Os Dons escrita por GMarques


Capítulo 1
Conto I - O Jardim dos Sentimentos


Notas iniciais do capítulo

O primeiro dom envolverá o sentimento, aquele que sente dos outros e não sabe ao certo o que sente. Acompanhe este jardineiro e seus sentimentos com relação ao amor.



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Os sentimentos são curiosos para mim. Já senti uma gama de sentimentos positivos e negativos, pude sentir aqueles que pouco sentiam e aqueles que usavam seus sentimentos como guias de sua vida pessoal. Eu posso saber o que os outros sentem, posso saber o que eles querem ou não, mas não sei ao certo o que é sentir por mim mesmo, sempre acabo me contaminando pelas emoções alheias.

Não me lembro bem quando, mas ainda consigo ver em minha memória os lírios e as rosas daquele jardim no qual trabalhei por alguns poucos anos. Trabalhei para um casal quieto, sem filhos, sabia que a moça não era feliz e o homem parecia não saber o que é realmente sentir, talvez fosse como eu. Lembro-me do aroma das flores daquele quintal, da dama da noite que exalava o seu perfume sempre na mesma hora; mas era indistinguível o perfume dela, a moça doce, que me faz lembrar do mel, inesquecível. 

O que poderia um jardineiro ter com uma mulher casada? O que poderia sentir quem não sente? Mas que faria eu se seu encanto me encantava? Seu sorriso me fazia sorrir. Sabia que ela gostava de mim, pois eu gostava dela, e era o seu sentimento que me contaminava. 

Às vezes, enquanto podava os arbustos que S. João tanto gostava, sentia o vento suave de seu corpo ao passar por trás de mim, corpo o qual  eu não podia tocar. Ela passava a mão entre as folhas e as flores admirava; vez ou outra sentava-se numa das duas cadeiras rendadas que havia ali para observar o verdume e relaxar. 

O sol já se poria. Seu João e ela jantavam juntos, podia vigiá-los pela janela de vidro que dava luz à sala de jantar e dava-lhes vista ao jardim. Meu trabalho por ora já acabara.

— Vou-me indo embora, Seu João. — despedi-me para que soubesse que lá não tinha mais o que fazer. 

— A porta, — senti a agitação em seu corpo e sua voz, sabia que desejava algo, era capaz de senti-lo — está trancada, vou abri-la para vosmecê. 

Seu João permaneceu inerte sobre a situação, só continuou comendo de seu assado. Era homem bom de meia idade, experiente. Não faria mal a ela. 

— Gostei muito do que vosmecê fez com aquelas rosas, — levou-me ao portão e pude ficar feliz pois ela também o estava — amanhã pode-me mostrar como se o faz?

— Uma dama delicada como vosmecê não deve mexer com coisas tão pontiagudas como as tesouras que uso, — senti a decepção, mas não a hesitação — patrão não iria gostar.

— Ele de nada precisa saber — deu-me um sorriso tímido e entrou.

Pude sentir muito dela nas semanas que se passaram. Ensinei-lhe a manipular a tesoura, a poda e como fazer crescer uma flor; ela me retribuiu com a sua presença e seus sorrisos. Longas tardes aquelas que seu marido ao qual seus pais a obrigaram se casar saía para trabalhar. Homem bom, mas ela não o amava, não havia amor quando os dois estavam a jantar. Ensinou-me o toque,  e depois ensinou-me o amar. Tinha medo de o sentimento ser só dela e este estar por me contaminar, mas também não sabia se o medo era dela de ainda não saber o que é amar.

As semanas se passavam. Lembro-me que passou a retrair-se, que não descia mais para o jardim e sua cadeira rendada na qual sentava-se para descansar transformou-se num mero objeto em desuso. Não havia mais felicidade por ali. A empregada, recém-contratada, passou a levar-lhe o jantar; a roseira, que ajudou a plantar, passou a murchar.

Quanto mais tenso o ambiente ficava, mais triste também. Os parentes a visitavam, mais frequente os médicos que S. João chamava. Não bastou muito tempo para vir o padre. E depois, as roupas pretas. Senti quem nada sentia e pude saber quem eram seus pais. Um caixão na sala, preferi ficar no jardim, lá podia lembrar e não sentir. Podia olhar a rosa descuidada, que também perdeu a vida, era ela em flor, murchando aos poucos até reduzir-se ao chão.

Já faz muito tempo. Pedi demissão algumas semanas depois, se não o fizesse, S. João o faria; não era capaz de manter um jardim se não houvesse ninguém para admirar. Realmente faz muito tempo. Talvez agora ela seja somente uma memória pela metade nos pensamentos de um homem que ainda pode sentir o que ela sentia.

Aquela moça, Laura, me sentiu como a senti. Foi um sentimento que se manteve e perdurou por todos esses anos em que solitário tentei entender os meus sentimentos e os dos outros entrelaçando-se. Analisando-os, sem medo posso afirmar: enquanto ela me amava, eu a amava também; seu sentimento se misturou com o meu e se tornou um só. E com o amor veio o arrependimento, que posso sentir em meu leito de morte, arrependimento por não ter dito o que queríamos dizer: Eu amo vosmecê. Espero que pós-morte, ainda tenha uma chance para lhe dizer. 


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