Open wounds, closed heart escrita por Nekoclair


Capítulo 19
Dia 19


Notas iniciais do capítulo

Capítulo especial!



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06/09/2017

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Hoje foi um dia incomum, e suas particularidades continuam a acontecer até agora; afinal, eu normalmente não escrevo relatórios às quartas-feiras. Hoje, porém, como eu acabei de dizer – escrever – foi um dia incomum, e depois de passar o dia inteiro junto de Victor Nikiforov é claro que o que não faltam são coisas a relatar.

Tudo começou sábado passado com o anúncio da doutora Minako de que, em duplas, devíamos sair para locais movimentados e tentar criar lembranças agradáveis, as quais seriam compartilhadas no próximo encontro, acompanhadas da exibição de um objeto referente ao nosso passeio. Por grande sorte, ou talvez pela ação de alguma divindade piedosa, acabei formando uma dupla com Victor. Depois de discutirmos as nossas opções, nós decidimos por nos encontrar na quarta-feira – ou seja, hoje – num parque no centro da cidade, próximo ao café em que fui certa vez com Pichit, Leo e Guang.

Apesar de ter adormecido relativamente tarde na noite de ontem, pois minha mente estava ocupada demais com cenários fictícios e fantasias impossíveis para relaxar, acordei duas hora antes do despertador tocar. Obriguei-me a voltar a dormir, mas tornei a acordar sem que o ponteiro das horas tivesse quase se movido. Tentei mais uma vez me render ao cansaço e, mesmo assim, tornei a acordar antes do planejado. O sono então não voltou mais, tendo sido substituído por um nervosismo que eu não conseguia evitar. Com meia hora de sobra para gastar, tomei banho sem pressa e depois, com uma toalha enrolada na cintura, comecei a remexer nos armários atrás de alguma roupa que chamasse a minha atenção; mas então senti que estava me esforçando demais e apenas vesti as roupas de sempre.

Quando cheguei à praça, mais de meia hora adiantado, vi-me sem saber o que fazer. Caminhei um pouco nas proximidades do local onde havíamos combinado de nos encontrar e então sentei em um banco junto à uma fonte que, por estar em manutenção, encontrava-se seca. Não demorou, porém, para que Victor aparecesse, sua expressão surpresa como a de alguém que não esperava me ver tão cedo. Ele se aproximou rapidamente.

— Não havíamos combinado de nos encontrar às dez? – Ele checou o relógio em seu pulso, como se duvidando dos ponteiros.

— Eu cheguei cedo.

— Eu também – ele disse, olhando para mim com olhos de quem teve seus planos frustrados. – Eu ia chegar um pouco antes para não te deixar esperando e… Há quanto tempo está aqui?

— Não importa. – Levantei-me do banco e andei em sua direção. – Vamos?

— Para onde?

— Não sei. Criar memórias, acho.

Lado a lado, caminhamos a passos lentos, acompanhados do silêncio. Nenhum de nós parecia saber o que dizer, o que era estranho já que nunca tivemos esse problema no GAPAD. Talvez fosse a falta de familiaridade do ambiente, que trazia uma atmosfera diferente à nossa convivência. Pensando bem, também nunca fomos muito de trocar mensagens…

— Como vai seu livro? – Ele perguntou, de repente, aparentemente tão incomodado com o silêncio quanto eu.

— Bem. É bom não estar mais atrasado no cronograma.

Victor sorriu em concordância e o assunto tornou a morrer. Completamos uma volta inteira no parque sem que sequer mais uma palavra fosse trocada, ambos ocupados observando a paisagem ao redor.

Como exigido pela Minako, a praça era movimentada, a faixa etária dos presentes variando desde crianças brincando no playground até idosos se exercitando em caminhadas monótonas. O local parecia ser popular, talvez devido ao fato de ser bem preservado e de contar com uma boa área verde. Enquanto andávamos distraídos, olhei de relance em direção a Victor. Seus olhos mostravam-se serenos e seu cabelo balançava levemente enquanto ele andava. Estávamos tão perto que eu podia sentir seu perfume, apesar de eu não saber se este era de uma colônia ou se era o odor natural de seu corpo. Enquanto eu torcia para que fosse a segunda opção, ele olhou em minha direção e seus olhos se encontraram com os meus. Virei o rosto, sentindo-me corar por ter sido pego encarando, mas Victor não pareceu notar as emoções complexas que borbulhavam dentro de meu peito.

