Kepler's Farm escrita por DougOCapricu


Capítulo 2
Perda.


Notas iniciais do capítulo

"Just because I'm losing,
Doesn't mean I'm lost.
Doesn't mean I'll stop.
Doesn't mean I'm across."
Trecho de "Lost!" - Coldplay.
A história de Enzo e o mistério que existe sobre a sua família, apenas começou.



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Não importa o quão forte você seja, o quão otimista, o quão confiante… Você nunca vai estar preparado para perder algo ou alguém. Não é uma simples questão de lógica... "Se eu estivesse preparado para perder alguma coisa, faria algo pra não perdê-la." Não é isso o que está pensando? Não importa, você não sente, você nem imagina que algo está prestes a sair do seu mundo. Se for algo, tudo bem, desde que não seja uma edição limitada, pode ser substituído ou arrumado. Mas quando é alguém, não tem como substituir ou trocar. Você pode achar que uma outra pessoa vai aparecer e te fazer bem, ou feliz igual a quem você perdeu. Mas a verdade é que, cedo ou tarde a ferida que você imaginou estar cicatrizada, volta a doer, e a sangrar. A dor nunca vai embora, você só se acostuma com ela, e a torna, opcional.

Hoje eu acordei mais cedo que o normal. Era um dia frio, de céu nublado e monocromático. Os raios de sol eram poucos e não esquentavam. Meu pai acendeu a lareira na sala, ligou o rádio e colocou seu CD de rock britânico para tocar. Jennifer ficou sentada no banco perto da janela e falava com Billy pelo celular. Théo estava sentado no sofá, mexendo em suas redes sociais e conversando com a prima da Julia, Camilla. Minha mãe fazia o almoço e brincava com o Bel. Enquanto ela colocava os pratos na mesa, meu pai se levantava e tentava convencer todos nós a sairmos para passear. Enquanto comíamos, meu pai não parava de contar histórias sobre o parque Bosque das Libélulas. Que ele ia lá com seu irmão e primos para correr, jogar bola e se divertir. Disse que foi lá que conheceu sua primeira namorada, essa parte deixou minha mãe enciumada. Mas ele falou tanto que nos fez concordar em ir.

Perto das 14h35 ele tirou o carro da garagem. Billy já estava esperando Jennifer pelo lado de fora. A mãe estava procurando sua bolsa e o Théo e Bel jogavam bola. Eu fui o primeiro a me levantar e entrar no carro. Sentei na janela e comecei a ler um livro que um amigo escreveu chamado Os 7 demônios de Elizabeth. Basicamente um livro de aventura como esses mangás japoneses, mas exageradamente escrito com clima de terror. Minha mãe sempre se interessou em ler, mas eu não tinha intenção alguma de mostrar pra ela. Quando chegamos, meu pai comprou pipocas. Jennifer saiu para um canto distante de nós. Minha mãe mostrava as coisas para Bel e eu, Théo e meu pai saímos em três para o parque a dentro. Ficávamos conversando sobre o colégio, coisas bobas sobre o crescer. Os pássaros cantavam uma sinfonia calmante e o vento parecia sussurrar sobre nossos pescoços e cabelos. O perfume da grama limpava nosso interior. O pai adorava contar histórias, Théo fingia se interessar no assunto enquanto procurava sinal de celular. Eu escutava e imaginava. Dando forma e vida a suas palavras.

Algumas horas depois, meu pai recebeu uma ligação. Era a prima, Maylana. Ele olhou para mim e para meu irmão com os olhos arregalados, tampou o microfone do celular e disse: "Encontra a sua mãe e sua irmã e me encontra no estacionamento. É a prima de vocês, algo muito ruim aconteceu ao meu irmão." Rapidamente, Théo guardou o celular dele, me puxou pelo braço e saiu a procura da mãe.

— O que você tá fazendo? - Perguntei enquanto era puxado por ele, mostrando sentir dor no braço.

— Você não consegue enxergar o que está acontecendo? Aconteceu alguma coisa com o tio e a tia, parece ser grave. - Ele respondeu, correndo e preocupado.

— Mas, ah, tudo bem. - Soltei meu braço e continuei correndo com ele.

Ao encontrarmos com a mãe, ele logo soltou uma simples frase: "Tenho certeza que algo aconteceu a tia e ao tio, o pai quer que encontre ele perto do carro." E lá vamos nós de novo, correndo para encontrar a Jennifer, e depois, até o carro. Quando achamos meu pai, ele estava encostado na porta, com a testa no vidro, chorando. A família do pai nunca foi muito unida, nem demonstravam carinho ou afeto. Mas ao perder seu irmão mais velho, óbvio que ele ficou abalado. Parece que um acidente de carro matou eles. Segundo Maylana, um motorista de caminhão estava bêbado e acabou perdendo o controle em alta velocidade. Passou por cima do carro deles. A vó quis que o corpo do meu tio fosse cremado, e da minha tia, a família dela vai cuidar disso.

