Seu Chapéu Torto escrita por Voodoo


Capítulo 4
IV




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/729983/chapter/4

Não dormi aquela noite, mas tentei ao máximo não pensar muito no encontro com meu primo. Não sei dizer ao certo o quão bem o fiz; no dia seguinte, todos da casa continuavam a ignorar-me, ao passo que Philippe parecia ter saído de seu auto imposto exílio e agora era visto com mais frequência.

Evie, por sua vez, acordou pálida e desgastada; se recusava a falar com quem quer que fosse, e evitava aparecer a todo custo. Pensei em lhe perguntar se algo havia acontecido, mas segurei minha curiosidade com medo de comentar algo infortuno. Eu sabia que havia alguma coisa de errado. Ainda que fosse época de Natal, ninguém parecia estar em clima festivo ou sequer religiosa—a propriedade inteira se encontrava cercada por um ar pesado que não se encaixava muito bem com a data.

North Grove inteira estava estranha. Minhas tias pareciam se arrepender de ter vindo nos visitar, e embora em outros tempos eu houvesse ficado feliz com tal ideia, naquele momento eu não dava a mínima importância para tal; eu era parte de sua razão. Enquanto todos se ocupavam em reclamar do clima ou em olhar torto tanto para mim quanto para Philippe, ele era o único que não parecia afetado pelos seus arredores, ainda que antes não estivesse em bons espíritos: continuava com o mesmo jeito calmo e reservado de sempre.

Dessa mesma maneira, Philippe parecia ter se esquecido do nosso encontro na noite anterior; uma parte mim o agradecia por isso, já outra remoía-se de curiosidade. Ainda assim, preferi ignorar quaisquer pensamentos que me viessem à tona daquele evento. Se eu tivesse que saber algo, eu saberia, uma hora ou outra.

De qualquer forma, ele não veio mais falar comigo; de fato, não o vi falando com mais ninguém.

À tarde, resolvi reorganizar meu plano. Esperar até o Natal propriamente dito seria esperar uma eternidade; embora faltasse apenas um dia para a data, o clima tenso que havia espelhado por North Grove fazia as horas passarem mais vagarosamente do que o normal. Uma distração, com toda certeza, seria bem-vinda, acreditava eu; colocaria as engrenagens para girar naquela noite mesmo.

Então, como se as forças do universo conspirassem a meu favor, a noite pareceu não tardar muito a nos cobrir. Logo todos foram à paróquia, incluindo eu, para a típica celebração que se iniciava antes do grande evento propriamente dito. Presenciei a missa com pouco entusiasmo; às vezes olhava para o lado, checando Philippe, e o pegava com a cabeça inclinada a escutar as palavras do pastor. Ele não esbanjava sentimento algum em seu semblante, os olhos sempre vidrados na figura a nossa frente como se estivesse apenas a escutar a fala de alguém ao invés de ouvi-la.

É apenas agora, analisando meu passado, que começo a entender a fascinação antes inexplicável que sentia por Philippe. É algo tipicamente inglês: todos tratavam o pastor como uma figura máxima, uma figura a ser respeitada e seguida; pobre ou rico, a religião redimia o homem, lhe dava caráter e uma moral que lhe assegurava um posto mais alto na esfera terrena. Era a norma, a teoria infalível, e poucos ousavam criticar o que lhes era mostrado entre os mármores e os vidros coloridos da paróquia. Aqueles que o faziam, entretanto, eram gentilmente categorizados como céticos demais, barulhentos demais; desprovidos de fé, não a fé divina, acredito eu, mas a fé na própria essência do mundo. Hereges.

Philippe, por sua vez, sentava-se diante do homem que todos enxergavam como o mediador mais próximo do céu com a postura relaxada e os olhos críticos de quem o desafia a fazê-lo compreender suas palavras.

Desde o começo, em um mundo branco e preto, ele era cinza.

Sorri; sentia-me privilegiado embora ainda não compreendesse o porquê de tal sentimento.

