Guerra e Paz escrita por Kimonohi_Tsuki, JulianVK


Capítulo 8
Capítulo VII - Era mitológica.




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Quando voltaram à terra, após abandonar o domínio das Moiras, Athena levou Shun até uma parte escondida do templo do Grande Mestre*, por um alçapão que ficava oculto embaixo do trono do patriarca, ali desceram uma enorme escada corroída pelo tempo. Teias de aranha evidenciaram que o lugar não era visitado em muitos anos, talvez séculos, aos pés da grande escadaria, contudo, não havia nada.

Antes que qualquer pergunta pudesse ser feita, Athena colocou seu cetro perante o que parecia uma parede lisa de mármore. A mesma começou a brilhar num intenso dourado, para em seguida as pedras começarem a se recolher sobre elas mesmas, como enormes engrenagens feitas de pedra, abrindo aos poucos uma passagem.

— ...Isso é...Incrível - O cavaleiro de Andrômeda não pôde deixar de exclamar, encantado.

"...Tenho que concordar..." - A voz em sua mente entoava, claramente interessada na situação.

Athena apenas sorriu misteriosa, adentrando ao lugar e fazendo sinal para Shun a seguir. Desde que voltaram à terra, a deusa apenas disse que queria lhe mostrar algo, e então iniciaram a caminhada até este lugar.

Assim que pisaram no local, treze chamas azuis em arandelas douradas de ferro iluminaram todo o ambiente, com o mesmo brilho espectral que possuía o fogo do grande relógio do santuário. Cada uma das tochas era decorada com um símbolo zodiacal, que parecia pulsar com o brilho azulado, como se a alma dos antigos cavaleiros recepcionassem os recém-chegados.

O salão de mármore frio, úmido e pouco iluminado lembrava de algum modo os aposentos do trono de Hades, Shun espantou-se de sobremaneira ao perceber que se sentia cômodo nesse ambiente tão funesto.

Talvez a sensação não viesse dele exatamente. Notava cada vez mais que sua suposta Psique, além de possuir uma personalidade própria, oposta à sua, também parecia capaz de produzir suas próprias emoções. Sensações essas que Andrômeda acabava vivenciando em sua carne. Ao ver as chamas tão similares ao fogo fátuo, certa nostalgia invadia seu peito, uma tristeza melancólica, como ao lembrar-se de algo já perdido no passado.

— Shun - Contudo, Athena o tirou de seus devaneios. – Eu ainda pretendo fazer uma cerimonia para tornar isso oficial, contudo, isso agora te pertence.

Eles se aproximaram a uma das arandelas, podendo assim ver que ela ocultava um altar negro de mármore que se fundia completamente na escuridão. Acima dele, haviam vários pergaminhos, alguns livros, pedaços de tecido dobrado e um rosário. Subindo a vista o cavaleiro notou que o símbolo que adornava aquela tocha era o da constelação de virgem.

— É ensinado a cada cavaleiro de ouro que ele deve passar seus ensinamentos a adiante, a fim de propagar seu conhecimento e força para as próximas gerações que defenderam sua casa zodiacal – Athena recitava em tom melancólico, a face amável parcialmente oculta pelas trevas da escuridão do recinto – Contudo... Nem sempre há tempo, antes que a linha de sucessão seja rompida. – Ela para, fechando os olhos, como num silencioso luto pelos cavaleiros do passado – Alguns guerreiros, devido ao seu pungente dever para com a humanidade, acabam por perder suas vidas muito cedo, não tendo como ensinar a outros seu labor.

Ela se virou para Shun, que pendia sua atenção entre a deusa e o pequeno altar. Seus olhos brilhantes como cristais pareciam guardar a dor e o fardo de todos os seres em seus ombros.

