Guerra e Paz escrita por Kimonohi_Tsuki, JulianVK


Capítulo 14
Capítulo XIII - Visitas da boa morte.




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"...Tu sabias?..." — Hades disse pouco depois que Ikki o deixou na cama do quarto oculto da casa de Virgem, pegando uma cadeira qualquer e sentando ao seu lado. "...Às vezes, quando um humano está prestes a morrer, Átropos lhe concede um pouco mais de tempo, não muito, mas o suficiente para que ele possa se despedir das pessoas mais importantes. Alguém muito doente tem uma melhora repentina, chega a ir para casa e então, pouco depois, vem a falecer. Os mortais chamam isso de 'As visitas da boa morte'..."

"Por que está me contando isso?" - Questionou olhando para o teto do pequeno cômodo rudimentar, nada além de uma cama, uma cadeira e um minúsculo banheiro.

"...Tu vás a morrer Shun, teu corpo físico ao menos, mas até lá, usa este tempo que Hécate te ajudou a ter para estar com esses que consideras teus amigos..." - Seu tom era calmo e contemplativo, sentia que algo havia mudado na postura do deus para com ele, depois de tudo que aconteceu.

Shun olhou para seu irmão que dormia de braços cruzados, sentado desconfortavelmente numa cadeira dura. Sorriu de lado.

"Esse é um bom conselho."

"...Mas é claro, não à toa os gregos às vezes me chamavam de Eubuleu, que significa 'o que dá bons conselhos'..." -Declarou com satisfação. "...Mas por hora, durma..."

O cavaleiro apenas continuou sorrindo, deixando sua consciência se apagar na escuridão absoluta.

—.-.-.-

Com Ikki

Todos no santuário estranharam a nova aproximação dos dois irmãos. Talvez porque com o sumiço de três meses de Andrômeda, Fênix soube na pele o que seu caçula sentia toda vez que desaparecia, ou quem sabe fosse apenas reflexo do trauma da guerra santa. Seja qual fosse a razão, era possível vê-los juntos pelo menos uma vez por dia. Sempre em algum lugar mais afastado do santuário, longe de olhares curiosos.

Às vezes conversavam, outras apenas ficavam um perto do outro, Shun em profunda meditação e Ikki dormindo apoiado em algum lugar próximo. Apenas ao lado do irmão, o leonino poderia ser um felino manso, sutilmente amável, mas caso pressentisse qualquer perigo, transformava-se num perfeito leão feroz e indomável.

De fato, outra coisa que ficou muito evidente é que o suposto sucessor de Aioria havia se tornado ainda mais super-protetor de seu irmãozinho. Numa determinada tarde num treinamento de combate de Shun e Ichi de Hidra, o cavaleiro de bronze sequer conseguiu fazer um aranhão no novo dourado, que treinava o seu Kahn. A maioria de seus companheiros ria do pobre homem de cabelos brancos presos num rabo de cavalo, enquanto ele tentava todos os seus movimentos, Shun seguia sentado em posição de lótus, protegido por uma esfera dourada que repelia todos os ataques.

— Ele está ficando bom nisso - Comentou Hyoga contente por seu amigo, sentado na arquibancada do coliseu junto aos demais. - Mesmo que Ichi sempre foi muito patético.

— O que você disse Hyoga?! - Exclamou inconformado Hidra.

— Ichi, não dê as costas a seu adversário - Interveio Shiryu sério, próximo ao aquariano. - Algo simples como um insulto não pode ser o suficiente para tirar sua atenção.

— Se isso fosse um combate real, ele já estaria morto. - Ironizou cisne.

Claramente sentindo-se desafiado, Ichi voltou à sua posição de batalha, uma expressão confiante mostrando-se em seu rosto.

— Pois eu vou mostrar a vocês que nunca devem subestimar a grande Hidra! Vou mostrar à todos minha nova habilidade, que venho desenvolvendo desde o fim da luta contra Hades!

Ichi começou a concentrar seu cosmo em sua armadura, chamando a atenção de todos e fazendo Shun franzir a testa. Então ele pegou uma das garras venenosas em seus punhos e a partiu.

— Por que ele está destruindo a própria armadura?! – Questionou Kiki inconformado, um pouco atrás de Shiryu.

Mas então uma fumaça roxa começou a sair da garra quebrada.

— A Hidra de Lerna era sem dúvida uma criatura terrível! – Anunciou com firmeza enquanto a fumaça começava a se intensificar. –Nem mesmo o grande Héracles* pôde derrotá-lo sozinho em seu segundo trabalho! Pois além de sua incrível capacidade de regeneração, assim que uma de suas cabeças era cortada, um vapor venenoso era exalado, que matava quem estivesse por perto!