Ao fim da missa, todos dirigiram-se à North Grove novamente; esbarrei com Eleanor nas escadarias, mas nenhum de nós dois desculpou-se ou sequer olhou na face do outro, como se era esperado. No momento em que adentramos a sala do solar, a governanta veio prontamente avisar que o jantar havia acabado de ser posto à mesa.

 Olhei o relógio da sala; eram quase nove horas da noite. Aquela era a minha chance.

Todos sentaram-se em volta do móvel de madeira escura, mas ninguém parecia especialmente com vontade de esbanjar-se nas batatas assadas ou no pernil que se apresentava a nossa frente. É fato que a comida não parecia estar demasiada apetitosa naquela noite, mas ninguém prestava muito atenção nesta. Percebi alguns dos convidados olhando de soslaio para mim e Eleanor, além de para Philippe; os ignorei. Uma de minhas tias tentou puxar assunto, comentando que o filho, que se encontrava ausente, fora estudar no exterior e não possuía mais data para voltar; esta foi apenas recebida com curtas e desinteressantes respostas que terminaram a conversa antes mesmo que ela começasse.

À minha frente, do outro lado da mesa, estava meu primo, introspectivo como sempre; à minha direita se encontrava Evie, os olhos inchados, de, acredito eu, chorar por quaisquer motivos que fossem; meus pais sentaram-se nas cadeiras seguintes à Evie.

Comi pouco, e esperei que todos terminassem suas refeições antes que eu pudesse anunciar algo; precisava seguir a etiqueta. Meu pai foi o último a colocar os talheres acima do prato, e após isto ninguém proferiu mais palavra alguma. Aproveitando a brecha que me fora concebida, e antes que alguém pudesse se despedir e levasse consigo, assim, a minha oportunidade, levantei-me.

Os olhares de todos caíram sobre mim.

— Sei que ninguém aqui está necessariamente com o humor para isto, mas – suspirei – acredito que seria... favorável que nos esquecêssemos de quaisquer problemas mal resolvidos entre nós.

— Leo? – minha mãe sussurrou ao meu lado, o cenho franzido.

— Por isso, irei propor uma distração – continuei, ignorando-lhe – uma música... Ao piano.

Houve uma confusão momentânea; Evie trocou olhares comigo, sem entender ao certo o que estava planejando, mas foi em Philippe que meu foco parou. Ele apontou para si mesmo, perdido entre a atenção que de repente havia sido dirigida a sua pessoa. Assenti com a cabeça.

— Philippe – disse.

— Eu recuso – respondeu prontamente, ainda que gaguejando de leve e ganhando as expressões de surpresa dos demais presentes, inclusive da minha.

— Por favor. Se você nos fizesse este favor... – insisti, não deixando que uma negação acabasse com tudo o que eu havia planejado até ali. Planejado, aliás, para ele mesmo.

Philippe levantou-se, parecendo conflitado.

— Eu já disse que me recuso, Leo. Um não é um não.

— Foi você quem me ensinou o poder do desabafo de uma peça, não foi? – protestei. – O que lhe custa?

— Se quer desabafar algum sentimento, porque não toca você mesmo?

— Porque eu não sei!

De repente senti minha voz falhar – segurar choro por dois dias não havia auxiliado o meu emocional de maneira alguma. Acredito que logo depois Philippe se arrependeu de sua aspereza comigo, pois seu semblante se suavizou, e ele deteve-se em sair da sala.

— Apenas uma e única vez – ele sussurrou, e caminhou em direção da sala de visitas. Os demais entreolharam-se por um momento, mas se recusaram em perguntar algo a mim; logo, todos os presentes foram ao piano, e pela primeira vez em alguns dias, pareciam que as coisas estavam tomando um rumo certo.

Sentei-me na mesma poltrona de antes. Philippe respirou fundo, aparentemente tenso, e começou a tocar—em poucos segundos percebi que era a mesma melodia que ele havia me mostrado da outra vez. Meus tios e meus pais se encantaram com a música em poucos instantes; até mesmo Evie, que acreditei que iria deixar-nos na primeira oportunidade, sorriu de canto ao ouvir as notas mesclando-se.