—...Para tanto, existe este lugar Shun. Onde os antigos mestres sem pupilos podem deixar para os jovens protetores o segredo das estrelas – Ela se aproximou e tocou os pergaminhos – Estes aqui pertenciam a Shaka. Ele me pediu que guardasse quatro dias antes do inicio da guerra santa. Com suas imensas habilidades, tenho certeza que ele previu sua própria morte e quis prevenir que sua constelação ficasse sem um guardião à altura.*

Andrômeda abaixou sua cabeça em respeito, lembrando-se da figura imponente de Shaka, o quão implacável foi quando tiverem que enfrentá-lo na batalha das doze casas, chegando até mesmo a deixar nas portas da morte seu irmão Ikki. Também recordava vividamente que era ele que acompanhava Athena quando sua deusa descobriu que Hades havia tomado seu corpo, se dependesse do antigo guardião de virgem, agora estaria morto, pois acreditava que isso era necessário para por fim ao deus do submundo.

Talvez tivesse razão...

Muitas vezes, mesmo que não desejasse, o teve como inimigo. Pouca oportunidade houve para vê-lo como um grande aliado. Ainda assim, admirava sua presença e se perguntava se podia estar à sua altura algum dia. 

— Eu também nasci regida pelo signo de virgem. – Athena tocava os papeis com carinho, como se assim pudesse transmitir todo o amor que sentia pelo sacrifício daquele que o escreveu - A constelação regida pela minha irmã Dice, a personificação da justiça. Não vejo signo mais adequado para que defendas Shun.

Ela pegou os pergaminhos e livros com as duas mãos e fechou os olhos como numa diminuta reza, voltou a abri-los fitando uma vez mais seu futuro guardião.

— Com esses ensinamentos, acredito que você pode alcançar o poder do signo mais próximo dos deuses. Você já possui a força, já o demonstrou em mais de uma situação, te falta apenas a doutrinação adequada para ministrá-lo com maestria.  – Ela esticou as mãos, seu cosmo sábio e amoroso emanando por todo seu corpo, como se reforçando suas palavras e a confiança que sentia por seu cavaleiro. Shun ergueu ambas as mãos para receber sua herança – Tenho certeza que os preceitos descritos nesses papeis te ajudarão a alcançar plenamente suas habilidades e por consequente, ajudar Seiya a se recuperar.

— Eu farei meu melhor Athena. - Respondeu com respeito inclinando mais sua cabeça num comprimento japonês.

Ela sorriu doce e sincera, completamente crente que o mais bondoso de seus cavaleiros conseguiria cumprir essa missão.

— Eu te aconselho a ir para algum lugar afastado para que melhor possa espairecer sua mente. O que acha da Ilha Andrômeda, onde realizou seu treinamento? Tenho certeza que a amazona June ficará muito feliz em te ver. – Saori não pôde deixar de rir suavemente para a expressão surpresa e ansiosa que seu cavaleiro fez ante a ideia de rever sua velha amiga – Muito bem, a avisarei de sua chegada pelo cosmo, irei pedir para Kiki te levar por teletransporte. Também te camuflarei com minha energia, para ter certeza que poderá expandir e treinar sua cosmo energia sem alertar ninguém.

— Muito obrigado senhorita Saori – Sorriu, pensando na amiga que não tinha chegado a ver desde a batalha das doze casas.

Lembrava plenamente que naquela ocasião, a Amazona veio lhe informar da morte do querido mestre de ambos, Daidalos, pelas mãos do cavaleiro de ouro de Peixes e Escorpião* por ordem do falso grande mestre do santuário. Foi uma reunião triste, e a jovem ainda entrou em conflito consigo para tentar impedi-lo de lutar por Athena contra os cavaleiros que foram enganados pela influência maligna de Saga. Desde então não haviam mais se reencontrado.

Novamente estava perdido em pensamentos a tal ponto que não reparou que Athena havia tomado a dianteira e saído do cômodo, estava a ponto de segui-la quando algo chamou sua atenção.