Dito isso, os cavaleiros na arquibancadas ficaram em alerta, cobrindo seus rostos com as mãos.

— ICHI SEU MALUCO! VOCÊ QUER NOS MATAR?! – Jabu berrou irritado, tampando seu nariz.

Quando Shun começou a tossir, Ikki imediatamente ficou irritado.

— Eu vou matar esse maldito lagarto! – Exclamou Fênix, saltando entre os assentos, sendo segurado por Hyoga.

— Calma Ikki! Shun saberá o que fazer! Isso é apenas um treinamento! – Ponderou Dragão colocando-se na frente do outro com os braços erguidos.

— Você não confia na capacidade de seu irmão?! – Retou Cisne.

— Cale a boca e me solte Pato! – Queimou sua energia com intensidade, labaredas de cosmo emanaram de seu corpo, ferindo o aquariano e forçando-o a soltá-lo - Saia da minha frente! – Ameaçou Shiryu.

— OHM!

Mas antes que o chinês pudesse responder, uma enorme massa de cosmo encheu a arena, lançando Ichi e o vapor venenoso para a arquibancada onde não havia ninguém sentado.

— Corrente nebulosa! – Para em seguida, uma corrente de vento rósea envolver completamente a fumaça tóxica envolta do cavaleiro de bronze, misturando-se com ela e sumindo no ar. Deixando Hidra completamente paralisado, embora ainda consciente.

Quando o cenário se limpou, Shun estava de pé, respirando com a boca e de olhos abertos. Aproveitando o estado atônito de Shiryu, Ikki rapidamente alcançou seu irmão.

— Ele usou um dos golpes de Shaka, combinando com uma de suas melhores técnicas usando o princípio de suas correntes, mesmo sem usar sua armadura – Admirou o Dragão – É impressionante que tenha evoluído tanto em apenas três meses...

— Sim...Muito estranho...  - Comentou Hyoga observando atento como Fênix avaliava a saúde de Andrômeda.

— Kiki - Chamou o jovem virginiano preocupado - Ele está bem?

— Quem se importa! Se estiver, eu mesmo vou acabar com ele! - O cosmo elevado e enraivecido irmão mais velho dava força a suas palavras.

Os cavaleiros de bronze olhavam um para o outro preocupados, enquanto Kiki vencia a distância que o separava de Hidra e avaliava seu estado físico.

— Ele está bem - Anunciou o ariano - Apenas imóvel e com alguns hematomas nas costas... - Pôde observar, que apesar de Shun claramente controlar sua energia para não matar seu oponente, o impacto foi suficiente para rachar e quebrar a armadura.  - Não se preocupem, eu vou cuidar dele.

Fez menção de carregar o companheiro caído, mas foi detido por Geki, o homem de grande estatura, pele morena e cabelos curtos, castanhos e espetados, que levou Ichi ao ombro sem qualquer dificuldade.

— Pode deixar, eu faço isso, amigo! - Deu alguns tapinhas com intuito amigável nas costas de Hidra, mas que fez Kiki fechar um dos olhos imaginando a dor, sendo que ele estava ferido justamente ali - Você nos deu um baita de um susto Ichi! Vapor venenoso, mas que ideia!

Assim os dois se retiraram até a casa de Áries.

Depois desse dia, Shun não voltou a treinar com os demais cavaleiros. Algumas vezes ia até o coliseu assistir, todas as demais mantinha-se na casa de virgem, na qual estava alocado desde seu retorno ao santuário, meditando.

Até mesmo as brincadeiras de Jabu sobre a aparência delicada de Andrômeda haviam parado completamente quando Ichi apareceu com algumas queimaduras suspeitas. A ira de fênix estava mais implacável do que nunca.

Kagaho, em sua anterior vida, tinha uma devoção e zelo absoluto para com Alone,  chegando ao ponto de invadir o santuário atrás do cavaleiro de Libra Dohko apenas por ter feito um arranhão em seu senhor, mas dessa vez, sua preocupação era justificada.

O braço direito do cavaleiro de Andrômeda, desde o dia que absorveu os poderes da espada de Hades, definhava aos poucos e dolorosamente, parecia perdido sem qualquer chance de cura. Aparentava uma palidez cadavérica, era tão frio quanto as tardes do inverno grego, horas depois nem sequer era capaz de movê-lo, alguns músculos já aparentavam um estranho arroxeado e estava próximo do estado de putrefação. Mesmo tendo sido um espectro, acostumado com a ideia da morte, doía imensamente ver seu irmãozinho chegar a este estado.

Sabia que passava boa parte de seu dia meditando, para tentar conter o imenso poder que absorveu de uma única vez, usando-se de um corpo humano, que por mais que fosse o receptáculo do deus do submundo, possuía suas limitações.

