Diário do Narciso de Hyrule escrita por Thainá Zanello


Capítulo 1
O Diário do Narciso de Hyrule




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Era provavelmente o nosso último dia de acampamento, estava sentindo um pouco de ansiedade pelo próximo dia e alívio de nossa missão estar quase comprida.

Eu havia reportado a maior parte da aventura que vivemos em um caderno, era um alívio para mim, escrever me acalmava principalmente quando se está acompanhado de um grupo de insuportáveis que fazem parte de você, estes eram Blue, Red e Green.

Meus semelhantes haviam se organizado para montar suas tendas, Red e Green já haviam terminado as deles e foram a procura de madeira para a fogueira, Blue ainda batalhava para a armar corretamente, eu havia montado a minha bem antes, sobrando um tempo livre para escrever sobre nossos últimos agitados dias.

“Quinta noite.

Estamos aprontando o acampamento para a noite antes de chegarmos ao santuário para terminar o selo das trevas. Eu finalmente poderia dormir sem a preocupação de acordar com a Hyrule inteira destruída, preocupação essa que meus ¨irmãos¨ pareciam não ter demostrado durante toda a nossa jornada. Não posso culpá-los, eles não são a sensatez em pessoa.

Nossa última batalha foi desafiadora e surpreendente, nunca teríamos conseguido se não fosse por Shadow que sacrificou sua existência para ser o verdadeiro herói dessa lenda.

Eu não imaginava que haveria luz naquele coração sombrio, mas quando vi seus olhos nos últimos momentos de vida, ficou claro o seu arrependimento, sua alma estava limpa...”.

— Vio! Pare de escrever nesse diário como uma menininha e vem me ajudar com a tenda! – Blue estava se exaltando por qualquer coisa com sempre, o segredo para se dar bem com ele é não se ofender fácil e ser cooperativo, essas devem ser virtudes minhas também.

Eu guardei meu caderno de reportes e o ajudei com a barraca, Red e Green estavam voltando com madeira para a fogueira.

Nós alimentamos as brasas até se tornarem chamas, eu ficaria encarregado de manter o fogo aceso no primeiro turno da noite.

Enquanto os outros descansavam, eu observava a luz das chamas dançarem sobre as rochas que as impediam de se alastrarem, admirava-as consumir vorazmente cada galho de madeira seca que eu entregava a elas.

— Elas são lindas, não são? – escutei uma voz de traz de mim, me virei assustado, mas não havia ninguém – É uma pena eu ter demorado tanto para perceber.

A voz agora vinha da minha frente, não conseguia me virar, pois eu sabia de quem era a voz, era como a minha e dos meus “irmãos”, só que poderia dizer com certeza que não era de nem um deles. Era calma demais para ser do Blue, era melancólica demais para ser do Red, era profunda demais para ser do Green.

— Shadow... – ainda de costas para a voz, eu pronunciei seu nome, não como uma exclamação, não como uma pergunta, mas com um desejo de que fosse ele.

Eu me virei e lá estava, com suas vestes pretas e seu cabelo roxo escuro, ele segurava um galho seco com uma pequena chama morrendo na ponta, admirava-a com um rosto sereno, nunca tinha o visto com um olhar tão puro... Eram como lagos recém limpos, vê-lo assim me deixou feliz, ele começou a olhar para mim, e eu tentei não fazer contato visual.

— Eu pensei que você iria se assustar, como se tivesse visto um fantasma – ele me falou sorrindo, só então que percebi que eu estava sorrindo também – você estava me esperando ou algo do tipo?

— Eu tinha esperança que você voltasse – sussurrei não querendo que os outros acordassem.

— Esperançoso. Essa é outra das suas qualidades? – ele disse rindo, um riso inocente.

Shadow se levantou e se deitou ao meu lado, olhando para as estrelas entre a copa das árvores, eu me deitei ao seu lado e evitei olhar para o mesmo, fixei meu olhar nas estrelas que ele tanto olhava.

— Às vezes, eu penso que você herdou apenas qualidades – ele falou de maneira séria – Você é calmo, culto, paciente e leal.

O olhei com surpresa. Eu o havia traído, como ele podia ainda me consideras leal?

— Você olha pra mim só agora que eu te elogio? – zombando, era típico dele.

— Leal? – eu indaguei.

— Sim, leal e parece que modesto também  ele falou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo – você foi leal aos seus irmãos, foi leal a Zelda, leal a Hyrule.

— Você é mais compreensivo do que imaginava – digo aliviado – isso significa que você me perdoou?

— Eu que faço coisas horríveis, cruéis e desumanas, e é você que vem pedir desculpas? Vio, eu que deveria lhe perguntar, você me perdoa?