Era como um som agudo, semelhante a quando se atingia grandes alturas e seu ouvido fechava e fazia sons estranhos e abafados. Olhou ao redor tentando localizar a origem do estranho fenômeno, mas estava completamente sozinho com exceção das treze chamas que continuavam a queimar fátuas.  

“Deve ter sido impressão” – Pensou

“...Não, não foi sua impressão...Alguém ou alguma coisa está te chamando...” – A voz o alertou – “...Parece vir da oitava arandela...”

Hesitou, escutando os passos de Athena cada vez mais distantes, ao tempo que o fenômeno acústico ficava cada vez mais agudo.

“...Dificilmente você entrará nessa sala outra vez,  ainda mais sem a presença de Athena...” — A voz tentava convencê-lo a investigar.

“Mas uma razão para eu não me intrometer”  - Começou a caminhar em direção a saída, o agudo tornando-se ensurdecedor – “Seria um desrespeito à deusa e à alma dos antigos cavaleiros”

A psiquê bufou em sua cabeça, claramente contrariada.

“...Tu ages como um cãozinho de Athena...” – Impôs, fazendo a mesma dor de cabeça que sentiu no monte olimpo voltar aos poucos.

Shun ignorou, seguindo sua deusa enquanto o som diminuía lentamente enquanto subiam as escadas.

“Assim que estivermos longe da Senhorita Saori, eu preciso saber exatamente quem é você” - Falou com sua mente em tom determinado.

“...Que assim seja...” Suspirou cansado “...Quando estivermos bem longe de Athena eu lhe explico tudo...”

Ao retornarem ao salão do grande mestre, Shun esperou ao lado da divindade enquanto esta se comunicava através de telepatia com Kiki e June. O som de antes havia desaparecido completamente assim que a passagem foi fechada.

“...A proposito...” A psique recomeçou em tom de conversa, muito embora ainda parecia estar contrariada, se a dor de cabeça era algum sinal “...Tu deves aprender a manejar a telepatia. Átropos não teve quaisquer dificuldades em invadir tua mente. Deve doutrinar-se para que isso não ocorra mais ou nós teremos problemas...”

Ia contestar o uso de “nós” na frase, mas Athena chamou sua atenção.

— June estará encantada de te receber  - Informou com um sorriso amoroso – E Kiki está a caminho. – Seu sorriso morreu um pouco – Shun...Me perdoe, por colocar tanta pressão sobre você. Assim tão de repente. Você, Seiya, Shiryu, Hyoga e Ikki já fizeram tanto por mim, pela terra...- Com uma de suas mãos, ela tocou a região de seu coração – Agora...Nossos companheiros de ouro pereceram na batalha e ficamos novamente apenas nós seis. Sei que podemos contar com Jabu e os outros, Shina, Marin e Kiki. Contudo, sinto com pesar em meu coração que o santuário nunca mais será o mesmo, foram tantos sacrifícios... E Seiya...

Uma sutil lágrima ameaçou formar-se no rosto da divindade, Shun apiedou-se da doce jovem que tinha a culpa como cabeceira de sua cama, ajoelhou-se com a perna direita encolhida ao chão, com a esquerda apenas sobre seu pé, no qual apoiou seu braço, inclinando a cabeça em respeito.

— Athena, eu prometo que darei o meu melhor para alcançar as habilidades esperadas de mim como herdeiro da constelação de virgem. - Proferiu com lealdade – Farei de tudo para trazer nosso amigo Seiya de volta para nós.

“...Um perfeito cãozinho...” – Entoou a Psiquê com sarcasmo, mas o cavaleiro novamente a ignorou.

Saori sorriu abertamente, seu cosmo brilhante reluzindo ao seu redor, mais forte pela confiança que seu cavaleiro lhe transmitiu.

Assim que se reergueu Kiki apareceu. Parecia ter crescido um pouco desde a última vez que o viu, mas o que mais chamou sua atenção foi sua expressão triste, não esperava menos depois que ele soubesse do sacrifício de seu mestre Muh.

