça — a garota mostrou a língua e ajeitou a barra do vestido azul. — Vou fazer os anúncios que ganho mais. Hoje Betty faltou e sobrou para mim.

               — Merda para você!

               — Ei!

               — Significa "boa sorte" na linguagem teatral — a morena sorriu e a loira revirou os olhos, abrindo a porta para poder sair.

               — Tanto faz, te vejo na educação física.

Peony sorriu para si mesma e abaixou o rosto, seus olhos se deparando com a caderneta extra que ela deixava em sua mesa. Então ela lembrou-se de um detalhe importante que não era muito agradável e sentiu leves arrepios na nuca.

Seus dedos roçaram contra a capa de couro falso enquanto ela mordia os lábios ao ponto de sentir o gosto de seu sangue. Abrindo a caderneta, deparou-se com os vários desenhos das rosas espalhadas nas folhas. Normalmente, Peony as desenhava quando se encontrava em situações de tédio, stress, raiva, ansiedade e quando estava procurando escapar um pouco dos problemas.

E tudo aquilo havia resultado em uma caderneta cheia de rosas desenhadas com traços simples e em cores variadas, nos mais diversos ângulos e tamanhos. Por que rosas? Por causa de sua mãe.

Sentindo a mesma dor no peito que se tornara uma grande amiga sua ao longo do tempo, Peony respirou fundo e começou a repassar as frases lidas, tornando-se uma confusão em sua mente.

"Eu não quero essa criança."

"Não vejo a hora de que tudo isso acabe."

"Ela agora é trabalho de Dustin."

"Ela não o merece."

"Espero que tudo isso acabe logo."

Seu peito começou a subir e descer em uma sintonia disparada, saltando as notas a cada instante passado. Uma onda de ódio e descontrole subiu pelos pulmões da garota e saíram em forma de respiração acelerada, tornando seu corpo um caos de emoções das quais ela nunca soube que sentiria por alguém que não deveria. Seus dedos já não tracejavam lentamente as rosas desenhadas, mas agora as rasgavam em pedaços minúsculos o suficiente para que não parecessem mais as formas anteriores, e sim, detalhes de um passado que ela decidiu deixar na lixeira.

Literalmente.

[…]

Caminhar para a aula de educação física era uma das coisas que Peony mais odiava na vida, com exceção de várias outras. Por mais que seu físico fosse capacitado de exercer qualquer tipo de atividade proposta, ela ainda não achava interessante praticá-las fora de sua rotina. Ainda mais porque seu pai lhe ensinou a vida inteira que mostrar suas habilidades faria com que as pessoas tirassem vantagens delas — e Peony tinha outros meios de se exibir.

A jovem sempre levava shorts de ginástica e a camisa para a aula, por mais que não praticasse nada. Ela tinha seus meios de convencer o treinador Wilson de que não precisava daquilo e ele aceitava, não tendo paciência para discutir. Então Peony ficava nas arquibancadas toda aula, corrigindo suas matérias e editando algumas reportagens em seu celular.

Naquele dia, o treinador havia passado alguns exercícios básicos para os alunos enquanto ele rodava entre os tapetes de yoga para corrigir posturas e coisas do tipo, mas o grupo das líderes de torcida estavam fazendo audições para novas integrantes ao mesmo tempo. Peony não estava focando, mas podia escutar o barulho irritante da voz de Zara Copeland em seus ouvidos.

Peony não era o tipo de pessoa que costumava guardar nomes — como você já deve ter notado —, mas Zara era alguém de quem ela se lembrava pelo fato da jovem ter competido com ela para o cargo de editora do jornal da escola. A morena até diria que a Copeland fora uma competição acirrada, mas na realidade, não foi, até porque Peony era excelente no que fazia e tinha ótimos argumentos e propostas enquanto Zara se escondia na sombra de "minha família inteira foi editora do jornal".

Desde então, Zara não gosta de Peony, mas Peony mal liga para a existência de Zara.

A jovem caminhou até as arquibancadas e subiu-as rapidamente, abrindo sua bolsa e retirando dali a coleção de marcadores e a caderneta, assim organizando algumas reportagens já impressas e iniciando as anotações enquanto a voz, novamente, irritante da Copeland soava no fundo de seus ouvidos, tornando seu trabalho um tanto difícil.