— Você quer ir para algum outro lugar? Cinema, talvez?

— Pode ser.

Sem perder mais tempo seguimos até o cinema que ficava nem duas quadras de distância do parque. Não havia nenhum filme que um de nós estivesse louco por assistir e, por isso, decidimos por apenas comprar um ingresso para a sessão mais próxima. Com essa decisão feita, entramos na longa fila onde famílias, grupos de amigos e principalmente casais aguardavam ser chamados para o caixa. Devo admitir que esperar naquela fila ao lado de Victor e cercado de jovens apaixonados não foi uma tarefa fácil, não quando meu coração decidiu disparar como se houvesse motivo para isso, e tudo que eu conseguia pensar enquanto olhava para o chão – o único jeito que encontrei para manter meus olhos longe de Victor e da maneira como seu cabelo parecia reluzir na luz dourada do cinema – era que eu esperava que o número de casais não significasse que eu ia ficar preso durante duas horas num cinema escuro vendo um filme romântico ao lado do Victor; não sei se meu coração aguentaria.

Enquanto esperávamos a nossa vez, porém, o som de burburinhos alcançou os meus ouvidos. Não sei exatamente o que me fez notá-los, já que o que mais haviam eram conversas paralelas ocorrendo entre as pessoas que aguardavam na fila, mas me vi atento a eles e logo percebi que Victor e eu éramos observados.

— Meu Deus, aquele é o Victor Nikiforov?!

Antes que pudéssemos reagir à exclamação que ecoou no saguão do cinema, vimo-nos abordados por duas garotas que não deviam ter mais do que vinte anos de idade, cujos olhos brilhavam enquanto olhavam o homem postado ao meu lado.

— Ai, nossa, eu sou muito sua fã! Eu vi todas as suas apresentações desde que você estreou no sênior!

— E eu já te acompanhava quando você estava no junior!

— Será que eu posso ganhar um autógrafo?

— E uma foto! Por favor, uma foto!

Olhei em direção a Victor, confuso, pois eu não tinha a mínima ideia do que elas estavam falando. Porém, o que encontrei nos olhos de Victor não foram respostas, mas um olhar desconfortável. Nunca havia visto seus olhos tão opacos, tão sem vida… As perguntas, entretanto, não pararam, as garotas aparentemente alheias a esse fato.

— Quando você volta? Disseram que você se recuperaria e estaria pronto para competir em um ano, mas já fazem quase três…

— Ou é verdade que você se aposentou?

— Não diga isso! – Uma das garotas cortou a amiga, claramente incrédula. – Victor… Err, senhor Nikiforov, enquanto você não fizer nenhum anúncio oficial vou continuar aguardando ansiosamente o seu retorno!

— Ah! Eu também! Não importa o que digam, Yuri Plisetsky não se compara a você! Acho um absurdo que digam que ele é o “novo Victor Nikiforov”! Ele é apenas um novato na categoria sênior e ainda assim as pessoas têm a audácia de compará-lo com alguém que carregou o ouro tantas vezes!

As garotas não paravam e eu continuava sem entender bem as coisas que elas cuspiam sobre a gente. O pior é que eu nem desejava a pouca informação que eu conseguia entender; não assim. Eu havia decidido esperar até que ele estivesse pronto para falar sobre o assunto e não parecia certo ouvir tudo aquilo de terceiros, entretanto, eu não sabia como fazê-las parar e, para piorar, eu sentia cada vez mais pares de olhos voltados à nossa direção.

A multidão começou a ficar agitada e murmúrios logo se tornaram audíveis.

— É ele mesmo?

— Aquele Victor?

— Ele não havia voltado à Rússia?

— Quem é aquele do lado dele?

— Será verdade que ele virou técnico? Li boatos disso na internet há uns meses.

— Victor, como está sua perna? – A garota tornou a fazer perguntas.

— Você vai voltar pro gelo em breve, né?

Olhei na direção de Victor, desejando saber como ele esperava lidar com aquela situação que, se para mim estava sendo desconfortável, estava certamente sendo cem vezes pior para ele. Foi então que percebi que tinha algo de errado com ele. O tom de sua pele sempre teve uma tonalidade clara, provavelmente devido à sua descendência – russa, pelo que pude supor depois de toda a informação indesejada que acabei adquirindo –, mas naquele momento era como se todo o sangue tivesse fugido de seu rosto, dando lugar à uma palidez mórbida. Ele agarrava as bordas de sua blusa com força e dava para ver o suor escorrendo pela sua pele. Ele olhava para o chão e não parecia mais absorver o que ocorria ao seu redor, fosse as garotas que continuavam a fazer perguntas apesar de não terem recebido qualquer resposta, ou a multidão que continuava a encarar e a murmurar, ou mesmo a minha presença ao seu lado.