— SHUUUN! É TÃO BOM VÊ-LO BEM!! – O menino não ligou para cerimônias e se lançou nos braços do cavaleiro, abraçando-o com uma força esmagadora, como se temesse que ao soltá-lo o perderia também.

Athena apreciou a doce cena, o jovem ariano abraçando o virginiano pela cintura, enquanto tropeçava nas palavras ao tentar expor suas preocupações. Duas constelações tão afastadas, e ao mesmo tempo tão intimamente próximas.

Ao cabo de dez minutos o menino se acalmou e Saori pôde explicar melhor o que deveria ser feito.

— Então Kiki – Explicava a jovem ao seu futuro dourado de Áries - Veja na mente de Shun o local onde fica a ilha de Andrômeda.

Com essas palavras o de orbe esmeralda congelou. Olhar em sua mente?! Kiki, apesar de jovem, era um excelente telepata! Facilmente ele poderia perceber que havia algo errado com ele.

“...Eu me ocultarei o máximo que puder, por isso disse que tu tens que praticar tua mente...” Reclamou a voz em tom solene “... Mantenha-se tranquilo e ele não notará nada...”

Respirou fundo, tentando não pensar na voz que insistia em conversar consigo desde sua empreitada no monte Olimpo, não queria que isso viesse a tona agora, não antes que ele mesmo tentasse entender o que estava acontecendo. A guerra santa por fim havia acabado. Não queria começar um grande alvoroço para os cavaleiros sobreviventes que ainda se recuperavam.

“...Eu disse mantenha-se tranquilo! Tente pensar em algo agradável...”

Engoliu em seco. Como faria algo assim?! Ainda mais nessa situação. Então sua mente vagou para seu objetivo. Ilha de Andrômeda, o lugar que foi seu lar por tantos anos, onde conheceu seu mestre Daidalos e sua querida amiga e Amazona June. Ela tentou convencê-lo várias vezes a deixar a ideia de ser um cavaleiro, contudo, ele sempre se manteve firme, devido à promessa que fez a seu irmão Ikki antes de se separarem. Ambos voltariam a se ver como cavaleiros.

Então, o rosto de June veio a sua mente. A amazona perdeu a máscara em meio a seu último confronto, permitindo o guerreiro a ver sua face pela primeira vez. Seus olhos azuis tão profundos como o oceano, seus lábios rosados, sua pele de pêssego.

Vagamente notou o momento em que Kiki se aproximou, tendo que inclinar-se um pouco para a criança alcançar o topo de sua cabeça.  Fez então um último aceno para Athena e ambos desapareceram.

— Aqui estamos! – Anunciou Kiki voltando a sua alegria característica, sentindo-se satisfeito por poder estar sendo útil – Ilha de Andrômeda! Quando você precisar voltar pode...Hãa...

— Não se preocupe Kiki, praticarei minha telepatia enquanto estiver aqui. Quando puder retornar, te avisarei – Informou aliviado que o menino aparentemente não viu nada de errado em sua cabeça – Certifique-se de cuidar de Athena enquanto eu não estiver tudo bem?

— Pode ter certeza disso!  - E no instante seguinte ele sumiu no ar..

Soltou a respiração que sequer notou que estava segurando ao ficar finalmente sozinho. Foi deixado numa superfície rochosa e deserta, fruto do enorme vulcão que tomava boa parte da ilha. O clima era terrivelmente quente como se lembrava, embora o vento soprasse com violência. 

“...Muito bem, conseguimos...” – Comentou a voz, a essas alturas a dor de cabeça já havia passado. “...Desejas falar sobre minha identidade agora ou-...“ Contudo, o som de passos frenéticos interrompeu a continuação da frase.

Uma jovem mulher se aproximava com caminhar rápido, cabelos longos e loiros até o quadril que flutuavam ao vento,  vestia uma calça rosa e uma blusa branca longa que esvoaçava para trás, fazendo parecer como se asas estivem prestes a surgir de suas costas. Shun prendeu a respiração com a visão.