Zara continuou citando a sequência enquanto as garotas tentavam acompanhar. Em especial, havia uma jovem — pobrezinha­ — que mal acompanhava os passos e estava constantemente errando. Era possível encontrar a veia no pescoço do Zara a pulsar em uma frequência bizarra, basicamente em um aviso de que logo explodiria.

               — Dodson! — Gritou a líder após soar um apito, fazendo com que a sequência parasse e a garota da pele cor de caramelo encarasse a tal. — Eu apenas aceitei que você fizesse sua audição porque aqui formamos uma democracia. Mas eu ainda tenho o poder de escolher se você fica ou não.

Peony levantou o olhar da caderneta, seus olhos agora fixos à cena em sua frente. Da arquibancada, ela podia enxergar Peter e Ned fazendo flexões enquanto captavam a cena também. Aquela era Flora Dodson, outra pessoa que a jovem havia guardado o nome, pois ela era uma das escritoras principais do jornal, a qual normalmente era selecionada pela própria Peony para ter suas reportagens na página principal.

               — De volta à sequência ­— gritou Zara, sua voz aguda soando como um eco.

A jovem nas arquibancadas revirou os olhos e seguiu fazendo suas marcações enquanto diversas cenas ocorriam ao seu redor, mas nenhuma que lhe interessasse. Peony estava sublinhando uma das frases que ela havia gostado para a sessão esportiva quando ouviu o mesmo apito soando e ecoando na grande quadra.

               — Ok, Dodson, saia daqui — ordenou a líder, não parecendo muito sensível àquele ponto.

               — O-O quê?! — A garota chocou-se, seus ombros recuando e seu olhar pequeno em comparação à outra em sua frente.

               — Dê o fora. Saia.

Peony encarou a cena novamente, agora com uma sensação estranha no peito; como se estivesse pesado demais para seu corpo e prestes a prensar todos os órgãos internos com as paredes das costas. Não, Peony, você não é uma pessoa legal, pensou ela. Você não é uma guardiã.

Mas olhar para Flora Dodson que se encontrava com uma linguagem corporal tão inocente, como se pedisse por ajuda para alguma força do Universo, lhe trazia aquela sensação. Logo menos, sem perceber, a jovem havia se levantado das arquibancadas e deixado a caderneta de lado, atraindo os olhares de Peter e Ned, à princípio.

Só para constar, Peony não estava fazendo aquilo para ajudar a Dodson, mas porque Zara já estava a irritando com seu apito estúpido.

               — Qual a sua implicância com a garota, Copeland? — Questionou Peony, parando em frente a morena e encarando-a, olhos calmos, nada iguais aos fuzis em órbita da outra.

               — Esse assunto não envolve você, Seagha — Zara umedeceu os lábios e cruzou os braços acima do uniforme de líder de torcida, encarando-a de volta.

               — A partir do momento em que sua voz insuportavelmente aguda estiver ecoando no sob o mesmo teto em que eu esteja presente, acho que me envolve, sim — retrucou a garota.

               — Entenda algo, Penny…

               — Peony. E isso não me ofendeu como você achou que ofenderia — corrigiu a jovem, continuando calma enquanto observava a ferocidade da outra.

               — Enfim, você cuida do seu jornal e da sua vida e eu cuido do meu clube — com um curto sorriso, Zara virou-se, ignorando a jovem atrás de si, e sussurrando algo que era para ser escutado, mas não deveria: — como se você soubesse qualquer coisa sobre líderes de torcida.

Peony pensou em continuar e insistir no assunto, mas soube que não valeria de nada discutir com mentes pequenas, então estava preparada para voltar à arquibancada e fingir que nada daquilo tivesse ocorrido. Seus olhos cruzaram com os olhos escuros de Flora e a jovem abriu um curto sorriso enquanto segurava os braços, como se lhe agradecesse. Logo que Peony fora retribuir, a voz de Zara soou mais uma vez:

               — O que você ainda faz aqui, Dodson? Eu não vou dizer novamente! Saia!

Foi então que Peony mandou todos seus pensamentos de desistência à puta que pariu e virou-se no mesmo instante, seus olhos fumegando em raiva, mas não demonstrando o sentimento.

