Guia de como fugir de casa para mulheres de 21 escrita por Eponine


Capítulo 1
Primeiro, coloque seus allstars velhos




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Está tudo bem, mas sua mente está dizendo que tem algo errado.

Bem... Tem algo errado, você está doente, e é uma doença potencialmente mortal, mas você mantém uma calma que faz seu pai se perguntar se você é feita de pedra. Provavelmente sua ficha só vai cair algumas semanas depois, quando você estiver cansada de seguir a rotina (e todos sabem que você é aversa a rotina) de remédios que irão de perseguir por alguns meses. A enfermeira está chocada em como você está aparentemente bem, mas tudo que você consegue pensar é como deixou esses sintomas passarem sendo que semanalmente você procura no google se você pode morrer de tanto tirar cutícula ou por ficar muito tempo procrastinando. E em como você vai a um encontro sendo que está com o pulmão se desintegrando.

Pegue sua garrafa d’água e o livro que você quer tentar terminar antes de renovar na biblioteca, mas todos os dias você se engana e em vez de ler você passa algumas horas ouvindo podcasts sobre assuntos complexos e que você provavelmente só absorveu 5%. Ah, devolva os livros da biblioteca pública, por favor, não faça sua multa ficar pior do que já está... Você devia terminar de ver aquela série, mas você preferiu rever Grey’s Anatomy e sugar as forças de Cristina Yang, desesperada por inspiração e determinação.

Conte nos dedos com quem você deve se preocupar.

Sua velha amiga, ela mesma, acho que não seria adequado iniciar uma conversa anunciando que está doente, ela vai pensar que você está morrendo. Você não sente falta dela, você sente falta dos momentos bons. Deixe-a em paz, vocês não estão mais na mesma estrada. No fim você vai contar seu probleminha para duas pessoas que realmente importam e o resto você provavelmente vai inventar que tem cerca de cinco doenças diferentes apenas por diversão, assim como você consegue criar através de um novo nome, todo uma vida, quando algum cara babaca vem te perturbar na balada.

Ah, claro, seus pais... Bem, seu pai vai girar os olhos e dar aquele suspiro cansado, provavelmente se perguntando qual o seu problema. Sua mãe vai demorar um pouquinho para notar sua ausência, ela ainda está no cabelereiro. Pegue seu RG e guarde no sutiã, é a única coisa que você tem medo de perder.

Não conte para ele que você vai sumir, ele não vai ligar, está ocupado demais com alguma estreia de documentário sobre a questão indígena no Brasil e ele vai achar engraçado se você falar que ele se preocupa mais com índios que não conhece do que com uma descendente indígena que ele tem nas mãos. Você sente que está condenada a se atrair por homens que são o oposto de seu pai (tão dócil e protetor), não se surpreendendo em ter se apaixonado por alguém que parece esquecer que você existe dois segundos depois de vocês terem se visto, o que faz você se indagar se não inventou tudo na sua cabeça em um delírio muito forte.

Você quer contar seus demônios para ele, mas não quer ao mesmo tempo. Você perguntou mil vezes o que ele tinha, porque ele estava tão irritado, mas ele diz que prefere guardar certas coisas para si mesmo.

E você também, não esqueça.

Seus dedos escrevem romanticamente como se você fosse a própria Sylvia Plath escrevendo algo para seu amado, mas além de tudo sair brega, você esquece que está escrevendo teatralmente para a pessoa que te viu ficar só de sutiã no meio de um terminal vazio, gritando muito alto “Você ‘tá me ouvindo???”. Apague a mensagem, guarde essas coisas pra quando você tiver um surto psicótico e mandar um texto para ele de 500 caracteres após ter cortado seu cabelo de forma torta, feito propostas de adoção de tartarugas, estragado ingredientes em um bolo que saiu errado apenas porque você não leu a receita e mandar longos e-mails de elogios para ONG’s e Coletivos Feministas.

Caso você acabe fazendo isso, fique calma, seu cabelo vai crescer, os e-mails retornarão com agradecimentos curtos (que devem ter assustado a pessoa que leu), seu pai vai te forçar a cancelar a adoção e sua mãe vai apenas gritar, perguntando o porquê de você ser alfabetizada no fim das contas. E ele, ele vai apenas rir de suas mensagens, como se pudesse saber que você acabou de escalar o teto, apenas dizendo:

— Gabriela...

Você passou tanto tempo pensando nos problemas cardíacos do seu pai que esquece sua visão piorando cada vez mais, e que passou o começo do ano inteiro doente, mas ninguém soube. Você não escuta sua mãe falar, ocupada demais pensando se vai conseguir um emprego logo ou aceitar qualquer coisa fora da sua área deve virar uma opção. Ver seus amigos comprometidos não te incomoda, e nem te faz sentir falta de alguém.

Mas quando você se sente incomodada quando vê casais no cinema.

E você o olha, suspirando com sua voz contida e os óculos redondos abafando os olhos avaliativos com ar blasé, desejando perversamente ter sido a garota que quebrou seu coração tão traumaticamente, o tornando tão distante.

— Você não lembra disso?

Existe a realidade e a realidade paralela na sua mente, às vezes elas se confundem, seu pai acha um fenômeno psicológico como seu TDA parece ir e voltar, por mais que ele já tenha ido. Sua dissociação faz ele se estressar, achando que você nunca vai conseguir fazer as coisas sozinha.