“...Esta...É June?...” – A voz parecia surpreendida “... Ela não estava na guerra santa, estava?...”

— Shuuun!– Sua voz suave exclamava, mesmo sob sua mascara.

“Não, não estava” – Respondeu simplesmente, sorrindo e acenando para a jovem.

“...Estranho, ela-...” Repentinamente uma forte dor atingiu seu coração, fazendo-o apertar o peito com força, numa expressão de angústia.

— SHUN! – A voz da jovem, apesar de desesperada parecia cada vez mais distante.

Caiu de joelhos arfando, a dor passando completamente para seu crânio, como se este estivesse ao ponto de rachar em dois.

“O que...O que está fazendo?!” – Tentou perguntar a sua psiquê sobre as sensações repentinas que arrebatava-lhe o ar, contudo, não obteve resposta.

Levou as mãos a cabeça quando tudo ao seu redor se tornou negro, seu peito ainda ardendo em brasas, notou que lágrimas escorriam por seus olhos, porém, elas eram feitas de sangue. Encurvou-se mais contra o próprio corpo, de modo que sua cabeça batia contra seus joelhos, a dor o consumindo ao ponto de quase fazê-lo gritar, mas parecia ter perdido a voz... Como se já tivesse gritado por muito tempo.

De repente, sentiu dois pés a sua frente. Mas não era June. Não estava mais no tempo real, era como estar preso dentro de uma ilusão.

“Ainda não meu senhor...” – Uma forte voz feminina, porém abafada, proclamava. “Ainda não...”  

Um forte cosmo verde foi emanado, para logo sua consciência ser abraçada pela escuridão total.

Quando recobrou os sentidos, ou parte deles, estava novamente no mesmo campo aberto e florido de sua subconsciência, o mesmo que visitou assim que chegou ao território das Moiras.

E novamente, ali estava sua Psiquê. Porém agora seus cabelos eram negros e a pele branca como papel. Estava sentada de joelhos, sustentando um olhar sem qualquer expressão. Parecia desacordada mesmo mantendo os olhos abertos.

Aproximou-se devagar, notando que os olhos de seu quase reflexo pareciam estar nublados por uma espécie de nevoa verde que o circulava como uma serpente. Hesitou. Devia tentar acordá-lo? Talvez o melhor fosse que continuasse nessa espécie de transe, ainda mais se suas suspeitas fossem corretas... Porém, ao mesmo tempo, não obteria suas respostas se o mantivesse assim.

“Olá?” – Tentou chamar – “O que está acontecendo?!”

Tentou tocar a face contraria, imediatamente sentindo uma corrente elétrica passar por todo seu corpo, sobressaltando-se e afastando-se, ao tempo que seu outro eu parecia recobrar os sentidos, olhando para os lados confuso.

“...O que houve?...” – Seguiu perdido antes de encontrar o rosto de Shun. Seus olhos agora haviam recobrado o foco, e ao invés da cor esmeralda de sua contra parte, exibia seus próprios olhos safiras. “...O que está fazendo aqui? Ficou inconsciente outra vez?...”

“Eu não sei, achei que fosse sua culpa” – Colocou a mão na cabeça – “Tudo que eu me lembro é de ter chegado a ilha de Andrômeda e avistar June e então...

“...E então?...” – Insistiu a figura.

“Eu não sei, não consigo mais lembrar” – Tudo em sua mente parecia ter se tornado negro de repente depois que sentiu aquela corrente elétrica. ” Mas você parecia...Em transe ou algo assim.”

“...Algo apagou nós dois... “ – Levantou-se devagar,  a igual que Shun com a mão sobre sua cabeça. “...Isso não deveria ser possível...A menos que você estivesse realmente muito cansado...”