A alma da lâmina absorvia toda a vida do braço no qual foi transferida,até matar seu usuário aos poucos. Morrer como mortal para transcender a vida humana...Isso era um processo que exigia uma sensação excruciante. Sabia bem que Shun escondia sua dor atrás de sorrisos e tranquilidade.

Então,  se dessa vez não conseguia ajudar seu irmãozinho nessa luta interna, ao menos teria a certeza de manter-se ao seu lado.

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Com Seiya.

Era uma tarde nevada quando Pégaso finalmente acordou. Todos comemoraram muito, enquanto a neve caía com graça do outro lado da janela, lágrimas enchiam os rostos dos amigos do cavaleiro, enquanto este reclamava que estava realmente com muita fome.

Não era à toa, depois de tudo que havia acontecido. Dizer que os médicos ficaram assustados com o tanto que Seiya foi capaz de engolir seria eufemismo, mas Athena os tranquilizava dizendo que isso era apenas um excelente sinal de recuperação.

Kiki fez algumas quantas visitas também, o que acelerou em muito todo o processo de melhora, mas algo que enciumou muito o sagitariano foi a relação maternal que sua irmã Seika desenvolveu com o ariano. Ter sido salva por ele e os demais cavaleiros de bronze, Marin e Shina dos ataques de Thanatos a deixou realmente muito comovida. Quando não estava cuidando de seu irmão preso na cadeira de rodas, Seika visitava o santuário.

Saori não a impedia disso, mesmo ela sendo apenas uma civil, mas incumbiu Shiryu e Kiki de vigiar para que os cavaleiros de bronze não fizessem nenhuma gracinha para a moça, mas a ideia não era muito atraente a nenhum deles, uma vez que era como se ela fosse meia irmã de todos.

Contudo, o carinho que ela desenvolveu por Marin e Kiki, que a encontraram perdida na Vila de Rodório sem lembranças de seu passado, foi sem dúvidas o maior. Agora via a amazona de prata como uma espécie de irmã mais velha, já em relação a Kiki o assunto era mais delicado.

Numa noite estrelada, enquanto se recolhia de volta a sua casa em Rodorio, ela encontrou o pequeno ruivo chorando enquanto olhava para as estrelas. Imediatamente ela lembrou-se do que os demais cavaleiros a contaram sobre o final trágico e as perdas que a guerra santa trouxe. Kiki havia perdido Muh, muito mais que um mestre, um verdadeiro pai.

Ela sabia bem a solidão que era ser um órfão, além da sensação de vazio de perder alguém tão importante. Mesmo tendo perdido suas memórias, Seika sempre sentiu que algo faltava em sua vida, um imenso buraco que assombrava seu peito e graças a ter sido encontrada pelos dois, finalmente pôde preencher essa escuridão.

Por isso ela havia se tornado muito carinhosa com o aprendiz, chegando ao ponto de recriminar os demais cavaleiros quando esses pegavam muito pesado com ele em treinamentos. Era algo engraçado de testemunhar, mas Kiki não se queixava.

Era muito bom ter novamente alguém olhando por ele assim.

Seiya teve que se conformar em dividir as atenções de sua irmã com o ariano, em compensação, tinha o zelo de Athena quase exclusivamente para ele. A deusa estava simplesmente radiante em ter seu eterno salvador de volta ao seu lado, ela passava metade de seu tempo sentada ao lado da cama de hospital, velando por sua recuperação.

Ficou decidido que a cerimônia de sucessão dos cavaleiros de ouro seria apenas depois que Pégaso se recuperasse.

Então quando Seiya finalmente teve alta, fizeram uma enorme festa, Shun se manteve afastado a maior parte dela, com Ikki não muito distante, mas tampouco tão próximo. Era estranho para Andrômeda estar ao lado do velho amigo depois de tudo que aconteceu. Imaginar tudo que enfrentou e teria que enfrentar de agora em diante, tudo por amor ao seu meio irmão.

E ele nunca saberia disso.

Sem mencionar, que Pégaso carregava a alcunha de “matador de deuses”, reencarnando a cada guerra santa, destinado a enfrentar o receptáculo de Hades, que era sempre um amigo ou mesmo um irmão. A cada nova vida, a guerra os colocava de lados opostos.

E nada garantia que não seria assim novamente, se eventualmente Seiya descobrisse que seu meio irmão seria o novo senhor do submundo.

Queria quebrar esse destino de uma vez por todas, mas não sabia se seria capaz.

Também doía pensar em Tenma, o Pégaso do passado, a antiga vida de Seiya, o cavaleiro não mostrava qualquer sinal de lembrar-se de sua anterior vida, quando ele era quase como um irmão do pintor Alone, e o protegia com mesmo amor e cuidado que Ikki protege sua reencarnação atual.