Fique sem reação por um segundo, virei meu rosto para esconder o constrangimento e o respondi.

— Sim, eu te perdoei.

Quando disse essas palavras, ele me respondeu com um riso fraco, senti sua mão tocar a minha e isso me fez sentir uma leve palpitação no peito.

— Isso é muito Indulgente da sua parte, acho que seus companheiros seriam assim também?

— Eles te perdoaram no momento que você destruiu aquele espelho, você é tão herói quanto nós.

— Então tudo aquilo aconteceu – ele disse alegremente – eu pensei que fosse só a minha mente tentando me consolar antes de desaparecer.

— Isso me lembra de que não te perguntei como você está aqui agora?

— Eu não tenho certeza de como sobrevivi, acho que foi... a minha vontade de viver e estar com você...

Eu tentei ignorar essa frase final, mas aquela pequena palpitação que eu sentia estava aumentando. Ele segurou a minha mão com mais força se aproximando um pouco mais de mim envolvendo-me em um abraço afetuoso.

— Eu não menti quando te disse que você é especial, especial o bastante para me fazer querer mudar, especial o bastante para me fazer querer viver – sua última palavra veio seguida de soluço, senti uma lágrima descer pelo meu ombro.

— Shadow, você está chorando?

— Não! – exclamou se afastando de mim e secando seus olhos rapidamente tentando impedir que eu visse suas lágrimas – Não olhe pra mim!

Me aproximei dele e segurei sua mão outra vez, cautelosamente eu sequei seu rosto com a outra.

— Não chore – consolei-o enquanto secava mais uma lágrima.

Ele fez uma pausa para respirar encostando seu rosto em meu peito, eu fiquei preocupado que ele escutasse meu coração bater, estava muito acelerado.

— Hoje é a sua última noite, não é? – sua voz foi um pouco abafada pelo meu peito, só eu poderia ouvir.

— Como você sabe? – indaguei levantado seu rosto do meu colo.

— Eu li no seu diário, você vai voltar a ser um com eles? – ele ainda chorava e tentava controlar voz.

— Você leu meu dia... caderno de reportes. Até onde?

— Até onde você escreveu, eu sou uma sombra estive sempre ao seu lado.

Quando eu percebi, o nosso tom de voz tinha se elevado, olhei para as barracas dos meus companheiros e não vi nenhuma movimentação, eu então puxei Shadow pelo braço através da floresta.

— Vio, oque foi? – Shadow questionou entre os tropeços enquanto eu o puxava.

Eu parei, nem eu sabia ao certo, foi uma sensação muito repentina de vergonha, aquele caderno não era para ser tão pessoal, agora eu nem conseguia olhar nos seus olhos.

— É melhor nós conversarmos em outro lugar, não acha?

Ele ia me responder, mas engoliu em seco, segurou o meu rosto para que eu olhasse para seus olhos.

— Olhe pra mim quando for falar comigo – eu senti meu rosto esquentar quando fui tocado pelas suas mãos de uma maneira tão reservada.

Deslizou suas mãos para minha cintura, abraçando-me de novo, dessa vez eu não compreendia a carícia repentina. Shadow era meu amigo, mas oque lhe dava intimidade para uma coisa dessa?

— Conheço um lugar perfeito – ele sussurrou no meu ouvido, senti um arrepio na espinha, mesmo sabendo que ele não me faria mal, havia uma mudança estranha no som da sua voz.

Agora era ele que me puxava pela floresta, eu tropeçava nas rochas e raízes do caminho até chegarmos em uma clareira, o chão estava coberto de flores brancas que brilhavam como a lua.

— São Narcisos Lunam, elas só desabrocham à noite e morrem ao nascer do sol – Shadow se a baixou para pegar uma delas – dá para acreditar que eu tinha medo dela? São inofensivamente lindas.

Shadow se jogou no tapete de flores, as pétalas flutuaram com impacto da sua queda e caíram lentamente sobre suas roupas negras. Seus cabelos negros cobriram parte de seus olhos, mas não por completo, podia vê-los brilhar como o lago de Hyrule, aquela cena era tão linda que seria digna de estar em um quadro. Sentei-me ao seu lado e fique observando.

— Violet, aquilo que você escreveu no seu diário sobre mim, foi muito bonito – eu ruborizei com isso, era para ser apenas um caderno de reportes, mas eu sempre me empolgava escrevia algumas coisas pessoais.

— Si-sim, foi? – tentei falar de maneira calma.

—Não sabia que você pensava em mim com tanto carinho – ruborizei mais ainda e percebi que ele também estava um pouco corado – até pareceu meio narcisista da sua parte.