De qualquer forma, entrei no carro, coloquei meus fones e fiz parecer com que aquilo não tivesse me abalado. Bom, pela primeira vez identifiquei um sentimento meu. Mas não foi tristeza, remorso ou qualquer outra dor. Foi simplesmente, medo. Medo pois aquilo aconteceu de novo, eu os veria de novo igual vi meus avós após a morte. Eu pensaria estar louco, me calaria cada vez mais, me sentiria… Mais sozinho e cada vez mais cansado. Depois de voltarmos pra casa, a mãe pediu para que todos não se sintam mal, é uma fase: "Isso acontece na vida de todos, certo? Primeiro os seus avós e depois seus tios, uma hora pode ser eu e seu pai, entenderam?" Minha mãe ia falando, quando meu pai se intrometeu;

— Amor, acho que agora não é a hora… 

— E quando vai ser? Temos que falar isso pra eles, pois a morte é inevitável. Somos apenas seres que... - Dizia ela quando foi interrompida pelo som do telefone tocando… - Alô? Não, é a esposa dele, quer que eu passe pra ele? Não, tudo bem... Sim... Ah, muito obrigada… Desligou o telefone e suspirou - Erik, o enterro vai ser daqui a dois dias, não estou muito afim de levar os meninos mas precisamos ir. Podemos deixá-los aqui?

— Bom, onde vai ser o enterro?

— Na cidade onde eles moravam. ShadesVille.

— Ah tem a antiga casa dos seus pais, que agora é da família, fica em FarmCity, que é a caminho.

— Mas nós vamos de avião. ShadesVille continua sendo muito longe daqui.

— Sim, mas não seria melhor levar as crianças para sair um pouco desse clima aqui da cidade? Alguns dias para descansar não são tão ruins, certo?

— Você tem razão, vamos de carro até FarmCity que fica umas sete horas daqui e então deixamos eles na rodoviária e seguimos para o aeroporto. De lá vamos direto pra ShadesVille.

Quando eles pararam de falar, minha mãe pediu para que Jennifer arrumasse as coisas de Bel, e para que eu e Théo, fizemos as nossas malas. Théo sempre tenta me colocar medo a respeito da cidade dos meus avós. 

— Você sabe que FarmCity é uma cidade muito velha não é?

— Eu sei Théo... Ela existe desde 1832, eu sei...

— Mas você sabe que epidemia surgiu nessa época? Já estudou sobre isso? Hehehe...

— Não lembro, por que?

— Foi a tuberculose. Na verdade a tuberculose já existia mas ela matou cerca de 1 bilhão de pessoas entre 1850 e 1950. A cidade de FarmCity foi uma das que mais teve casos, diminuiu a população em cerca de 72%. Os moradores locais a chamam de cidade dos mortos, era o que a vovó falava. E dizem, que ainda pode se ver as vítimas mortas vagando pelo lago Crystal Place. Você vai querer ir? 

— Sério Théo? Que história mais ridícula. Não tem nem sentido isso, até parece que é possível matar 72% da população de uma cidade, fala sério.

— É sério Enzo, morreram cerca de 1 bilhão de pessoas, na verdade muita gente tem a bactéria no corpo, mas poucos chegam a desenvolver a doença. Nós podemos desenvolver e morrer a qualquer instante.

— Me poupe dessa merda, cara.

Me levantei da sala, tentando esconder minha preocupação, não que eu estivesse com medo, mas tinha uma certa agonia em realmente ver esses mortos. Não por estarem mortos, mas por ficarem cerca de dois séculos apodrecendo. Na real, eu sempre tive umas dúvidas. Quando uma alma penada fica presa nesse mundo, seu espírito apodrece também? Ou ele se mostra como está o corpo da pessoa? Se eu cremar um parente, o espirito dele vai aparecer em forma de cinzas? 

Não ligo muito para meu celular, mas preciso ouvir músicas. Peguei meu carregador e coloquei na mochila junto a algumas roupas. Eu costumo a anotar tudo, então peguei meu bloco de anotações e anotei aquilo que precisava levar antes de arrumar as malas. 

Bom, provavelmente vou ficar lá por uns três ou quatro dias, então:

1 - Três calças.

2 - Quatro bermudas.

