Pedaços Transformados escrita por Kurohime Yuki


Capítulo 8
Ser


Notas iniciais do capítulo

Oh happy day! Oh happy day!



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ser

CALLIE (?), 9 ANOS. LUKE, 8 ANOS.

Não demorou muito para Callie estar cansada de tentar ser o que não era. Era tão irritante ser... ser uma menina. Ser uma menina enquanto não era uma menina. Era tão irritante ser o que não era, não ser como todo mundo. E por que ninguém a entendia? Ninguém via isso? Callie era um menino!

Callie não sabia explicar porque se sentia assim, ele apenas se sentia assim. Deslocado em si mesmo, desconfortável no seu próprio corpo, não sendo uma... menina.

Callie sabia que não era uma menina que nem sua irmã, que não gostava de vestido, de coisas fofas, de boneca. Callie sabia que Julie também não gostava dessas coisas, mas também sabia que sua amiga era uma menina. Julie podia brincar de carro e usar laços no cabelo sem ter vontade de arrancá-lo – o cabelo, o laço, tudo. Julie podia escalar uma árvore (com Luke gritando sobre braços quebrados) e usar vestido (com Luke relembrando-a sobre estar de vestido) sem se sentir desconfortável. E Callie não podia fazer nem uma dessas coisas, porque usar laços, vestidos, ser fofa, era coisas de menina. Mas ele não era uma menina.

Tão certo quanto o dia era dia quanto estava claro e a noite tinha luas e estrelas, embora estrelas nem sempre apareciam, Callie era um garoto. Não tinha um porque, não devia existir um porque, ele apenas era um garoto. Ele era... Ele. Que nem Luke.

E era fácil ser ele na casa dos Hemmings, porque ninguém ali o tratava como tivesse algo de errado com ele, que até ele se esquecia que havia algo de errado consigo.

A mãe de Luke e Julie, a senhora Hemmings – ou Liz, amor, como preferia ser chamada ao revirar os olhos enquanto era chamada de senhora Hemmings e revirando os olhos novamente ao dizer que preferia ser chamada de Liz, amor – nunca agiu como se o fato de Callie não gostar de estar calçado, sempre arrumar uma desculpa para pegar alguma roupa emprestada Luke – “mamãe vai ficar brava se eu aparecer com a roupa suja!” – fosse errado. Talvez porque sua filha era igualzinha.

O pai deles, Andrew – não senhor Andrew, não seu Andrew, não o pais de seus amigos, apenas Andrew – nunca olhou, nunca agiu, como se houvesse algo de errado com Callie. Novamente: porque sua filha era igualzinha.

Andrew era tão bom com ele, não apenas Andrew, como também Liz, não apenas com ele, com Malia, que Callie via-se desejando ás vezes que eles fossem seus pais. Eles iriam entender, eles iriam compreender, eles saberiam o que fazer. Devia ter algo, alguma forma, algum remédio – Andrew deveria saber de algo já que era médico – que o consertasse.

Andrew devia saber, pensou Callie não pela primeira vez ao olhá-lo. Ele queria ir lá e perguntar, deixar Luke e o basquete de lado apesar daquela ser uma chance de poder ser um menino, se sentar ao lado de Andrew e confessar o que sentia, mas... E se isso fosse errado?

Não ele, Callie sabia que seu corpo era um erro, mas e se as pessoas pensassem que o fato dele se sentir assim era errado?

Não era, não era, não era. Não podia ser.

Mas e se... e se ser “ela” fosse algo definitivo?

—O que foi? – perguntou Luke finalmente, abaixando a bola que segurava ao invés de tentar jogá-la para a cesta, não aguentando. Callie nem estava marcando-o!

Toda vez que Luke dizia "ela", Callie fazia uma careta e Luke já não estava aguentando mais isso. O pior era que ela nem fazia isso consciente. Callie o respondia normalmente, mas, numa fração de segundos antes de responder, ela fazia uma careta e Luke já estava cansado disso.

—Do que você...

—Qual é o seu problema com "ela"? – Mais uma careta. – Toda vez que eu te chamo por ela você faz uma careta.

—E-eu... – gaguejou Callie, desviando o olhar.

Ela não queria falar disso, percebeu Luke, mas não importava. Forçar as pessoas a falarem o que não queria era quase um dom para Luke Hemmings, seu super poder especial.

—Diga logo – exigiu ele.