Vê-lo daquele jeito doía, meu coração apertado, e mesmo assim eu sabia que minha dor não se equiparava a dele. Sem pensar, busquei a sua mão e enrosquei nossos dedos, mas foi só quando a apertei para assegurá-lo de minha presença que ele pareceu voltar a si. Victor olhou para mim, seus olhos encontrando com os meus, e não foi necessário mais do que isso para que eu entendesse o que eu tinha de fazer.

Olhei em direção às garotas, que pareciam finalmente começar a perceber que havia algo de estranho acontecendo com o tão amado e respeitado ídolo delas.

— Está tudo bem?

— Foi… Foi alguma coisa que a gente disse?

— Com licença – eu disse, sentindo minhas sobrancelhas franzirem inconscientemente quando olhei na direção das duas uma última vez antes de segurar a mão de Victor com um pouco mais de força e puxá-lo para longe da fila e da multidão, que nos seguiu com os olhos até que saíssemos do saguão. Para nossa sorte, não parecia haver nenhum fã fora de si para nos seguir cinema afora.

Mergulhamos no mar de gente que caminhava nas calçadas movimentadas do centro da cidade. Sem rumo, decidi por voltar ao parque, onde eu esperava que Victor pudesse encontrar o sossego que ele precisava para relaxar.

Quando enfim alcançamos novamente o parque, coloquei-o sentado no banco onde eu o havia esperado mais cedo, junto à fonte seca. Ele olhava para a própria mão, agora solitária sem o calor da minha. Ele esfregou os dedos uns nos outros e então olhou para o chão. Ele ainda parecia bastante abatido e a primeira coisa que pensei foi em ir apanhar um pouco de água para que ele bebesse.

— Vou ir buscar umas garrafas d’água – eu falei, mas as palavras pareceram entrar por um de seus ouvidos e sair pelo outro, sem que ele as absorvesse.

Eu o encarei por mais alguns segundos, mas ainda assim não houve qualquer reação de sua parte. Ele continuava a olhar para o chão, talvez tentando limpar sua mente dos pensamentos desagradáveis que vieram à tona por causa das duas garotas. Era como se minha presença ali tivesse sido apagada. Quando enfim virei em meus calcanhares e fiz menção de ir atrás das bebidas, senti um puxão em minha blusa e, quando olhei para trás, vi que Victor a segurava pelas beiradas. Seus olhos, de um azul solitário, imploravam-me para que eu não o abandonasse ali, sozinho.

Virei em sua direção, agachei-me e segurei ambas as suas mãos entre as minhas. Eu esfregava meus polegares nas costas de suas mãos, tentando acalmá-lo da única maneira que eu conhecia; da maneira que minha mãe fazia, desde que eu era pequeno, quando ela sentia que eu precisava não de palavras, mas de uma carícia sutil e reconfortante.

— Eu só vou comprar água naquele quiosque e já volto – expliquei, o tom de minha voz tão gentil quanto o movimento de meus dedos em sua pele.

Apesar de relutante, Victor assentiu. Com isso, larguei suas mãos, sentindo as dele deslizarem sem vontade para longe das minhas. Levantei-me e fui rapidamente em direção ao quiosque, sentindo os olhos de Victor em mim durante o percurso. Para minha sorte, não havia mais ninguém na fila e, assim, não demorou sequer dois minutos até que eu estivesse voltando para o lado de Victor, que novamente observava as pontas de seus dedos atentamente enquanto as esfregava umas nas outras.

Entreguei uma das garrafas a ele e sentei ao seu lado, abrindo a minha própria e tomando um gole do líquido gelado. Victor me imitou e ficamos em silêncio por algum tempo. Com o passar dos minutos, pude perceber que ele começava a se acalmar, a tensão até então presente em seu corpo lentamente desaparecendo. Por precaução, fiquei atento aos arredores, não desejando que a situação de mais cedo se repetisse, mas os pedestres pareciam totalmente alheios à nossa presença. Ainda assim, perguntei-me se não seria melhor irmos para um lugar mais privado, um café talvez. Ou talvez devêssemos apenas dar o dia por encerrado e irmos nossos caminhos separados.