Queria voltar a esses tempos, mas haviam coisas que eram impossíveis, mesmo para o imperador dos mortos.

Enquanto todos festejavam e se divertiam num salão cerimonioso do Santuário, comendo, bebendo e rindo. Shun sorria educadamente a todos, enquanto sentia como se cada osso de seu corpo se partisse, tamanha a dor que o afligia, sua pele semelhava a brasa e respirar parecia uma tarefa muito árdua, como se canivetes rasgassem sua garganta, como estar tentando puxar oxigênio em meio a uma temperatura negativa, mas seguia sorrindo e fingindo que estava tudo bem.

Andrômeda estava mais uma vez se sacrificando por todos, mas dessa vez não seria reconhecido por isso.

—.-.-.-.-.

Com Hyoga

Ironicamente também nevava no dia que Shun esperava pelo futuro cavaleiro de aquário na entrada do santuário para comprar algumas providencias .

Usava luvas e um casaco volumoso, mas ainda assim sentia o frio dilacerar sua pele, o russo parecia atrasado por alguma razão, para tanto, se mantinha escutando Hades.

“...Então Caronte recebe as almas e pelo preço de duas moedas ele faz a travessia, mas acredito que isso tu já saibas...”

O senhor dos mortos passava boa parte do tempo que estavam sozinhos explicando todas e cada uma das funções que deveria exercer. Mas dessa vez o jovem imperador não prestava atenção, ocupava-se em observar uma jovem garota, de longos cabelos castanhos, presos num rabo de cavalo baixo, de um simples vestido lilás, com uma rosa presa sobre seu coração.

“...O dinheiro que ele arrecada...Bem, nunca tivemos muito uso para ele, talvez tu encontres alguma utili-...Estás me ouvindo?...”

“Hmm? Ah, desculpe...É só que...- Hesitou - Eu estava me perguntando se aquela menina não está com frio, só com aquele pequeno vestido...Não é a primeira vez que a vejo ali...Sempre com a mesma roupa.”

“...Shun...”

“Talvez ela não tenha dinheiro para comprar outra...Ela parece ser bem simples“

“...Ela está morta...”

Andrômeda piscou, observando os olhos castanhos tristes e rosto corado da jovem. Porém, ao mesmo tempo, percebeu que o vento cortante não tocava seus cabelos ou mesmo a neve se acumulava sob seus ombros.

“...Ela é um fantasma, uma alma que, por alguma razão, não pôde ou não quis ir para o mundo inferior...” Analisava tranquilamente, como se fosse algo trivial “...Geralmente os espectros se ocupam de trazer essas almas, mas como essa região é muito próxima do Santuário, é quase impossível atuar por aqui. Contudo, facilmente eu posso dizer que ela está morta há pelo menos duzentos anos...”

“DUZENTOS?! Mas como...” – colocava espantado – “Eu nunca tinha visto um fantasma antes! No máximo, as almas perdidas vagando...Mas nada com uma forma tão...Humana”

“...E o que você esperava? És o novo senhor dos mortos. Nada mais natural do que você conseguir vê-los em sua verdadeira forma...

Concentrou o cosmo para identificar onde se encontrava Hyoga, e ao averiguar que este ainda estava na casa de sagitário, resolveu aproximar-se até a garota.

— Qual o seu nome?

Ela olhou para ele realmente fascinada com o fato de que podia vê-la.

—...Agathia. – Alegou relutante.

— Agathia, o que você está fazendo aqui? – Falava o mais doce possível, ela parecia assustada.

— Eu estou esperando alguém...

— Você se importa de me dizer quem? Talvez eu possa ajudar.

—...Seu nome era Albafica...-Ela explicou, os olhos enchendo de lágrimas – Ele morreu há 243 anos, lutando contra um homem de cabelos brancos compridos e armadura negra. Eu pensei que ele voltaria para cá...Mas ainda não o encontrei.

Com pesar, as memórias como Alone o faziam lembrar do belo cavaleiro de Peixes da guerra santa passada. Albafica era um nobre e audaz cavaleiro, lutou bravamente, matou e morreu junto a Minos de Griffon numa luta em plena vila de Rodorio. Provavelmente sua alma seguia presa em tormento no submundo, por ter desafiado um deus.

—...O homem de nome bonito e cabelos azuis espetados me disse que o atual cavaleiro de peixes se chama Afrodite. Eles são parecidos...Mas não é ele...

— Homem de nome bonito? – Questionou Shun intrigado.

— Sim, eu nunca mais o vi também...- A pobre menina tocava a rosa em seu coração com pesar, perdida em lembranças e pensamentos. O novo senhor da morte se apiedou vendo tal cena.

“Eu posso fazer alguma coisa?”