— Narcisista? Você não tinha dito que só via em mim qualidades?

— Isso pra mim é uma qualidade bem fofa, alguém que gosta assim do próprio reflexo deve ser narcisista.

— Quem disse que eu gosto assim de você? – tentei ignorar o uso da palavra ¨fofa¨ se referindo a mim.

— Não sei, você que me diz.

Ele se aproximou de mim, acariciou meu rosto o levantando levemente e me beijou, eu não esperava isso dele, muito menos que seria tão gentil e suave. Eu retribui timidamente o beijo, mas logo me detive.

— Isso foi longe demais, Shadow, eu não posso me relacionar com você desse modo, eu sou só uma parte de alguém e hoje é minha última noite assim.

— Então aproveite, se você só tem essa noite – ele me abraçou me puxando pra cima dele enquanto estávamos deitados sobre as flores.

— E-eu não posso... – ele calou-me com outro beijo.

— Eu sei que uma infinidade de barreiras nos separam, mas eu queria entender isso que sinto por você. Só essa noite, por favor.

— Eu entendo, também me sinto assim, mas não quero que seja só essa noite.

Nos beijamos novamente, dessa vez mais amorosamente até eu perder o fôlego, estava ofegante mas Shadow ainda respirava normalmente.

— Violet, eu quero lhe pedir um favor.

— Q-qual seria?

— Eu quero escrever algo no seu diário, mas você só poderá lê-lo quando voltar a ser um com os outros.

Aquela ideia me intrigava, por isso concordei, pois naquele momento eu só queria aproveitar mais daqueles novos sentimentos que ele estava me proporcionando. Nos beijamos e trocamos carícias por mais alguns minutos até eu ser abatido pelo sono, encostei minha cabeça em seu peito e dormi sobre a cama de flores enquanto ouvia o som do seu coração bater.

No dia seguinte, eu acordei sozinho na mesma clareira, não havia mais nenhuma flor viva, eu procurei por Shadow, mas não vi a sombra em lugar algum, por fim encontrei no lugar onde estava deitado o meu caderno de reportes, me lembrei do que ele havia dito na noite passada, como prometido não o li naquele momento.

Voltei ao acampamento, Blue estava implicando com Red, e Green veio até mim preocupado.

— Você está bem, Vio? – indagou – O que aconteceu? Você sumiu.

— Eu fui atrás de algo que estava perto do acampamento – menti – era só um animal moribundo, eu estava cansado e peguei no sono pelo caminho.

— Nunca mais faça isso Vio! – Red exclamou – eu quase morri de preocupação quando acordei sem você aqui.

— Vamos logo – Blue nos apressou – é um longo caminho até o santuário da Four Sword.

Nós chegamos no santuário, Zelda já nos esperava para terminar o selamento das trevas, para isso era preciso devolver a Four Sword para seu pedestal. Blue estava agitado para terminar logo com isso, mas desanimou em pensar que nunca mais iria ver seus companheiros, Red não queria se despedir de nós e Blue o acalmou dizendo que nós seriamos um novamente. Todos se despediram, estaríamos sempre juntos, era oque eu pensava até me lembrar de que Shadow não estava conosco, dei um suspiro, era tarde demais para desistir, quando eu fincasse aquela espada, tudo voltaria ao normal.

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Estava feito, agora eu era Link, o herói de Hyrule, as trevas jamais voltariam, e a Zelda estava, segura, finalmente todo voltou ao normal.

Porém algo martelava meus pensamentos, era algo que eu tinha que fazer, mas oque era? O caderno, era algo haver com o aquele caderno, eu o abri, nele estavam anotações e reportes sobre a minha aventura, era divertido ler a narrativa daqueles momentos de maneira tão épica e pensar que tinha sido eu que havia escrito tudo aquilo, já estava no final da narrativa eu mal imaginava oque havia na última pagina, mas quando a virei, deparei-me com uma caligrafia totalmente diferente da minha.

“A pessoa que deve estar lendo essa mensagem não é mais a mesma daquela noite, só queria ressaltar que eu ainda estarei sempre ao seu lado mesmo que você não perceba ou não queira minha presença. Talvez isso nem sequer esteja fazendo sentido pra você agora, mas essas lembranças e esses sentimentos estão em alguma parte de você, em alguma noite eles vão florescer”.

Ao lado dessa página, havia uma flor seca. Eu a segurei cuidadosamente para não a despedaçar, senti uma pontada no meu coração como um alfinete sendo enfiado bem fundo no meu peito, uma lágrima escorreu dos meus olhos.