Olhei em sua direção e observei a água descer por sua garganta em breves goles. Ele parecia um pouco melhor, então não teria problema deixá-lo agora, certo? Talvez ele até desejasse isso, um tempo a sós para pôr os pensamentos em ordem. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, porém, os olhos de Victor viraram em minha direção.

— Obrigado – ele disse, e não consegui conter minha surpresa, ou mesmo a minha confusão, esta última tendo se apresentado através de uma pergunta.

— Pelo quê?

— Pelo que você fez lá atrás. Não sei o que eu teria feito sem você.

Não o respondi. Eu estava ocupado demais observando Victor – a forma como seus olhos pareciam cansados e como seu sorriso parecia carregar dores silenciosas – para falar qualquer coisa.

Ficamos ali por mais algum tempo, sentados lado a lado e em silêncio, cada um terminando a sua respectiva garrafa de água. Ainda era cedo e não faziam nem duas horas desde que nos encontramos naquele mesmo banco, àquela hora ignorantes quanto ao estresse que estava por vir.

Olhei de relance em sua direção, apenas por um breve instante. A expressão em seu rosto já estava trezentas vezes melhor e era bom ver a cor finalmente voltar ao seu rosto. Vê-lo numa situação tão ruim, tão no fundo do poço, causou-me uma dor tão grande e ainda assim tão ínfima comparada a sua que eu desejava nada mais do que ver um sorriso despreocupado em seu rosto. Entretanto, haviam tantas coisas que eu queria saber, e, acima de tudo, o conhecimento de que ele carregava algum grande fardo não era algo que eu conseguia mais ignorar. Por isso, decidi me arriscar, mesmo sabendo que talvez eu estivesse sendo intrusivo em sua vida particular.

— Você quer conversar? – Perguntei, enfim.

Silêncio. Quando tive coragem de olhar em sua direção, vi que ele me encarava. Desconfortável, senti que havia pisado em um mina terrestre e que tudo que eu podia fazer era esperar pelas consequências.

— Se quiser, eu estou aqui. – Complementei, desejando que isso aliviasse a tensão pelo menos um pouco. – E desculpe por ouvir aquelas coisas no cinema, não eram da minha conta.

— Quanto você entendeu? – Ele perguntou, imediatamente, seu tom indecifrável.

— Não muito.

Ele não disse mais nada e seu silêncio me deixava ansioso. Esperei mais alguns segundos mas ele não parecia ter a intenção de romper com o silêncio desconfortável que havia surgido. Arrisquei então uma segunda vez, já ciente de que isso era um erro.

— Então… Quer conversar? – Ele negou com um movimento sutil da cabeça. – Tem certeza? – Ele respondeu com mais um movimento de sua cabeça.

Ele não queria conversar, não queria se abrir. Fosse por uma questão de confiança, ou simplesmente devido ao fato de ser um tópico delicado, ele era incapaz de falar sobre fosse o que fosse comigo. Isso me chateou mais do que eu gostaria, mas acho que era inevitável, apesar de ser justo. Nem mesmo eu, que estava apaixonado por ele, sentia que conseguiria expor as feridas que eu carregava dentro de mim assim tão facilmente. Eu entendia o seu ponto de vista. Realmente entendia. Então por que não consegui me conter? Por que, apesar de estar arrependido de ter perguntado não uma, mas duas vezes, eu me via cometendo o mesmo erro uma terceira vez?

— Eu fiquei preocupado. – As palavras saíram de meus lábios antes que eu pudesse contê-las. – Te ver daquele jeito… Você estava tão mal. – As palavras saiam aos tropeços. – Conversar talvez ajude. Não foi você que pediu para falar comigo quando estivesse mal? Por que mudou de ideia? Não confia mais em mim?

Eu sentia meus olhos marejados e me odiava por isso. Segurei as lágrimas, orgulhoso demais para chorar num momento como aquele. Eu odiava o que minha ansiedade fazia comigo, odiava as crises depressivas que ela acarretava de vez em quando, e odiava ainda mais quando elas ocorriam em público.

Ficamos em uma silenciosa troca de olhares por mais dez segundos, até que Victor rompeu o silêncio.

— Eu sei que você tem ótimas intenções, Yuri, e eu confio em você mais do que você imagina. É só que… É meio difícil tocar no assunto. São tantas coisas.

