Questões de Coração escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Questões de Coração




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Eu sei que ela morreu ali. Não consigo esquecê-lo.

Ela passava muito tempo naquela banheira. Por isso, não achei estranho aquele dia em que ela nunca mais saía de lá. Quando a chamei e ela não me respondeu, julguei que o seu silêncio se devia ao barulho da água a correr silenciando a minha voz fraca. Mas não. Ela mantinha-se silenciosa de propósito, tinha acabado de cortar os pulsos com a minha lâmina de barbear.

Desde os sete anos que estou confinado a uma cadeira de rodas. Foi graças a um atropelamento que me danificou a área lombar da espinal medula. Deixei de conseguir mexer as pernas, como se deixassem de ser minhas. O sentimento de perder o controlo de uma parte de nós próprios é aterrorizante. Considerei bastante o suicídio mas nunca teria coragem de o fazer. Sou um cobarde. Um rato, metade de um rato.

A Aline conhecia-me desde pequeno. Sempre tomou conta de mim. Esteve a meu lado nos melhores e nos piores momentos. Nunca me deixaria - foi o que prometeu diversas vezes na outra ponta da cama onde eu dormia. Afinal de contas, mentiu-me. Mentiu-me sempre.

Para um paraplégico como eu, casar com uma mulher daquelas parecia um sonho. Os seus cabelos eram curtos e o seu corpo magro era artisticamente delineado. Eu amava aquela mulher e esperava que ela me amasse de volta - parece-me justo.

Ela queria muito ter filhos mas a ideia assustava-me um pouco. Não só a parte de deixar um legado como também a parte de o produzir. Ambas metiam-me um medo imenso. Tivemos muitas discussões sobre o assunto, umas mais acaloradas que outras. Nos últimos meses das nossas vidas enquanto casal costumávamos discutir imenso e, normalmente, admito, era ela quem tinha razão. Eu era apenas cobarde. Sempre fui. A minha condição deprimia-me. Tremia bastante e não parava de pensar em certos temas mórbidos. Passava os meus dias afogado em antidepressivos. A Aline odiava isso. Odiava tanto isso. Mas eu não me importava. Eu só queria ao máximo evitar matar-me, por mim e por ela. Mais por ela porque não a queria deixar. Só por isso.

Lembro-me de tudo o que aconteceu naquele fatídico dia. Era o meu aniversário. Visto que não sou propriamente pobre, alugámos um cruzeiro por algumas horas e observámos o pôr-do-sol a partir do alto mar. Foi uma visão inesquecível. A paisagem era incrível e o céu parecia arder nas quentes brasas de Hefesto. Quando voltámos a casa, passámos a noite juntos como sempre. Mas aquela noite foi especial. Sentir o corpo dela junto ao meu nunca me deixou tão vivo. Ao tocá-la, eu lembrava-me que estava vivo e que me controlava. Afinal sempre tenho controlo sobre mim próprio. Sou eu que comando a minha vida. Enquanto permanecermos juntos, nada de mal poderá acontecer. O calor sensual do contacto com aquela pele fina, suave. Os lábios avermelhados pelo momento, as faces rosadas do prazer da sensação. Éramos um só. Eu amava-a e ela amava-me a mim, tinha a certeza disso.

Mas, no dia seguinte, deu-se a tragédia. Suicidou-se, ali, naquela banheira. Fito-a neste momento com um ódio impossível de descrever. Quase a consigo ver ainda: o corpo esbelto deitado sobre a porcelana fria, a água banhando as suas pernas e ancas, a ponta entumescida dos seios a descoberto, o sangue escorrendo daqueles pulsos mutilados...

Quase ainda a vejo. Ali deitada, olhando para mim, chamando-me.

Deixo a cadeira de rodas e escorrego para o chão. Com toda a força de braços que me resta, rastejo em direção a ela, ao espetro dela que creio ver. Iço o meu corpo. O suor cobre-me completamente o rosto e o peito, mas isso pouco me importa. Com dificuldade, mas com sucesso, subo para dentro da banheira branca. Deito-me de barriga para cima, da mesma forma que encontrei falecida a minha amada. Matara-se. Por minha culpa.

A água começou a cair da torneira. Não me lembro de a ter ligado. No momento, isso pouco me importa. Limito-me a imaginá-la, o corpo dela sobre o meu, acariciando-me os encaracolados cabelos que retive da infância. Aline, amo-te tanto.

A água envolvia-me até ao pescoço, tal como os braços pálidos do fantasma da minha amada. Tenho quase a certeza de que ele estava ali comigo, partilhando uma última noite. Quando me empurrou o pescoço para baixo não julguei que fosse por maldade. Talvez quisesse que eu fosse ter com ela. Eu iria ter com ela de bom grado. Porque eu a amo. Estou a caminho, Aline. O espetro dela era real, ele afogava-me. O líquido tapava-me completamente as narinas e a boca. Sentia o ar a deixar-me os pulmões. Sentia-me morrer mas não me sentia mal por isso. Ainda consegui ver o fantasma sorrir. Diz-me que não é por maldade, Aline. Eu não queria isto. Perdoa-me. Eu não queria que tu...


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