“...Tu não podes fazer com que eles se reencontrem no mundo dos mortos, assim que invocasse a alma de Albafica este te atacaria quando o identifica-se como senhor do Submundo. E lutar com uma alma morta pode danificá-la definitivamente...” – Hades explicou com simpleza – “...Tampouco adiantará levá-la a força. Se está aqui há tanto tempo, é porque já resistiu a várias tentativas...”

“Não disse que os espectros não atuavam aqui?”

“...Sim, disse. Mas também já te mencionei que os cavaleiros de Câncer são uma espécie de necromantes. Tu podes chamar de um acordo tácito, permitíamos a entrada deles no submundo, uma vez que trazer almas perdidas era do nosso interesse...” O deus parou por alguns instantes, ponderando suas palavras “...Uma vez que nenhum deles nesses últimos dois séculos a enviou para o reino dos mortos, ela está bem determinada em sua espera...”

Hyoga estava na casa de Gêmeos, não tinha muito tempo.

“ E se os dois reencarnassem?” – Questionou pensando nas opções “Você disse que o submundo também é responsável disso.”

“...Devolver um cavaleiro tão forte a Athena por sentir pena de uma garotinha...” — A divindade suspirou cansada “...Ser tão displicente assim ainda te causará problemas. Contudo, é possível. Até mesmo fazer com que reencarnem próximos não é complexo. Porém, não é simples fazer um cavaleiro de ouro reencarnar. Sua alma está tão intimamente ligada a sua constelação e signo protetor, que qualquer tentativa de fazê-lo nascer numa data que não corresponde a ela, resultará em um aborto espontâneo...Tu precisarás encontrar uma mulher gravida na qual a data de nascimento seja compatível...”

Mas Shun não ligava para essa complexidade, sorriu para a jovem enquanto lhe estendia a mão.

— Eu posso te ajudar, mas você terá que confiar em mim. Levará algum tempo, mas eu farei vocês estarem juntos novamente. – A moça o observou surpreendida, emocionada, lágrimas caindo sem fim de suas orbes castanhas.

—...Tudo que eu mais quero é ver o senhor Albafica mais uma vez. – Os olhos esmeraldas mostravam uma sinceridade e zelo que a convenceu, esticando sua mão e tocando a dele - ...Muito obrigada...

E seu corpo começou a se dissolver em milhares de pétalas brancas que voaram pelos céus, mesclando-se com a neve.

Sobre a palma de Shun, manteve-se apenas uma rosa, a mesma que Agathia levava em seu peito, lembrança de Albafica.

“...Este é o objeto que a manteve nesse mundo. Guarde-a contigo até que descendas ao mundo inferior...”

“É triste pensar que uma rosa tão bela foi responsável por tantos anos de dor”

— É estranho te ver apreciando uma rosa, depois da terrível luta que teve com Afrodite, se eu estivesse em seu lugar, acho que nunca mais iria querer ver novamente esta flor. – A voz suave do russo apareceu à suas costas. – Desculpe a demora, Seiya ficou resmungando que precisava de ajuda para subir até a nona casa e depois simplesmente não calava a boca.

— Se quer mesmo saber minha opinião, as rosas de Afrodite foram as mais belas flores que já vi em minha vida. Odiá-las seria um enorme desrespeito  – Se voltou ao loiro, com um sorriso triste ao lembrar-se do falecido dourado. – Fico feliz que Seiya esteja melhorando.

— Já eu gostaria de saber quando você dominará aquela técnica de Shaka que tira os cinco sentidos, acredite, fazê-lo ficar em silêncio seria a melhor coisa que já aconteceu para o santuário.

Os dois riram, e seguiram sua caminhada para Rodorio. Os rapazes passaram a tarde conversando e comprando tudo que era necessário, era impressionante o número de curativos que eram consumidos, álcool e medicinas pareciam ir como água.

Hyoga andava muito preocupado com seu melhor amigo, em vários momentos disse que ele deveria se cuidar mais, que sua aparência estava cada vez mais pálida e doente. Andrômeda desconversava dizendo apenas que não se dava tão bem com o frio quanto o aquariano, que usava simplesmente uma regata e calça jeans em meio a neve.

Era bom poder conversar como pessoas normais, como se o mundo que eles viveram não fosse ridiculamente diferente a de todos os outros. Depois de Ikki, o russo sempre o fez sentir-se tranquilo, independente do que o futuro reservasse.

— Por que você precisa de tantos Jasmins? – Questionou Cisne quando a carruagem de Apolo começava a deixar as terras gregas, dando passo a noite de sua irmã Arthemis.

— Podemos dizer que eu estou tentando fazer uma espécie de loção perfumada.  Isso foi tudo que encontrei...Rodorio não tem nenhuma boa floricultura, isso é bem triste. – Os dois caminhavam pelas ruas que esvaziavam aos poucos, ao tempo que os flocos gelados pareciam se intensificar.