— Mas não precisa contar tudo de uma vez. Conte o que aguentar.

— É que algumas coisas são complicadas e machucam… Algumas lembranças é mais fácil deixar cair no esquecimento ao invés de lidar com elas, e é o que geralmente faço.

— Mas eu quero saber! Suas dores, seu passado, tudo! Você tem ideia do tanto que eu me preocupo com você?

As palavras saíram antes que eu pudesse me impedir. Victor encarava-me claramente surpreso e não consegui evitar o rubor que tomou meu rosto.

— Eu, ahm… Quero dizer… – Mas não falei mais nada. Virei o rosto, desejando ocultar os meus sentimentos, que haviam se tornado tão transparentes de um segundo para o outro.

— O que você quer dizer?

A voz de Victor carregava uma seriedade preocupante e o fato dele desejar continuar com aquele assunto era mais preocupante ainda. Senti sua mão buscar a minha, que repousava sobre o banco, mas puxei-a em minha direção antes que fosse tarde demais. Estávamos desviando totalmente do assunto, e talvez fosse justamente essa a sua intenção.

— Ahm, escuta… – Olhei em sua direção e tentei de tudo não me abalar com o par de olhos azuis que ainda me encarava, cheio de expectativas. – O que acha de um jogo?

— Jogo? – Suas expressões tornaram-se imediatamente confusas, uma de suas sobrancelhas arqueadas.

— Sim. É algo que eu jogo muito com minha irmã, desde que éramos pequenos.

— Que tipo de jogo?

— Uma pergunta por uma pergunta.

Victor não falou nada por alguns instantes, claramente pensativo. Apesar de eu achar o nome meio auto-explicativo, ele ainda assim perguntou sobre as regras.

— Do tipo que um pergunta e o outro responde, e vice-versa? – Anui a cabeça em concordância, dizendo que era exatamente isso. – Sou obrigado a responder?

— Não. Só se quiser.

Ele ficou mais alguns segundos pensando a respeito, talvez pesando os prós e contras, até enfim me dar uma resposta.

— Acho que podemos tentar. Afinal, tem várias coisas que eu adoraria perguntar também. Assim, seria justo.

Um leve sorriso brotou em meus lábios e também nos de Victor, apesar dele estar evidentemente nervoso.

— Você começa – falei, torcendo para que isso aliviasse um pouco o seu nervosismo.

— Okay. Por que você se preocupa tanto comigo?

Ter aquela pergunta jogada para cima de mim logo de cara era no mínimo esperado. É claro que ele não ia simplesmente esquecer sobre o assunto. Para minha sorte, eu já tinha uma resposta pronta para dar – uma que não era necessariamente uma mentira – e dessa vez eu não estava agitado demais para agir por impulso.

— É normal se preocupar. Você é meu amigo, e logo é importante para mim. – Isso foi suficiente para trazer um sorriso sincero ao seu rosto. Ele parecia honestamente feliz com a minha resposta, o que machucava um pouco e fazia eu me sentir culpado por ter sentimentos românticos direcionados a ele.

— Sua vez – ele disse, gesticulando em minha direção.

Observando-o, não era difícil notar a falsa confiança que ele tentava demonstrar. Seu nervosismo continuava ali e era quase um milagre ele ter aceitado tomar parte daquele jogo para início de conversa. Não adiantava ter pressa, por isso, decidi optar por uma abordagem diferente até que eu sentisse que ele estava pronto para se abrir comigo; afinal, não adiantava nada eu perguntar sobre coisas delicadas apenas para ele se recusar a responder.

— Como foi o seu dia hoje?

Victor ficou evidentemente surpreso com minha pergunta e, por isso, não respondeu de imediato.

— Ótimo. Ou pelo menos até agora a pouco. Sair com você foi divertido, apesar de eu achar que você estava bem nervoso – ele respondeu, enfim. – Okay, minha vez. Por que você não foi direto ao ponto?

— Não vejo porque ter pressa. Temos um longo dia pela frente.

Mais do que surpreso, ele pareceu ficar aliviado com o que ouviu. Seu corpo relaxou e não apenas seus lábios, mas também seus olhos sorriram para mim.

Nós nos levantamos, desejando esticar um pouco as pernas que começavam a reclamar do banco duro e desconfortável. Caminhamos ao redor do parque algumas vezes, distraídos com as descobertas que fazíamos um sobre o outro, os eventos decorridos no cinema agora uma memória distante.