               — Você não faz nada de extraordinário, Zara. Sinceramente — comentou a garota, torcendo a boca levemente.

Naquele instante, as pessoas ao redor calaram-se, agora todos prestando atenção na cena que ocorria no centro da quadra. Zara pareceu notar, já que sua linguagem corporal havia caído de superioridade para vergonha.

               — Ah é? Então por que você não tenta?

               — Prefiro não me submeter a isso — Peony mordeu o lábio inferior.

               — Vá em frente, não é como se fosse algo extraordinário — Zara já estava sem paciência e deu espaço para a outra.

Peony lançou um último olhar para Flora, que continuava com os mesmos olhos de filhote perdido, que, por mais que não fosse o estilo da jovem de sentir pena, conseguiram trazer essa sensação.

               — O que eu ganho com isso? — Questionou.

               — Eu aceito a Dodson no time. Está bom para você?

               — Está ótimo.

Respirando fundo, Peony caminhou para a frente, seus olhos pousando em diversos lugares, como nas pessoas que pararam o que estavam fazendo para observá-la; em Gwen, que estava em um dos cantos e tinha um sorriso orgulhoso no rosto — o que fez Peony revirar os olhos; em Flora, que continuava a esperar qualquer ação que pudesse ocorrer; e em Peter, que tinha a expressão parecida com a de Gwen, mas soando mais como um "eu sabia".

Fechando os olhos lentamente, ela pôde escutar uma música que havia começado a tocar e lembrou-se dos passos que Zara estava passando para as outras garotas, sem muito sucesso. Então, sem muito pânico, lembrou-se de seu novo dom, e como aquela seria uma chance perfeita para usá-lo, decidiu que seria daquele modo.

Mas seria certo? Normalmente, essas coisas não ocorriam sem ter um preço a pagar. E o fato de ela associar esse fator — cujo ela havia praticado apenas uma vez antes e sem querer, ainda por cima — com aquela previsão meia-boca do futuro que ela tinha desde sempre, sabia que podia lhe trazer a dor insuportável de cabeça e o cansaço que vinha no pacote.

Entretanto, o pensamento não saía de sua cabeça — pelo contrário — a persuadia cada vez mais a efetuar a… coisa?

Foi então que ela se concentrou nos pensamentos e esticou a mão para a frente, ignorando qualquer olhar estranho para si e deixou uma leve escapada de ar sair de sua boca, focando apenas na cena da dança. Ouvindo certo baque surdo, ela abriu os olhos com a mesma lentidão com que havia os fechado e encontrou-se nas arquibancadas, sentada e com a caderneta em mãos.

Sorrindo para si mesma, orgulhosa e se sentindo o máximo, Peony soube que não tinha tempo a perder e focou na coreografia das garotas, decorando cada passo com facilidade. Após alguns segundos, ela não se lembrava de como poderia fazer voltar ao presente, então abriu a mão sem perceber e, em um piscar de olhos, ela estava cara a cara com Zara novamente, no mesmo momento em que voltou para o passado.

Agora seu sorriso era malicioso e ela tomava o ritmo da música para associá-lo com os passos da dança. Foi então que ela seguiu cada um deles perfeitamente, melhor do que Zara podia ter ensinado a qualquer um, e para um gran-finale, decidiu que seria mais que perfeito se ela mostrasse algumas de suas habilidades flexíveis e começou com as cambalhotas e mortais, com e sem as mãos, para no fim, pousar de pé e com os braços abertos.

Seu peito subia e descia rapidamente enquanto a jovem recorria as mãos ao cabelo para ajeitar os fios agora bagunçados. Seu olhar caiu sobre Zara mais uma vez e a garota estava de queixo caído, seus olhos matando Peony em 1001 maneiras diferentes a cada piscar.

               — Nada extraordinário — completou Peony, caminhando em direção à Zara, parando e sorrindo novamente antes de pegar suas coisas na arquibancada e caminhar até a saída do ginásio, não antes de gritar: — Bem-vinda ao time, Flora.

Antes de deixar o local por completo, seus olhos caíram logo aos castanhos, os quais ela já estava acostumada, mas parecia como a primeira vez sempre. Então, o garoto abriu um sorriso que já dizia muito — pelo menos, tudo que ela queria interpretar.


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