Cada vez os dois pareciam mais diferentes. Shun tinha o corpo mais esguio, pele mais colorada, cabelos longos e esverdeados, a igual que seus belos olhos. Ao tempo que sua contraparte agora parecia mais alta, mais robusta, cabelos igualmente compridos, porém, negros, pele branca como o mármore e olhos de um intenso azul vívido.

Isso havia diminuído para zero suas duvidas sobre a identidade da voz em sua cabeça.

“Você...”- Recomeçou, chamando a atenção do outro que o encarou em seus olhos “...Você é...Hades, não é?”

A sombra do que foi o antigo deus dos mortos dedicou-lhe um sorriso monalistico, inclinando levemente a cabeça em reconhecimento.

“...Pensei que nunca farias a associação cavaleiro de Andrômeda...”

— Eu apenas...Estava com medo do que viria ao assumir que você ainda estava vivo. –Admitiu sem deixar de encarar a divindade.

“...Vivo é...No momento uma palavra muito forte para expressar o que agora sou...” Colocou com melancolia. “...Athena destruiu meu corpo e partiu minha alma, no momento...Não passo de um fragmento do que fui no passado, preso dentro da única coisa que ainda me ligava ao plano dos vivos...”

— Ou seja, eu.

“...Exatamente...”   

—...Então - Colocou com amargura – Seu plano é possuir meu corpo outra vez?! Por que então quis nos ajudar no assunto de Seiya, dizendo-me o que fazer com as Moiras?! Isso não faz sentido.

“...Voltar a possuir teu corpo é algo que, para minha infelicidade, não sou mais capaz de fazer...” – Começou a caminhar a passo lento, até parar de frente para o cavaleiro, encarando seus olhos “...Desde o fim da era mitológica, nossas almas estão ligadas Shun. Reencarnação após reencarnação tu sempre foste a alma mais pura da terra, e eu sempre te possui e lutei contra Athena, o que resultava na sua morte e no meu selamento. Mas dessa vez foi diferente...”

Seguiu caminhando, dando as costas a Shun, enquanto esse tentava assimilar a informação de que sempre foi nada além de um receptáculo divino de Hades.

“...Dessa vez, tu conseguiste expulsar-me de teu corpo, com a ajuda do sangue de Athena. Isso me forçou a usar minha própria carne na luta final nos campos elísios. Ao ferir mortalmente Seiya, sua deusa se vingou destruindo meu corpo e alma. Por favor, não pense sequer por um instante que eu vós ajudei com o intuito de salvar a vida de Pégaso. Meu único interesse era o bem estar físico seu e da espada do Submundo...”

—...Eu...Não compreendo – Tentava encaixar as peças em sua mente - Por que meu bem estar?! E qual a importância dessa espada, para até as moiras a quererem inteira?!

“...A espada é a concentração de todo o poder que eu criei para o submundo, com minha morte tudo foi a ruínas como Átropos lhe disse. Porém ainda há dois fragmentos do reino dos mortos, e são eles que impedem que ele desapareça por completo e colapse o mundo dos vivos. A própria espada no peito de Pégaso, e tu Shun...”  – Virou-se encarando o rosto pálido do cavaleiro – “...Eu não podia permitir que vós, tu e Athena, viajásseis para destruir a lâmina, mesmo que para isso eu tivesse que indiretamente ajudar Pégaso...”

Shun deixou-se cair sobre suas pernas, completamente lívido. Sua simples vida significava a existência do inferno?! Ele nunca seria realmente livre da influência de Hades?!

“...Eu não espero que tu entendas, mas teu mundo precisa de um submundo. Faz parte do equilíbrio do universo...”   

“Você tem razão, eu não entendo” – Encarou o gramado frio, com lágrimas de pesar se formando sobre suas pálpebras “Como um lugar tão terrível e cheio de sofrimento possa ser necessário?”