Enquanto balançava as pernas ansiosamente, percebi que Eleanor também prestava atenção a Philippe, embora não sorrisse nem parecesse se deleitar como os outros; no fundo, esperava que aquilo servisse de uma lição para ela. Philippe não era o que ela acreditar ser. Eu sabia que ele não era.

Ao fim da peça, todos aplaudiram o pianista; este apenas levantou-se do banquinho e agradeceu, visivelmente nervoso.

— Ora, esta foi uma surpresa... estranhamente agradável, querido Leo, tenho de admitir – comentou Nancy, a mais velha das irmãs de minha mãe. Despois, dirigindo-se a Phillipe, gracejou: – Se continuar desta maneira, depois da guerra, poderá tocar na corte falida de Napoleão! Ele necessitará de muitos músicos para lhe consolar.

A fala dela surtiu um efeito semelhante ao de uma alfineta em Philippe, julgando por sua expressão.

— Precisamente, senhora – ele respondeu. – Se fôssemos esperar que um inglês conseguisse tal façanha, seria ingenuidade.

Engoli em seco.

Talvez eu estivesse errado. Era graças a presença de Philippe ali que o ar de North Grove havia adquirido aquele aspecto pesado, eu entendia; meu desentendimento com Eleanor havia apenas piorado as circunstâncias. Se as coisas ficassem ainda piores...

— O que está tentando inferir com isto, rapaz? – retrucou Nancy, as sobrancelhas erguidas enquanto ajustava as luvas de seda como se aquilo fosse lhe restaurar a porção ferida de seu frágil ego inglês.

— Philippe – meu pai intrometeu-se na conversa – seria melhor que você voltasse—

— Eu disse, – ele continuou, ignorando o próprio tio por completo – que inglês nenhum teria a capacidade de agradar ao Imperador. Pois, é claro, a cultura daqui é demasiada deficiente, desprovida de cor, gosto ou caráter para ser proveitosa a qualquer francês que se preze das próprias raízes.

— Philippe! – meu pai exclamou, visivelmente aturdido.

— Mas que rapaz insolente! – Nancy continuou. Neste ponto, ela já começava a arranhar as luvas. – Seriam todos os jovens franceses assim, sem modos!

— Não posso lhe informar caso a isto, mas de que me importa! Eu vi a maneira com que vocês me olham, tanto pela minha nacionalidade quanto pela minha origem. Eu entendo; minha presença aqui não é agradável a ninguém, porém, infelizmente, não posso fazer nada quanto isso. Apenas concordei em sentar-me ao piano pois senti pena de Leo, e pena da maneira como os ingleses acreditam que a aparência seja o ápice de um homem. Lhes desejo uma boa noite, no mais; não irei mais lhes importunar. Continuem a ignorar minha existência aqui—será mais proveitoso a lançar comentários infortunos.

E com uma reverência, subiu as escadarias para seu quarto. Todos da sala permanecerem quietos; Nancy agora pegava um leque de uma mesa à parede e se abanava compulsivamente com o mesmo, andando de um lado para o outro. Ninguém se permitiu um som sequer. De repente, Nancy deteve-se e virou para minha mãe.

— Não fará nada a respeito disto? Primeiro, minha filha é humilhada por Leo, seu filho, por culpa daquela peste parasita. Agora mesmo ele me humilha, e na frente de todos, como se não bastasse! Esta é a educação que se recebe nesta cara, Mary? As crianças superpõem-se aos adultos?

Minha mãe balançou a cabeça negativamente, sem saber o dizer. Vendo o seu embaraço, meu pai voltou-se a mim, o brilho furioso já tão bem conhecido por mim estampado em seus olhos negros. Eu sabia o que viria depois.

— É tudo culpa minha – disse, o sentimento tão familiar em minha garganta se tornando mais e mais forte a cada segundo. – Eu sei! Eu sei!

Corri pelas escadas acima o mais rápido que pude; meu pai não conseguiu me alcançar. A destreza de uma criança amedrontada jamais se comparará à de um adulto enfurecido. Ao entrar em meu quarto, tranquei a porta e joguei a chave para o canto, de maneira que depois, eu pedia, esquecesse onde ela estava e nunca mais precisasse ter de sair dali e encarar minha família.