Mas esse é seu maior sonho.

Seus colegas de faculdade te acham engraçada e estudiosa, mas você ficou tão nervosa na prova que escreveu nomes básicos errado, e o seu ego inflado parece tão frágil que você precisa se isolar e explicar para si mesma que você não é burra. Você sai de novo e finge que está tudo bem e quando deixa escapar uma preocupação, seus amigos tratam de relativizar, acostumados com a seu semblante despreocupado, eles não sabem do inferno na sua cabeça.

Viu? Confundiu realidade paralela e real de novo...

Uma amiga te bejia naquela festa e você não sente um arrependimento amargo, e sim uma sensação terrível de que você parecia ter entrado de novo em um processo de falha que não experimentava há muito. Seu instinto de se colocar para correr parece até disparar e você não sabe mais se o enjoo é porque você beijou uma amiga e ela parece apaixonada, ou porque só quer beijar determinada pessoa em especifico.

O álcool parece te culpar, o castigo é te tornar sóbria.

A verdade é que você não consegue contar que está apaixonada, porque não está, você quer estar, ou só gosta muito dessa criatura fantástica (não é um elogio) que além de ser realmente estranho, é definitivamente mais problemático que você. Provavelmente você vai olhar para trás no futuro e notar que no fim das contas só estava curiosa para decifrá-lo, sabendo que, decifrar, para você, é destruir.

Mas então você quer fugir.

Sua fuga consiste em esperar o cara com quem você está saindo por trinta minutos, totalmente incapaz de se comunicar com ele (porque o dito cujo acha razoável não ter um celular em 2017), depois dele ter decidido não ir no seu aniversário (“estou saindo pouco esses dias, desculpa”), sendo que você dispensou outras pessoas apenas para poder vê-lo. E sentir vontade de vomitar com o pedido de desculpas que nunca chegou.

Outra forma de fugir é quando você liga para o seu pai em meio uma chuva forte, implorando para ele ir te buscar. Ele está cansado, trabalhou o dia inteiro. Você sabe que ele vai te buscar, não precisa nem justificar. Você assiste as outras pessoas irem embora, ensopando os pés e se sente o ser mais mesquinho e mimado da face da terra.

Outra versão é você atravessar a cracolância às duas e meia da madrugada, um pouco alterada de álcool e drogas ilícitas, quase correndo desesperada para longe da boate em que você só aceitou ir porque ganhou vip e sua amiga insistiu muito para que vocês fossem porque ela queria exibir seus sapatos plataforma comprados no ebay.

Entretanto, as suas melhores fugas são as desculpas: Você pode dizer que se atrasou porque seu vizinho lhe parou no portão pra conversar, e não porque não queria ir. Dizer que está muito doente porque seu sistema imunológico é muito frágil, mas você mesma se auto diagnosticou no google. Dizer que não entendeu muito bem certa matéria porque tem problemas com atenção, mas isso já passou e na verdade você passou horas stalkeando pessoas e criando teorias na sua cabeça. Dizer que não atendeu porque estava muito ocupada limpando a casa e estava mesmo. Responder de forma curta, fria e distante alguém que você chorou muito associando a alguma música do The National, por mais que a pessoa esteja te tratando bem.

Pegue seus itens e olhe pela janela uma última vez.

Você já que não quer ir em tal festa e receber as mensagens bêbadas de amigos não vão te incomodar mais enquanto você estuda as veias e artérias do coração, determinada a gravá-las. Você escuta o mesmo podcast algumas vezes até entender um pouco mais de 5% e consegue ler algumas páginas espontaneamente, quando volta correndo pra casa, após alguma aula densa de Biologia Celular e Histologia.

Seu cabelo cresceu, e você ainda espera aquele Coletivo te responder, você quer dedicar sua profissão à Saúde da Mulher. Sua mãe agora pede para que você faça bolos, porque só sai perfeito do jeito que você faz. E seu pai ainda desconfia da adoção de um cachorro, mas sua negação é frágil para sua pequena princesa.

— Sempre esqueço o quão carinhosa você é.

Você ainda sorri enormemente com as mensagens dele, mas seu coração segue os batimentos comuns, sem alterações. E não, suas grosserias com ele tem apenas um tom brincalhão, e não mais aquele tom de “vou te maltratar porque gosto de você”. Você ainda quer beijá-lo, mas sabe que não deve: Se fizer, vai descobrir que já não gosta dele.

Seu pai agora confia em você, mas sempre garante que repetiu a mesma coisa cinco vezes, não se surpreendendo se você esquecer mesmo assim. Sua mãe agora tem paciência com você, como se ela visse a mudança que você ainda não viu. Você ainda é a alma da festa, mas ninguém parece assustado quando você mostra o lado comum, dando alguns passos para trás, já olhando as horas. Você senta, sozinha, na poltrona do cinema, com um casal a sua frente, e aguarda o começo da maratona de filmes, equipada com sua pipoca e refrigerante.

Feche a porta, Gabriela, chegou a hora de fugir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Eu me inspirei no capítulo de mesmo título do Not That Kind of Girl da Lena Dunham.



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