— Para que você precisa disso? Alguma coisa haver com suas meditações?

— Algo assim. Pensei também em plantar algumas flores no jardim da casa de Virgem, mas eu simplesmente não tenho o dedo verde.

Chegaram ao fim da cidade, uma enorme estrada deserta coberta de árvores dos dois lados que levavam para outras cidades gregas. As copas estavam cobertas de branco, fazendo-as brilhar magnificamente junto a luz dos postes contra o escuro anoitecer.

Ambos pararam e apreciaram a bela paisagem quando Shun começou em tom mais sério.

—...Hyoga, me diga, como você está se sentindo depois da Guerra Santa? – Essa pergunta pegou desprevenido o russo, que observou o outro sem entender – Eu sei que você se sente obrigado a esconder seus verdadeiros sentimentos e isso me preocupa. A pior coisa que podemos fazer é viver com medo de nós mesmos.

— Eu não tenho medo – Colocou taxativo, incomodado com o repentino assunto – Meu mestre sempre me ensinou que é preciso  controlar nossas emoções.

— Eu acredito que controlar é diferente de fingir que elas não existem. Posso estar enganado, mas seu mestre poderia estar querendo te dizer isso.

— Do que importa questionar isso agora?  - Colocou com amargura – Meu mestre está morto. Mesmo se eu tivesse entendido errado, eu nunca saberia a resposta.

Sem esperar retorno começou a caminhar a passos pesados de volta ao santuário.

— Quando eu soube que meu mestre Daidalos morreu eu também perdi o chão. Ele foi o mais perto que eu já tive de um pai de verdade – Seguiu atrás do companheiro, seus ossos rangendo com o esforço de movimentar-se rápido em frio tão intenso – Mas Athena precisava de nossa ajuda, foi pouco antes de termos que subir as doze casas.

— Mas não foi você que o matou Shun. – Taxou em tom cada vez mais áspero – E ainda por cima não teve que vê-lo morrer uma segunda vez...- Hesitou - Chamando-o de traidor, quando na verdade ele estava sacrificando sua honra e nome para avisar Athena sobre sua armadura.

— Sim, você tem razão – Concordou sabiamente – Eu não tive que passar por nada disso, sequer vi meu mestre morrer.

— Eu só me pergunto – Hyoga parou de repente, a rua de comércio agora completamente vazia com apenas os dois sobre o véu da noite – Por que...Por que eu não morri nessa guerra também?! Por qual razão eu continuo vivo se Athena e a terra não correm mais perigo?

Olhou para seus punhos, apertando-os com força.

— Eu apenas queria morrer no campo de batalha seguindo meu dever. Talvez depois de morto finalmente poderia rever minha querida mãe...Mas depois de descer até o inferno eu sei que isso é simplesmente impossível. – Fechou as pálpebras com pesar, lágrimas se formando em seus olhos – Eu nunca irei reencontrá-la. O máximo que me esperaria seria séculos de tormento e sofrimento por me opor aos deuses...Mas agora que destruímos o submundo, parece que tudo que nos espera é o silêncio eterno...

— Nunca deseje a morte Hyoga. Nossa vida não pertence apenas a nós, pertence a cada uma das pessoas que nos amam. – Colocou a mão sobre o ombro de seu companheiro.

— Todas as pessoas que eu amo são tiradas de mim Shun. Minha mãe, mestre Camus, meu amigo Isaak...Eu simplesmente não tenho mais razões para viver.

— Então viva por essa razão.

— Quê? – Abriu os olhos confusos, vendo que o outro sorria.

— Viva para encontrar razões para continuar vivendo. Você irá perceber que são pequenas coisas, mas que fazem muita diferença. Você ainda tem pessoas que te amam, Eu, Shiryu, Seiya, Kiki, os rapazes, Saori e...Certo, eu não posso dizer que Ikki te ama, mas ele até que gosta de ti.

Isso fez o Cisne relaxar, rindo suavemente e limpando suas lágrimas.

— Vindo dele, acho que é bastante. – E só então notou o que o outro fez, encarando-o - ...Eu não acredito que você realmente me fez dizer como me sentia no final das contas. Desde quando você é tão ardiloso?

— Beeem...- Colocou em tom brincalhão, voltando a caminhar até o santuário – Digamos que eu ando tendo um bom professor.

Em sua cabeça Hades riu, enquanto Hyoga alcançava seu amigo.

“...Vou considerar isso um elogio. Há! Um senhor dos mortos incentivando alguém a viver, francamente, tu es um caso único Shun...”