Callie apertou os lábios, recusando a se dizer, e os dois ficaram assim, encarando um ao outro num impasse, nem um querendo nem disposto a recuar. Quem piscasse primeiro perdia. E Callie não iria piscar, não iria perder de propósito para fazer Luke feliz. Se não tinha falado com Malia, sua irmã, ele com certeza não falaria com Luke, que não era nem... Luke era seu amigo, mas não era seu amigo, não como Julie era.

Talvez por isso tenha falado.

—É que eu não gosto disso – desabafou Callie. – Isso tipo ela. Eu também não gosto muito de Callie, mas tudo bem, dá para levar adiante, mas... – Luke não esperava nada dele, não o conhecia, não tinha expectativas, mas ainda assim era difícil. Respirando fundo, Callie confessou, devagar, hesitante e com medo, recolhendo-se para si mesma com medo do que aconteceria, mas não com medo o bastante para não dizer aquelas palavras. Tentar era a resposta, era o primeiro passo; tentar era o que ele iria fazer. – E-eu não me sinto uma garota.

E dizer aquelas palavras foi como... Foi bom. Aquelas palavras trouxeram lágrimas aos seus olhos e calor ao seu coração. Era quente, seguro, confortável. Era certo. Ele não era uma garota, ele não era uma garota... Ele não era uma garota! Era tão bom ouvir aquele eco no tom da sua voz, saber que havia conseguido dizer aquilo.

—Você não se sente uma garota – repetiu Luke, não entendendo. Mas tudo bem. Ele não deveria entender, esse era o tipo de coisa que se balança a cabeça. Isso Luke sabia. Se Callie não se sentia uma garota, e daí? Ela e sua irmã mais pareciam garotos de qualquer jeito. – Como você quer chamada? – E continuou ao ver a confusão no rosto dela: – Você disse que não gosta muito de Callie, não foi? Então como você quer ser chamada?

—E-eu não sei – gaguejou Callie, surpresa. – Eu nunca pensei nisso.

—Tudo bem.

Luke balançou a cabeça novamente. Ele era um expert em balançar a cabeça uma vez, duas vezes, quantas vezes fosse necessário – era uma habilidade adquirida de tanto fingir que ouvia sua irmã mesmo não a ouvindo. Mas ele estava ouvindo Callie que não queria ser chamada de Callie e nem sabia o que queria, porque sabia que aquilo era sério. Importante. Porque pela primeira vez Callie não tinha piscado os olhos enquanto eles se encaravam, não tinha recuado. Aquilo era sério. E Luke não tinha desistido, não deixou para lá. Aquilo era sério.

—O que vocês estão fazendo, idiotas? – chamou Julie. Quando ninguém lhe deu atenção, ela usou sua licença como juíza e apitou. – Callie? Luke? Oi? Vamos? Jogar? Olhar para mim?

—Ela não gosta de Callie – anunciou Luke sem desviar os olhos de Callie, que olhou para ele como se planejasse seu mal.

Luke tinha vontade de zombar dela como sabia que sua irmã faria, porque Callie achou que ele iria fazer o que? Callie tinha dito a ele, havia confiado seu segredo a ele, então Luke podia muito bem decidi se iria dizer a Julie ou não, porque aquele era seu segredo também e ele compartilhava com quem quisesse. E não existiam segredos entre ele e sua irmã, então é claro que Luke diria a ela e Callie sabia disso. Callie tinha dito esperando que ele dissesse.

Luke era um gênio, ele sabia. E uma boa pessoa, porque ele nunca que iria dizer algo se alguém pedisse segredo, mesmo que fosse para sua irmã, mas... Callie não havia pedido. A culpa era dela.

—Quem gosta de Callie? – zombou Julie.

—Ela prefere ele – completou Luke, percebendo que se Callie não era uma garota, então era uma menino. Ao menos ele achava que sim. – Não é?

—Você é um idiota? – perguntou Julie. Luke iria brigar com ela por chamar Callie de idiota quando percebeu que sua irmã falava com ele. – É claro que ele prefere ser chamado de ele. Ele é um menino, não é, ele? E nós precisamos de um nome para você que não seja ele, porque isso está me deixando confusa... Ei, Malia – gritou Julie enquanto corria de volta para casa. E parando antes de voltar para ex-Callie. – Estou feliz por você ter dito isso a Luke... Não. – Ela parou. – Estou feliz por você ter dito isso.


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Notas finais do capítulo

Até hoje nunca escrevi (não que eu me lembre) algo melhor do que: Tão certo quanto o dia era dia quanto estava claro e a noite tinha luas e estrelas, embora estrelas nem sempre apareciam, Callie era um garoto



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