Nos dias seguintes, eu tinha em certos momentos flashes de memória de vários pontos de vista deferentes de cada alter-ego meu. Ficava estranho ver uma mesma situação não só de ângulos deferentes, mas com opiniões diferentes e de certo modo todas válidas para mim como se eu realmente pudesse reagir daquele modo em certa ocasião ou pensar desse jeito na mesma situação. Isso me deixava mais confuso cada vez que acontecia, eu entendia cada vez menos a mim mesmo, em vários momentos meus pensamentos se contradiziam, as lembranças mostravam lados meus que eu não conhecia.

Nessa noite, eu estava tendo novamente as lembranças fragmentadas de alguns momentos da minha aventura, os atos finais para ser mais claro. Eu me lembrei de Shadow nos seus segundos de existência finais, aquela cena era tocante por natureza, mas havia uma parte de mim que estava extremadamente entristecida, não era apenas uma agulha no meu coração, era como um corte a faca que doía de um modo insuportável. As outras partes minha se seguravam para não me descontrolar, meus olhos estavam cheios d’água, segurei meu travesseiro contra a boca para abafar um grito de agonia, meu pai não podia me ver assim, ninguém podia me ver assim. Corri para trancar a porta do meu quarto, depois de trancá-la, eu não senti mais força nas pernas e caí de joelhos, chorando inconsolavelmente, olhando para o chão e mais especificamente para a minha sombra.

Depois de chorar a maior parte no chão, eu me deitei na cama para continuar a chorar mais calmamente, sou orgulhoso demais para admitir que eu só desejava um ombro amigo naquele momento, de algum modo esse pedido foi atendido, eu senti uma mão tocar meu cabelo.

— Shadow... – aquelas palavras saíam como um desejo, isso me surpreendeu.

— Sim, sou eu – aquela voz era desejada por parte de mim, mas a mesma evitava que eu me virasse para o ver.

— Por que... por que eu fiquei assim por você? – eu indaguei a mim mesmo, mas de modo audível a ele.

Nesse momento ele me virou para sua direção ficando por cima mim de na cama, eu olhei para ele como se fosse um milagre, mas mesmo assim um milagre esperado.

— Olhe pra mim quando for falar comigo – ele disse com um leve desapontamento.

— Por... por que... eu não entendo – não consegui olhar nos seus olhos, virei meu rosto e mantive os meus olhos fechados com força.

— Tente se lembrar da última noite.

Shadow segurou as minhas mãos, eu não estranhei esse comportamento, as soltou cuidadosamente deixando entre meus dedos uma flor seca, a mesma flor do caderno.

— Tente se lembrar das flores, as flores que só florescem à noite.

Eu tive um pequeno flash de uma clareira... florida...

— Narcisos Lunam...

— Isso, você está quase lá... – ele disse em ânimo.

— Narcisos... narcisista...

Eu liguei as duas palavras na minha mente, tudo ficou claro, a lembrança daquela noite agora me confundia. Uma tomada de decisão mais improvável da minha vida, tudo dentro de mim dizia que era errado, mas eu fiz e senti prazer. Eu precisava desse prazer de novo, então me levantei agora olhando nos seus olhos azuis brilhantes, me aproximei e o vi sorrir, nos beijamos. Um beijo diferente dos outros era cheio de desejo meu e dele, mesmo assim não deixava de ser carinhoso e cheio de amor... amor?

Cessei o beijo e me distanciei de Shadow, meus pensamentos eram uma mistura de asco e júbilo. Eu me perguntava como cheguei a tal ponto, era estranha demais... uma sensação além do prazer físico, isso seria amor? Meu coração estava acelerado, minha respiração fraca, meus olhos doíam de tanto chorar.

— Link, eu posso ir embora se isso não te agrada, não quero te forçar a nada.

Coloquei a mão em meu peito e a outra no peito dele, estavam batendo no mesmo ritmo, o que eu sentia ele sentia também, eu realmente sou um narcisista.

Com a mão que estava no peito dele, o empurrei na cama. Fique por cima, tive um tipo de deja vu com aquela cena, nos beijamos carinhosamente, não adiantava mais eu lutar contra aquilo, eu era um narcisista, e ele o meu reflexo, um narciso que só desabrochava a noite.

Nessa noite, eu dormi ao seu lado, o segurava com força para não escapar de mim novamente, em vão, já que, como os Narcisos Lunam, ele desapareceu ao amanhecer, mas eu sabia que minha flor desabrocharia novamente ao cair da noite, ele era meu segredinho um segredinho que por um tempo escondi de mim mesmo: eu era o narciso de Hyrule.


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