De volta as terras de Athena, sobre o chão da casa de Virgem, o futuro imperador caiu de joelhos, ardendo sobre uma febre abissal que usou de toda sua força de vontade para esconder. Tudo girava ao seu redor e o frio parecia lhe devorar a alma.

Imagens distorcidas passavam por sua mente. O rosto dos espectros, de Pandora, Hécate, das Moiras. E de uma mulher de longos cabelos ruivos.

Agonizava de dor, tampando seus lábios para evitar gritar.

Até que o cosmo preocupado de seu irmão surgiu para ajudá-lo com sua agonia, mesmo que o alivio fosse mínimo.

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Com Shiryu

Todo o santuário se organizava para a sucessão dos próximos cavaleiros de ouro agora que a reforma finalmente havia acabado, Seiya teve alta e Hécate e Hefesto trouxeram as armaduras.

As brilhantes vestimentas de ouro reluziam com orgulho em cada uma de suas casas. No penúltimo dia antes do acordado para que o deus Ferreiro cumprisse sua parte do acordo, Kiki havia sido chamado por Athena para auxiliar o olimpiano.

Mesmo o senhor da forja não pôde compreender todos os segredos das armaduras, e para seu desgosto e doce vingança de Shiryu, precisou do auxilio de um lemuriano, apesar de sua chacota sobre sua raça.

Kiki, contudo, desempenhou  o trabalho com maestria invejável, a tal modo que inclusive Hefesto teve que reconhecer suas habilidades. Para tanto, os dois até mesmo desenvolveram uma relação de respeito mútuo. O olimpiano acabou por gostar do adolescente, trocando com ele conversas e informações que apenas aqueles que trabalhavam com a forja divina entenderiam.

Longe de Athena, o deus mostrava uma índole tranquila e curiosa, chegando ao ponto de presentear o futuro cavaleiro de Áries com alguns instrumentos que ele mesmo forjou em reconhecimento as suas habilidades.

Na manhã seguinte após a partida do o artesão de cobre, Shun e Shiryu foram chamados a presença de Saori.

Ambos andavam a passo lento, uma vez que sua deusa não havia pedido urgência. Andrômeda agradecia enormemente por isso, pois não seria mais capaz de manter um ritmo acelerado subindo as doze casas.

A cada novo templo, eram saudados pelas armaduras douradas no formato do símbolo de sua constelação guardiã, aguardando alguém que as trajassem.

Ambos estavam saindo da casa de virgem quando o assunto da conversa amistosa dos amigos mudou para algo mais particular.

— Então...- Começou Shiryu – Como foi passar os últimos três meses com June?

— Não pudemos aproveitar muito, o treinamento acabou me tomando a maior parte do tempo.- Suspirou demoradamente – Mas foi muito bom vê-la outra vez, depois de tanto tempo.

— Entendo... – Ponderou - Isso significa que você ainda não declarou seus sentimentos para ela?

Shun parou, quase tropeçando na escadaria, seu rosto esquentando.

—...Eu...Do que você está falando Shiryu?  Nós...! Treinamos juntos, somos...Amigos, apenas isso.

— Francamente Shun, depois eu que sou o cego – Também parou a caminhada ao não ouvir mais os passos do outro – Pelo seu tom de voz ao falar dela, esse suspiro que você deu, e mesmo sem poder ver seu rosto, tenho certeza que está ruborizado.

— Eu apenas não esperava esse tipo de pergunta. – Defendeu-se.

— Shun, meu amigo, não tem porque mentir sobre isso para mim. Eu claramente posso dizer que você está apaixonado porque eu sei como é a sensação – Sorriu docemente, seu rosto virando-se para o horizonte – Tudo que passamos no submundo fez com que eu entenda o que realmente sentia por Shunrei. Só de pensar que eu poderia nunca mais a reencontrar, faz meu coração congelar, e o simples detalhe de ouvir sua voz carinhosa se dirigir a mim, me faz esquecer até a pior das dores. Amar é simplesmente maravilhoso Shun, não se prive disso, por favor. Já tivemos privações suficientes em nossas vidas.

—...Eu...Sim, eu sinto algo por June, algo que nunca senti antes em minha vida – Tocou seus lábios, lembrando do gosto doce que a amazona possuía, do cheiro de flores que emanava de seu corpo, o aveludado de sua pele. Suspirou mais uma vez, corando mais. – Mas não vejo como isso pode dar certo...

Voltou a caminhar em direção a casa de libra, o chinês logo o seguiu.

— E por que não? Estamos em paz agora, não estamos?

— ...Sim... Mas eu não posso dar a vida que ela merece.

Andrômeda estava determinado a esquecer de seus sentimentos, uma vida na terra seria infinitamente melhor do que uma no submundo.