— Como é a sua família? – Perguntei, em um certo momento.

— Sou filho único. Meus pais moram na Rússia e não falo com eles há muitos anos. E você?

— Eu moro com meus pais. Minha irmã está no Japão, cuidando dos negócios da família. Você se sente sozinho?

— No começo foi difícil, mas faz bastante tempo que me separei deles. Hoje, tenho Makkachin e Yakov então não. Por que vocês vieram para os Estados Unidos se sua família tem negócios no Japão?

— Eu vim fazer faculdade e acabei ficando por causa do trabalho e da vida que construí aqui. Eu estou bem melhor hoje comparado há alguns anos, mas meus pais, na época, acharam que eu não podia ficar sozinho. Eles então decidiram ficar até que tivessem certeza de que eu estava realmente bem. – Respondi, sentindo as memórias vindo à tona, meu estômago embrulhando. Mas era minha vez de perguntar, então ignorei meu desconforto enquanto me preparava para uma jogada que eu sabia ser arriscada. – Quem é Yakov?

Olhei em direção a Victor, esperando que ele se recusasse a responder da mesma forma que fez um dia, há pouco mais de um mês. Entretanto, desta vez, ele se viu capaz de me dar uma resposta.

— Ele meio que cuida de mim. Eu sei, é meio ridículo um cara da minha idade precisar de babá. Ele era meu técnico e acho que, por isso, não consegue me ignorar.

Dei uma breve risada, para a surpresa de Victor, que imediatamente me encarou com olhos de um azul confuso.

— Eu moro com meus pais e você vem falar que é ridículo alguém dar uma olhada em você de vez em quando?

— Ahh, mas eles são seus pais!

— Dá na mesma.

Continuamos caminhando, conversando e nos divertindo mais do que eu achava possível. De vez em quando, deixávamos o assunto morrer para aproveitar dos instantes silenciosos e reconfortantes que surgiam. Ele andava ao meu lado, obviamente se ajustando aos meus passos pequenos, seu braço esbarrando no meu quando ele se aproximava alguns centímetros sempre que ia me dizer alguma coisa. Já alcançando o meio da tarde, decidimos por ir a um café. A recomendação do lugar, claro, foi feita por mim.

Quando entramos no familiar estabelecimento, nos direcionamos a uma mesa junto à parede, onde esperávamos ter alguma privacidade. Pedimos um café e alguns biscoitos, que eu insisti que ele experimentasse, e continuamos com o nosso jogo.

— Minha vez. – Anunciou Victor assim que a garçonete se afastou. – Foi sua mãe que te ensinou a cozinhar?

— Na verdade foi o meu pai. Ele sempre gostou muito da coisa. Mas minha mãe também é um ótima cozinheira.

— Ehh… Dá quase inveja. Aposto que a comida na sua casa é ótima.

— O que você come normalmente? Visto que não sabe cozinhar… – Perguntei, pois era a minha vez.

— Eu como quase sempre fora. Ou congelados, mas Yakov não gosta muito quando faço isso.

— Realmente não é bom para você.

— Talvez você possa me chamar para comer na sua casa então – ele disse, obviamente brincando. Mas, claro, não foi fácil convencer meu coração de que ele não estava falando sério. Minhas expressões devem ter se tornado estranhas, porque ele logo acrescentou: – Eu estava brincando. Não precisa ficar tão tenso.

— Eu, ahm, desculpa.

— Tudo bem. Desculpa por falar algo assim, tão de repente. – Ele bagunçou os fios de cabelo em sua cabeça, aparentemente sentindo-se culpado por algo que era nada além de insignificante. Amaldiçoei-me por, às vezes, ser mais idiota que o normal e por não ter quaisquer habilidades sociais.

Odiando ver o que fiz com ele, mesmo que não intencionalmente, decidi por tentar melhorar a situação.

— Mas talvez eu possa te levar comida? E você esquenta em casa…

— Eu não poderia te dar esse trabalho – ele foi rápido em recusar.

— Ah, claro… – Eu sentia-me o maior dos idiotas e, naquele momento, queria nada além de um buraco fundo para me enterrar. Qual era o meu problema com pensar antes de falar? Por que Victor fazia eu agir como um tolo apaixonado?

