Um fantasma ainda vivo escrita por Abel Antonio


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura e desculpe-me por isso.



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Quando me aproximei, vi uma figura parada em frente à catedral.

Em um mundo como aquele dos Amaldiçoados, não era tolice acreditar em fantasmas, muito pelo contrário. Os fantasmas eram uma espécie que corria de boca por boca no mundo dos vampiros. Se associavam mais a boatos do que a contos de fadas - ainda que muitos dissessem ser besteira, não me surpreenderia em encontrar um Amaldiçoado, principalmente por parte daqueles Giovannis, guardando um amuleto ou um pouco de sal em baixo do travesseiro para afastá-los.

Naquele momento, eu entendi o que fazia com que tantos vampiros falassem dos fantasmas. Eu insisto ainda em associar aquela figura à minha frente com um deles, mesmo que não seja verdade. Me sinto bem assim. É a forma mais útil de ilustrar o que eu vi naquela noite.

O preto da noite se perdia com o dos tecidos que ele usava. Se estendiam, bem passados demais para a situação vigente, como se alguém ali tivesse uma disciplina muito boa ou se arrumara para a situação. Optei pela primeira opção, me era mais cabível, o sabor era mais doce. Aquele escuro que se perdia no balançar singelo das vestes negras era como um mar de sombras com ondas calmas e, se não fosse pelo prateado do brilho que ele refletia da lua, eu poderia suspeitar que estivesse vendo coisas.

Da mesma forma, o branco do cabelo se perdia com o da barba e assim, com o branco da pele. Era como uma mancha alva em meio à negritude da noite. Deixando os contrastes de lado, a pelugem também se movia com o bater do vento e se espalhava como a névoa, formando uma auréola resplandescente ao redor da cabeça do homem.

Aquele homem me trouxe uma noção de tempo que eu havia perdido a muito, desde que fora Abraçado. Ela transmitia aquilo no olhar e na forma de movimentar os lábios secos em pronuncias silenciosas a seres que não eram do meu mundo. Na expressão mortal que eu apenas reconheci pelo meu constante contato com o mundo humano. Não era algo gasto pelo tempo; era algo construído por ele. Como uma estátua de mármore que levou uma vida toda, feita apenas para ela. Em meio à insanisade e à degeneração do mundo dos Amaldiçoados, aquela expressão era uma verdadeira aparição de outro mundo. Ela trazia um sentimento que eu, como vampiro, havia perdido a muito tempo, e isso me fez pestanejar em silêncio. Era estranho, mas era um sentimento puramente humano e eu não conseguia captá-lo com eficácia.

A esse ponto, tu deves pensar que sou louco. Desminto teu pensamento, rebanho.

Meu contato com a arte viera muito antes de ter sido amaldiçoado e era uma questão fundamental em minha vida. Conjuguei o verbo no tempo errado. É uma questão fundamental em minha vida. Talvez tenham percebido isso, com olhos que os meus humanos não podiam entender, e por isso fui transformado em um Toreador - eu não podia ter tido um destino melhor. Apenas os Toreadores viam o mundo da mesma forma que eu. Poética, ainda que a poesia se perdesse em falsos sentimentos. Bela, ainda que a beleza fosse vista em coisas muito inferiores às coisas verdadeiramente belas.

Dessa forma, o que aconteceu ali foi um contato com a arte que eu sabia apreciar. Eu não sou do tipo que vê beleza apenas diante de uma mulher nua, explodindo em líbido, como alguns depravados do meu clã insistem em fazer. Eu vi a poesia que era escrita nos versos daquele homem. Devia ser algo normal, pois eu estava habituado com aquilo a séculos. Mas não. O sentimento era sempre o mesmo. Era sempre o mesmo esfaquear ou golpe bruto. Era a única coisa que me mantinha longe da Fera.

E como um fantasma, a voz do homem se perdia no assobiar do vento. Ouvi com atenção e percebi que era dos meus - um fiel companheiro da figura divina, seu devoto e seu amigo. Uma parte de mim se familiarizava mais com aquele mortal do que com os próprios Membros que eram de meu cotidiano.

— Boa noite. - eu disse, me mantendo na sombra da macieira enquanto o rubor tomava minha face e escondia a palidez que os anos de Maldição me concederam.

O homem virou o rosto meio grau, apenas para forçar-se a ouvir, e voltou a fitar as portas e janelas escuras do lugar, todas completamente cobertas com tábuas de madeira uma sobre as outras.

— Está tarde - ele disse, a voz deixando soar com a rouquidão natural e grave de um cello. Mais um reflexo perfeito não só dos anos passados, mas do espírito construído. - Já virou o dia, não deviam ter pessoas por aqui.

Ele me lançou um olhar gentil, mesmo não encontrando meus olhos na escuridão. Gosto de pensar que um sorriso se formou em baixo daquela cascata de bigode branco.

— É verdade - respondi -, mas ainda assim o senhor está aqui.

Ele deixou uma bufelada escapar e uma leve curva se formou nos lábios em aprovação. Voltou a olhar para a construção.

— Você me pegou. Eu costumava viver por aqui. Todos os dias eu regava o jardim que existia na frente das janelas e esperava o pessoal entrar para começarmos. Eu gostava de ver as crianças brincarem aqui em frente e as moças andarem com seus amados por passeios longos ao sol. Aqui era um orfanato, sabia? - ele me lançou uma olhadela rápida. - Mas depois do ocorrido, ninguém voltou.

Ele não sabia. Alguém tinha voltado, sim. E ainda estavam ali.

Ele devia esperar que eu não descobrisse o que fora o "ocorrido", mas eu já sabia. Já era um amaldiçoado quando, décadas atrás, lera a notícia do incêndio do orfanato ao sul da cidade. O motivo ficou desconhecido, mas eu soube o que era. Brujahs.

Acenti com a cabeça em silêncio. O homem sustentou aquele silêncio por um pouco mais de tempo e meneou a cabeça, colocando o chapéu sobre a auréola branca que refletia a luz da lua.

— Se você pensou em me roubar, se deu mal. Não tenho nada além de ossos. - ele disse e deixou um riso baixo escapar. Eu me limitei a sorrir enquanto o observava se afastar, despreocupado.

— Não se preocupe, não te farei mal algum. - e não faria mesmo. Mas aqueles olhares que nos observaram durante toda a conversa fariam e, mesmo que eu quisesse, não poderia fazer nada. A noite era tempo de caça para o meu tipo. É triste, mas com minha idade, eu não me entristecia em saber que dali a alguns minutos, aquela poesia em forma de padre aposentado se tornaria alimento para meu tipo.

O rubor me esvaiu do rosto e eu apertei a capa sobre os ombros. Enquanto caminhei para dentro da catedral, pedi para Deus que sua morte fosse, no mínimo, bela como sua própria existência.


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