— Fico muito triste que pense assim. Espero que ainda mude de ideia. – Comentou Dragão. – Eu ia te perguntar se vocês haviam chegado mais longe, mas pelo que me disse, percebo que não.

— Como assim “Chegado mais longe”? – Questionou inocente o japonês.

O chinês não respondeu, passando os últimos degraus que levavam ao templo de Libra. Então Shun compreendeu o sentido de “mais longe” ruborizando-se terrivelmente.

— SHIRYU!!! – Exclamou contrariado.

— É algo natural e humano. Eu sei que nunca tocamos nesse tipo de assunto, porque sempre fomos treinados exclusivamente para a guerra. Mas agora que estamos em paz, não seria nenhum pecado deixar que isso faça parte de nossas vidas. – Falou com completa naturalidade. – É algo instintivo, é verdade, mas também é bem complicado de se fazer sem possuir qualquer conhecimento.

—...Então... – Seu rosto era completamente vermelho, agradecia a todo o Olimpo por Hades estar adormecido nesse momento – Você...Já...?

— Sim. -  Respondeu sem rodeios – Posso te explicar se quiser. Os livros de biologia humana são lúdicos demais e duvido que seu mestre tenha tocado nesse assunto, acho que meu mestre foi o único que o fez, uma vez que notou meus sentimentos para com Shunrei.

E sem qualquer dúvida, essa foi a conversa mais constrangedora da vida de Shun.

Sentiu-se enormemente aliviado quando ambos chegaram a presença da deusa, ajoelharam-se frente ao seu trono. Andrômeda se esforçando para não mostrar a dor que isso lhe causava.

— Levantem-se por favor – Ambos o fizeram. – Eu os convoquei aqui por que vocês são cavaleiros de minha mais alta confiança. Leais, sábios, sinceros, mas firmes à suas índoles e princípios.  Além disso, ambos possuem uma imensa capacidade de mediação e instintos de verdadeiros líderes.

Athena levantou-se, caminhando pela sala.

— Estamos vivendo os tão esperados tempos de paz agora, mas ainda é preciso muito para que o Santuário recobre seu brilho. – Sua voz era sábia e tranquila - Para tanto, os cavaleiros precisarão de um guia, alguém que lutou com eles, viveu os momentos de dor e os momentos de glória. Acredito que as características que mencionei são essenciais e indispensáveis para o futuro Grande Mestre do Santuário.

Os dois surpreenderam-se com as palavras da deusa.

— Senhorita Saori – Começou Shun.

— Acredita que um de nós seja digno de tal função? - Seguiu Shiryu.

— Não possuo qualquer dúvida disso. Mas gostaria de poder ouvir a opinião de vocês – Disse com displicência.

 - Isso é...Algo repentino... – Começou Dragão – Ainda me sinto muito inexperiente para assumir tão grande dever. – Virou-se para Shun –  Nesses tempos de paz, até para que eles se mantenham, acredito que Shun seja a melhor escolha para Grande Mestre.

O mencionado encarou o amigo surpreso.

— Athena...  – Começou tentando encontrar as palavras certas. Seria completamente impossível ser mestre do santuário uma vez que já estaria responsável pelo submundo -...Eu, educadamente, declino sua oferta.

Shiryu seguiu virado para sua direção, Saori esperou pacientemente que continuasse.

— Shiryu é um grande amigo, e sei que será um líder ideal. Sua sabedoria é sem dúvidas superior a de qualquer um de nós, além de ser extremamente calmo e bondoso. Tenho plena certeza quanto ao fato de que ele será um Grande Mestre digno.

— Shun...Você tem certeza disso? – Questionou Dragão.

— Então está decidido. – Athena sorriu calorosa, seu cosmo amoroso ressoando - Quanto a Shunrei, não precisa preocupar-se Shiryu, não há razão para o celibato nos tempos em que estamos. Além disso, eu realmente sinto falta de mais alguma presença feminina aqui no Santuário

O futuro cavaleiro de libra verdadeiramente não sabia como responder a tais expectativas.

Para tanto, Andrômeda ajoelhou-se para o amigo, ignorando completamente a sensação excruciante que tal ato lhe acometia, inclinou sua cabeça em respeito, mesmo cego, sabia que o cavaleiro era capaz de assimilar seus movimentos usando-se de seus outro sentidos.

— Por quanto tempo me seja permitido, será um prazer segui-lo, Grande Mestre.

Shiryu sorriu, inclinando sua cabeça em respeito, agradecendo o gesto. Embora ainda parecesse relutante.

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Notas finais do capítulo

Sim, Shiryu estava falando exatamente sobre isso que vocês estão pensando.

*Héracles é o nome grego de Hércules.

No próximo capítulo teremos a esperada cerimônia de sucessão dos cavaleiros de ouro! Além da nomeação oficial de Shiryu ;D



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