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Eu não sabia o que dizer, e nem sabia se realmente desejava falar qualquer outra coisa depois de tudo que aconteceu, e Victor estava ocupado demais me observando para se pronunciar. Seus olhos me analisavam em detalhe, deixando-me ainda mais nervoso.

— Mas talvez você possa me ensinar a cozinhar alguma coisa, algum dia?... – Ele sugeriu, subitamente desviando o olhar, uma de suas mãos coçando a própria nuca.

— Eu, ahm… – Tentei não corar, mas claro que falhei miseravelmente.

— Se não se importar, claro.

— Eu acho que podemos tentar? – Minha afirmativa acabou soando mais como uma interrogativa, mas Victor não pareceu ligar.

Ele sorriu e apoiou a cabeça em uma de suas mãos. A garçonete enfim chegou com nossos pedidos, largou-os sobre a mesa e se retirou. Victor imediatamente provou da xícara de café com leite que havia pedido e então apanhou um dos biscoitos, quebrando-o ao meio com uma mordida. Ele então falou algo que não entendi, provavelmente em russo, mas pelo jeito que sorriu – um sorriso no formato de coração – sinto que a comida estava de seu agrado.

Em silêncio, focamos na pilha de biscoitos à nossa frente. Pouco demorou até que não sobrasse sequer mais um grão, o último biscoito tendo sido rachado ao meio apesar de eu ter insistido que Victor ficasse com ele. Fomos até o caixa e pagamos a nossa conta. Já estávamos na porta do estabelecimento quando Victor sugeriu levarmos uma caixa de biscoitos para o GAPAD, como nossa lembrança do passeio. Assenti e nos direcionamos de volta ao caixa, a moça sorrindo ao que viu nós nos aproximarmos.

Quando nos vimos de volta às ruas, surpreendi-me ao ver que o Sol já se punha, pois, na companhia de Victor, não notei o tempo passar.

— O dia passou rápido hoje – ele disse, como se lendo meus pensamentos.

Olhei em sua direção, notando o jeito como os fios de seu cabelo agitavam-se devido ao vento frio que a noite trazia. Ele virou em minha direção e nossos olhos se encontraram. Ficamos numa silenciosa troca de olhares até que meu coração não aguentasse mais e começasse a disparar.

— Foi divertido – eu disse, tímido, e Victor anuiu.

— Talvez possamos repetir o passei algum dia?

— Claro. É… Seria um prazer. – Amaldiçoei-me pela minha escolha de palavras. Qual era o meu problema em dar respostas não constrangedoras? Por que eu sempre tinha que agir assim? – Err, quero dizer…

— Sim! Um prazer! – Sua voz era alegre e ela foi suficiente para me fazer levantar os olhos do chão. Quando olhei em sua direção, vi um largo sorriso estampado em seu rosto, que estava corado pelo frio. Realmente, estava começando a esfriar… Caminhamos pela calçada em direção ao estacionamento onde estava o carro de Victor.

Mais cedo, ele havia insistido em me dar uma carona até em casa, apesar de eu ter dito várias vezes que estava habituado a andar de ônibus, e, por isso, eu me via agora sentado no banco do passageiro, uma música antiga tocando no rádio. Eram uns quinze minutos de trajeto, aproximadamente, e por algum motivo o silêncio havia voltado a reinar. Tentei me distrair, mas isso estava sendo impossível. Eu estava novamente bem ansioso, apesar de não entender porque.

— De quem é a vez? – Victor perguntou, ao que me remexi pela terceira vez ao seu lado. Talvez tivesse notado minha agitação, apesar de eu desejar que não.

— Eu perguntei sobre o que você comia, então acho que você.

— Ah, mas eu perguntei se você me ensinaria a cozinhar, e se sairia comigo de novo. Sinto que pulei a sua vez. – Ele disse, em tom de desculpas.

— Ah, mas essas perguntas não foram sérias.

Victor parou num farol bem a tempo de olhar em minha direção, expressões confusas no rosto.

— Mas eu estava falando sério.

— Na verdade eu escolhi mal as palavras… Eu quis dizer que não estavam valendo. – Eu me corrigi, rapidamente, embaraçado. O farol virou e Victor voltou a dirigir.

— Para um escritor você se enrola bastante com as palavras – ele falou, seu tom irônico, mas também amigável.

— Escrever é mais fácil do que falar.

— Sério? Pensar em tantas coisas e então organizar as ideias, para então colocar tudo no papel… Parece bem complicado, se me perguntar.