“...As almas precisam de um lugar para ir após sua morte, caso contrário, ficarão vagando eternamente...” seguiu encarando o guerreiro com um olhar neutro “...Enquanto tu e a espada existirem, ainda existe um mundo dos mortos, embora ele esteja devastado e em ruínas, será suficiente para conter a maioria das almas de lá, pelo menos por enquanto, sem que elas invadam o mundo dos vivos. Porém, nenhuma nova alma poderá entrar no submundo, ficarão presas a terra após sua morte assombrando os mortais. Achas que isto é consolador?...”

Caminhou a passo lento para onde Andrômeda ainda encarava o chão, tentando absorver o assunto.

“...O submundo também era responsável de encaminhar as almas pra a sua reencarnação. Como tudo está agora apenas poucos espíritos conseguirão achar o caminho e tornar a nascer. O que fará com que cada vez mais bebês nasçam mortos por não possuírem alma...” – Shun o encarou, chocado com esta informação –“...Compreende Andrômeda?  A importância de existir um mundo inferior? Até que um novo deus tome posse de meu reino, tu deves seguir vivo, e certificar-se que a espada esteja segura...”

“E quanto...A você?! Como posso saber que não tentará emboscar Athena?!” – Acusou, limpando seu rosto.

Hades ajoelhou-se a sua frente.

“...Acredite em mim quando digo que tudo o que mais desejo é ver a meretriz queimar nas profundezas do tártaro enquanto aprecio sua carne desgarrar-se de seus ossos...” Os olhos esmeraldas o observaram horrorizados e hipnotizados perante os orbe safira, sua voz melodiosa e veludada “...Eu poderia tentar te enlouquecer aos poucos, bem lentamente, ao mesmo ponto de loucura que aquele cavaleiro de ouro de gêmeos que ressuscitei...”Tomou o queixo do cavaleiro em suas mãos, mas não havia sensação de toque humano, em seu lugar era como ser envolvido em panos esquecidos no relento da noite “...Te fazer mergulhar na insanidade e demência até te tornar nada mais do que um assassino frio, seria divertido, seria interessante...”

Shun saiu da espécie de transe que havia entrado, soltando-se do deus e colocando-se de pé em posição de ataque. Hades apenas o observou, com um sorriso ladeado no rosto.

“...Porém, isso exigiria muito tempo e uma guerra interna quase tão grande quanto as que eu travava com Athena...” o senhor do submundo sentou-se sobre o gramado infinito, com uma expressão melancólica “...Eu estou muito cansado para isso agora, tantas e tantas guerras sem fim travei por séculos . Por hora, eu apenas irei observar...”

“Eu não confio em você!” – Se manteve em posição de ataque mesmo que estivesse sem sua armadura ou correntes.

“...Tu terás tempo para confiar, estamos ligados agora Shun Kido, duas consciências no mesmo corpo. Duas almas em uma...” — Sorriu misterioso “...Podemos aprender a lidar com isso, ou viver em eterna guerra. Mas saiba que há algo que nós dois temos em comum. O desgosto para com as batalhas. A paz, sem duvidas, seria o melhor caminho a se escolher...”

— Shun?! – A voz familiar de June pôde ser escutada sobre aquela planície infindável.

“...De fato, é uma doce voz...”— Declarou o deus voltando-se uma vez mais a Shun “...Por hora, vamos cooperar. Como te disse, eu desejo resguardar a espada e tu precisas fortalecer tua mente se almeja verdadeiramente salvar teu amigo. Eu estarei dormindo em tua consciência.  Caso precise de mim, concentre-se e fale com o interior de tua alma...” 

E mais uma vez, antes que pudesse responder, sua consciência se encontrava no mundo real, com a amazona apreensiva ao seu lado, sua mascara não estava presente, revelando os intensos olhos azuis que o observavam com apreensão.

—...June...? – Tentou falar, sua voz saindo áspera por sua garganta.

— OOOOOH SHUUUN! – Ela simplesmente se jogou em seus braços, lágrimas intermináveis escorrendo por sua face – VOCÊ ESTÁ BEM?! EU FIQUEI TÃO PREOCUPADA!