3 - Seis blusas.

4 - Roupas intimas e meias suficientes para cada dia.

5 - Perfume e produtos de higiene, como escova de dentes.

6 - Meu bloquinho e duas canetas, um lápis com apontador.

7 - Carregador, fone de ouvido, lanterna.

8 - O celular, claro.

Tirei a folha, dobrei e coloquei no meu bolso. Segui a lista até na ordem, assim fica mais acessível as coisas que preciso, por exemplo, o celular e seus cabos ficam na parte mais alta, em cima de todos os outros objetos e roupas. O bloco de anotações logo em seguida, depois os produtos de higiene e então as blusas, que eu troco com mais frequência que as bermudas e obviamente, as calças. Se você não sabe arrumar malas assim como eu, ou prefere a maneira mais prática, segue o meu exemplo, fica tudo ao seu alcance. Só uma dica, coloque todos os seus documentos no bolso, melhor que acabar perdendo a mala e seus documentos juntos. Se você for levar notebooks assim como meu irmão, ou câmeras fotográficas, como a Jennifer, coloque eles entre as calças e as bermudas. Assim fica mais complicado de ser roubado. Meu pai costumava colocar a câmera dele por cima de todas as coisas, na ultima viagem de avião, entre um check-in e outro, abriram o zíper e roubaram. Depois disso ele começou a seguir minha lógica. Bom, mães parecem nunca ter problemas a respeito dessas coisas, por mais que sejam mães de ''primeira viagem''. Nunca erram, perdem ou esquecem alguma coisa.
        Depois que arrumamos as malas e nos apressamos para colocar as coisas no carro, demos início a nossa pequena e chata jornada de  sete horas de viagem. Você deve se perguntar: Como cabem seis pessoas num carro? Bem simples, nosso carro tem sete lugares. O pai vai dirigindo e a mãe no banco carona. Na parte do meio do carro, fica Bel e a Jennifer, caso ele precise que alguém cuide e atrás vai eu e meu irmão. Tudo foi indo bem até os exatos 45 minutos de viagem, quando o carro passou por um buraco, Bel começou a chorar pois se assustou e Théo começou a querer ir ao banheiro. 

— Caramba! Sabia que não ia demorar para isso acontecer! - Disse meu pai, em tom alegre.

— Uma viagem em família não é  boa viagem sem um estresse logo de início! Completou a minha mãe.

— Affe! Que saco, tô tentando dormir e o Bel não para de espernear aqui do meu lado. - Resmungou Jennifer.

— Quero ir ao banheiro, eu vou morrer, meu pinto ta explodindo! - Reclamou Théo.

— Quando vamos chegar? - Gritava Bel.

— Amor cadê as batatas? - Perguntou meu pai.

— Tá no banco de trás, Enzo pega ai pra mim?! - Pediu minha mãe.

— Pelo amor de Deus, eu tô morrendo! - Gritou Théo.

— Ai, para de ser exagerado! - Disse Jennifer - Nem pinto tem direito!

— Até parece que já viu! - Brincou meu pai.

— Mas era ela quem ajudava a trocar ele, amor. - Concluiu minha mãe.

— Quer ver de novo? Tá bem maior agora! - Respondeu Théo.

— Só se for de xixi! - Comentou Bel.

— Tá vendo, até ele sabe hahahaha! - Jennifer comentou.

Era nessas palhaçadas e conversas extremamente constrangedoras que eu via que ali era meu lugar, numa família boba, sem muito além de um ao outro. Só pude sentir meus lábios virando de uma ponta a outra e um sorriso tímido surgindo, tirei meus fones e peguei as batatas para a minha mãe. Olhei para o lado de fora e pensei: "Talvez não vá ser tão ruim assim."

 Depois de três horas e meia de viagem, estavam quase todos cansados, meu pai e minha mãe conversavam baixinho pra não acordar o Bel, Jennifer ouvia suas musicas pop melancólicas e Théo conversava com Camilla. Eu claro, observava a estrada. A maneira que as árvores passavam ao lado do carro e eu só as via por cerca de três ou quatro segundos, depois disso elas ficavam atrás. Percebi que assim somos na vida, questão de tempo. Sim, até que a gente não aparece aos olhos dos outros, somos desconhecidos e pura imaginação. Até que quando eles nos olham e nos conhecem, não viramos muito além de pura questão de tempo, ficamos na suas vidas por três segundos ou mais e depois, viramos passado, Ficamos para trás até sumirmos. Nós somos árvores que aparecem ao lado de fora do carro, pela janela e somos ultrapassados. no final da viagem, nem se lembram de como a gente era, ou é. 