— Na verdade, não é muito diferente de falar, nesse sentido. A única diferença é que quando você escreve você tem tempo de se arrepender e de se corrigir.

— Hm, faz sentido.

Ficamos mais alguns segundos em silêncio.

— Então você estava falando sério? – Ele questionou, de repente. – Sobre me ensinar a cozinhar. Porque não precisa se você não quiser, e você teria que arrumar tempo e ir na minha casa… – Victor parecia nervoso, suas palavras quase aos tropeços. – Você deve ser uma pessoa ocupada.

Uma parte de mim, nesse momento, gritou para que eu recuasse, que eu estava dando um passo grande demais e que eu me arrependeria de chegar perto demais de algo que eu nunca teria. O coração de Victor era inalcançável para alguém como eu, e eu soube isso desde o início. Eu era, no máximo, um amigo em seus olhos. Victor nunca me veria de outra forma e meus sentimentos eram quase uma traição apenas por existirem. Todavia, como eu já disse, eu sou idiota, muito idiota.

— Acho que posso arrumar tempo… Não ando tão ocupado assim ultimamente.

— Ótimo! – Ele exclamou, alegre, desviando os olhos um segundo da estrada para olhar em minha direção.

“Ótimo…”, pensei, já me arrependendo de ter concordado. Realmente, escrever era bem mais fácil. Se fosse um texto, um trecho numa história, eu poderia apenas pressionar a tecla backspace e tudo se solucionaria; mas, lamentavelmente, a vida não era assim tão simples.

Já estávamos quase na frente de minha casa quando ele me lembrou de fazer uma pergunta.

— Insisto que faça, Yuri. Perguntei tantas coisas e pulei sua vez. Não é justo, então termine o jogo com uma última pergunta.

Fiquei pensativo por algum tempo. Quando Victor estacionou na frente de minha casa, eu ainda não havia pensado em uma pergunta. Ele, porém, não reagiu de qualquer forma, apenas virou em minha direção e fixou seus olhos em mim, esperando pelo que eu tinha a dizer. Não é que eu não soubesse algo para perguntar, o problema era justamente a quantidade de coisas que eu queria saber sobre si. Comida preferida… Lugar preferido da cidade… Se ele gostava de ler… Algo sobre o Makkachin… Eram diversas as possibilidades. Porém, eu sabia que tinha algo acima de tudo isso, uma dúvida que implorava por ser ouvida. Tentei lutar contra ela, contê-la, incerto se seria um passo grande demais. Ainda assim, no fim vi-me derrotado pela minha própria curiosidade, que falou mais alto.

— Você era um patinador artístico?

Dessa vez, não desviei o olhar. Por maior que fosse o desconforto em meu peito, por mais que minha ansiedade me mandasse abrir a porta do carro e correr para dentro de casa. Mantive-me firme, observando o brilho em seus olhos sumir por um breve instante antes de se normalizar.

— Esse não é o tipo de coisa que você poderia simplesmente pesquisar na internet? – Ele perguntou, numa voz cansada.

Victor parecia abalado pelo assunto que eu havia trazido à tona. Não bravo, não triste, mas melancólico, como se a simples menção da patinação trouxesse memórias que ele preferia manter no esquecimento. Eu sabia que o assunto era delicado, comecei a suspeitar quando ele tentou esconder a foto em seu celular, e tive a certeza hoje, quando vi seus olhos se tornarem opacos.

Balancei a cabeça, em uma negação silenciosa.

— A verdade tem de vir de você.

Victor suspirou, cansado, mas pelo menos sua expressão aparentava já estar um pouco melhor.

— Sim. Mas faz dois anos que tive de me afastar.


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Notas finais do capítulo

Olá!
Como vocês devem ter notado, este capítulo foi um pouco diferente do normal. Basicamente, tinham coisas demais pra falar e resumir não era uma opção, mas graças a isso agora vocês sabem como a fic seria se eu tivesse como escrever os capítulos da maneira que um dia eu sonhei ter como (mas faculdade, lamentavelmente, não permite).
Enfim, deu bastante trabalho, mas o que mais importa é se agradou ou não. Espero muito que sim. Estou na torcida, aqui.
E comentários seriam maravilhosos, porque nada me faz mais feliz que comentários. Críticas construtivas também seriam ótimas, se alguém tiver alguma a dar. :)
Bem, é isso. Até este sábado!



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