Não segurei mais as lágrimas; comecei a chorar ali mesmo, a testa de encontro com porta, soluçando e blasfemando contra mim mesmo, contra a minha família, contra o mundo.

Mas não, não contra Philippe.

— Leo – soou uma voz atrás de mim.

Virei-me, assustado; era ele.

— Imaginei que você fosse aparecer aqui depois – Philippe estava sentando na beirada da cama, segurando um cavalo de madeira velho que um dia havia sido o meu brinquedo favorito. – Eu... não sei ao certo o que dizer. Desculpar-me parecerá errado, e dizer que sinto muito será injusto.

Não consegui responder, pois os soluços não deixavam; minha aparência deveria estar péssima. Philippe olhou-me com pena, justamente o último sentimento que gostaria de receber dele.

— Sente-se, você não está bem.

— Saia – respondi, entretanto, apontando para a porta.

Philippe balançou a cabeça negativamente.

— Não vou deixar você sozinho.

— Por quê?

— Necessita mesmo que eu responda isso?

Não, pensei. No fundo, não queria que ele fosse embora e também não tinha força nem vontade o suficiente para discutir. Sentei-me ao seu lado, esfregando as mangas de minha camisa no rosto para limpar as lágrimas que não cessavam em cair.

Permanecemos em silêncio por um certo tempo.

— Por que fez aquilo? – Philippe perguntou-me de repente, os olhos fixos no brinquedo de madeira às suas mãos. – Se envolveu em uma discussão com a própria família, para... O quê? Defender-me?

— Você também é minha família – respondi.

— Eu sei; mas é diferente.

— Então me reprova? – ri.

— Não, não. Porém não lhe incentivo, também. Tudo isso apenas me é esquisito demais para compreender.

— Não me é esquisito. Você é meu primo, e uma pessoa boa—queria que eu deixasse uma estranha lhe insultar, ainda mais pelas suas costas?

Ele respirou fundo.

— Essas coisas acontecem, Leo.

— Mas não deveriam – resmunguei, deitando-me no colchão. Philippe continuava a encarar o cavalo, como se para evitar olhar para mim.

— Quanto ao piano, – continuei – eu queria mostrar aos outros do que você era capaz. Achei que se o fizesse, meus pais iriam se encantar tanto com o seu tocar que... não sei. Lhe mandariam a uma escola ou algo do gênero, talvez; acreditei que fosse te fazer feliz. Lembra-se daquela conversa na biblioteca? – ri. Apenas quando despejei meus pensamentos ao vento toquei-me do quão infantis eles eram; era como se às vezes eu esquecesse que as coisas nunca são tão fáceis e manipuláveis na vida real.

— De verdade? – ele riu de volta, incrédulo.

— Sim. Mas eu falhei, é claro; era de se esperar.

— Aquilo foi culpa minha, Leo. Não se remoa por causa disso.

Virei os olhos.

— Bem, não será você quem vai levar uma surra amanhã, de qualquer maneira – sussurrei. Infelizmente Philippe tinha bons ouvidos; era de se esperar.

— E você acha que irei escapar ileso dessa? – franziu o cenho. – Ah, basta. Você deveria dormir, e eu também.

— Vai dormir aqui? – perguntei de imediato. Ingênuo. Philippe pareceu pego de surpresa pela pergunta, pois deteve-se em colocar o brinquedo de volta à mesa.

— Não, Leo. Eu tenho que voltar para o meu quarto.

Assenti com a cabeça, uma pontada de arrependimento atingindo-me; de onde havia vindo aquele sentimento ou aquela pergunta, não sabia explicar ao certo. Philippe não me parecia especialmente ansioso em ir embora, também, pois ficou a arrumar minha escrivaninha por um tempo, quieto. Terminado seu trabalho, ele abriu minha cômoda e tirou um cobertor de uma das gavetas; jogou a peça em cima de mim, desejou-me boa noite e se retirou em direção à porta.

Ao abrir a maçaneta, o vi vacilar por um momento. Philippe olhou-me uma última vez antes de sair.

— Obrigado – sussurrou.

— De nada – concordei.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Seu Chapéu Torto" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.