Depois de mais trinta minutos, meu pai parou num posto, acordou a todos e disse: "Querem comer aqui no carro ou lá dentro?" Todos combinamos de ir lá, levantar um pouco e esticar as pernas. Minha mãe foi ao banheiro com a Jennifer, que tentava ligar para o seu namorado. Théo saiu direto para comprar salgados, e o seu preferido: Quibe com queijo. Meu pai pediu um café pra ele e pra minha mãe, com alguns mistos pequenos. Bel pediu coxinhas, eu pedi bolinhas de queijo. Jennifer pediu apenas um sanduíche natural com suco de laranja, enquanto os garotos e eu, refrigerante. Aquele meu vício danado por um líquido que faz tão mal. Depois dessa pequena pausa, voltamos para estrada onde eu acabei tirando um cochilo. "Enzo! Acorda!" - Ouvi de leve minha mãe gritando.

Acordei e o carro estava virado de cabeça pra baixo, Théo estava morto ao meu lado, com um grande sangramento na testa. Nem Bel ou a Jennifer estavam no carro. Não conseguia ver direito o meu pai, que estava atirado no chão, longe do carro. Minha mãe tentava se mexer no banco carona, olhava pra mim com um olhar de assustada. Eu me soltei do cinto, me rastejei até a porta da frente e consegui abrir a porta, quando saí e me levantei, estava no meio do nada, minhas pernas ficaram bambas e eu caí no chão. O carro começou a pegar fogo e eu ouvia minha mãe gritar de dor. Quando vi umas luzes vindo na minha direção, era uma van, que parou pouco antes de me atingir, de lá saiu um homem alto, vestindo uma blusa xadrez manchada de sangue, ele pegou uma corda e amarrou meus braços, me colocou pra dentro onde estava Jennifer, sem roupas. Parecia ter sido violentada, ela respirava e mantinha os olhos bem abertos. Mas parecia não estar ali, eu tentava me levantar mas a van estava indo muito rápido e em todas as curvas eu acabava indo para o chão de novo. Quando olhei para o banco da frente e só pude ver o torso do meu irmão Bel. Tentei empurrar o homem para o lado afim de capotar. Mas ele acabou batendo numa árvore, que me jogou para fora do veículo. "Acorde Enzo, nós já chegamos!" - Disse minha mãe abrindo a porta do carro. Eu me levantei rápido, por causa do pesadelo que tive e acabei batendo a porta do carro.

— Alguém não teve um sonho muito bom. - Comentou meu pai - "tudo certo com você?"

— Sim, foi só um sonho ruim. - Eu falei, cabisbaixo.

— Tenta não mijar na calça, bobão! - Disse Jennifer, sorrindo, que me deu um abraço. Me senti seguro, pois o carinho da minha irmã, apesar de ser meio rude, era muito caloroso.

Hahahaha, bebezão chorão! - Brincou Bel, me dando um soco de leve no braço. 

Eu sorri, olhei para a placa ao lado da rodoviária que dizia: "Bem-vindo a FarmCity. População: 15.684 habitantes."

— Que que eu te falei? As  pessoas não moram mais aqui pois têm medo desse lugar. - comentou Théo, baixinho no meu ouvido.

— Ah cala a boca! - Falei pra ele, de forma meio apreensiva.

Compramos as passagens de ônibus que nos levariam até a fazenda. "Certo gente, nos despedimos aqui, vocês se lembram da casa dos seus avós né?" - Falou minha mãe.

— Sim, é aquela fazenda velha com cercas baixas cheia de rosas mortas na frente. - Disse Jennifer.

— Que eu me lembre tinha muita gente morta lá. - Disse Théo me olhando com cara de malícia.

— Eu lembro! - Falou meu pai, enquanto pegava as malas do carro.

— Certo, quando chegarem lá o tio Ruy vai estar esperando vocês, já falamos com ele. - Explicou minha mãe.

— Quem? - Perguntou Jennifer.

— Não é exatamente um tio, a família da sua mãe contratou ele pra cuidar da fazenda, embora não tenha mais animais lá. Ele deve ter uns trinta e um anos, é alto e forte. Bom, típico de alguém da roça. Ele vai explicar tudinho pra vocês, qualquer coisa pode ligar pra gente. - Explicou meu pai.

— Certo! - Disse Jennifer e Théo.

Nos despedimos, entramos no ônibus e partimos em direção a casa de meus avós...

 


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Notas finais do capítulo

Um pesadelo ou um presságio? Será que o sonho de Enzo foi um aviso dos espíritos ou apenas um produto da imaginação?



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