Abraçou-a contra seu corpo sem pestanejar, sentindo o cheiro de flores de seu cabelo, o que transmitia uma incrível sensação de paz. Acariciou aqueles fios de ouro sem pressa enquanto ela tinha o rosto contra seu peito, certificando-se que seu coração ainda batia. Só então demorou seu olhar para onde estavam. Um quarto branco, com apenas uma cômoda rustica e cama pequena sem adornos, além de uma janela de madeira que dava vista para o mar. Não esteve nesse lugar muitas vezes, mas sabia que era o antigo quarto de seu mestre Daidalos. Parecia intacto, apesar da destruição que Afrodite e Milo causaram quando mataram o cavaleiro de prata.

Porém, não ia pensar nisso agora.

Tomou com delicadeza o queixo da amazona e encarou aquela face aveludada que havia se tornado ainda mais bonita do que se lembrava.

— Olá June. Desculpe-me te preocupar, esses últimos tempos foram...Desgastantes...Por favor, pare de chorar – Com suavidade limpou as lágrimas de seu rosto.

— Me perdoe Shun, me perdoe por seguir distante por tanto tempo – Ela se deixava consolar, embora sua alma ainda parecesse rachada. – Depois que te enfrentei, você foi para as doze casas...Eu realmente pensei que tivesse morrido, eu tinha tanto...Tanto medo.

Andrômeda seguiu acariciando sua face, enquanto lembrava-se da luta mortal que teve com Afrodite de Peixes, não culpava a jovem por assumir sua morte.

— Então...Os mares começaram a se comportar de forma estranha e eu pude sentir sua energia lutando, mas eu não conseguia identificar de onde.

Claramente, a batalha contra Poseidon. O templo do rei dos mares de fato não ficava as vistas de qualquer um.

— Eu estava decidida a ir até a Grécia obter informações sobre você, mas quando estava prestes a abandonar a ilha, Athena me disse que eu deveria permanecer...Que você estava bem, e que nenhum de nós deveria se aproximar do santuário.

Shun lembrou-se da tentativa vã de Saori em manter os cavaleiros de bronze afastados da guerra santa, chegando ao ponto de dar até mesmo ordens aos cavaleiros de ouro de impedi-los de se aproximar do templo da deusa. Mas tudo foi em vão dada as proporções que o confronto contra Hades tomou.

E sendo o corpo do deus do submundo, teria sido impossível para ele não se envolver.

— Tudo acabou agora June, isso que importa – Seguiu tentando animá-la, afastando alguns fios de cabelos de seu belo rosto.

— Shun...- Ela encarou os olhos esmeraldas.

— Agora...Está tudo bem – Mentiu, pois ainda havia Hades em seu corpo, ainda havia Seiya na cadeira de rodas, ainda havia a ruína do submundo, existia tanta incerteza no futuro.

Porém quando seus olhares se cruzaram por alguns instantes, o tempo pareceu eterno. Verde contra azul, o mundo parecia ter deixado de existir, deuses e guerras pareciam não passar de casos distantes.

Tudo que havia era o agora, o cheiro de flores, a respiração pausada de ambos.

 E os lábios tímidos que se aproximavam e se tocavam numa suave valsa.

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Notas finais do capítulo

*Essa sala nunca foi mencionada ou possuí sinais de existir, é apenas uma liberdade de minha parte, vindoura de uma dúvida sobre como os ensinamentos eram passados quando o cavaleiro de ouro morria sem deixar um aprendiz, porém a versão canônica afirma que os cavaleiros aprendem o golpe de seus antecessores através das memórias de sua armadura, porém, eu prefiro manter a liberdade de uma aprendizagem mais realista.

*No mangá apenas Afrodite vai a ilha de Andrômeda, mas para esta história usarei a versão do anime, onde Milo vai com ele.

O próximo capítulo é "A voz da alma" e voltará ao tempo presente dessa estória! Até lá!



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