Uma Visita ao Jardim Zoológico escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Uma Visita ao Jardim Zoológico




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A bengala de osso esculpido produzia graves baques a cada embate com o chão de cimento. À sua frente, um funcionário do estabelecimento era imobilizado por uma comprida e gordurosa Boa constrictor, mais conhecida como jibóia nos linguajares comuns. Com a sua mão livre, cofiava a pouca barba branca que lhe cobria a ponta do queixo. A íris escarlate dos seus sombrios olhos fitava o corpo exposto do seu jovem prisioneiro. Admirou a sua figura, seu ar exageradamente masculino. Todo seu. Era inevitavelmente seu.

Desabotoou-lhe o uniforme e tocou-lhe o peito. Sentia-o. Sentia-lhe a vida, o coração pulsando em intervalos regulares. Intervalos curtos. Afagava a penugem que lhe cobria a pele bronzeada, sentindo-lhe tudo.

Anatomicamente, seria impossível. Por meios naturais, o feito que se seguiu poderia ser tudo menos explicável. O réptil apertou o homem até o limite. Este já não era capaz de comunicar, o sangue ocupava-lhe todo o espaço interior da laringe. Este começou a escorrer pelas narinas e pela boca aberta, procurando em vão algum oxigénio. Morreria em breve, já o sabia. Mesmo assim, rezava pelo contrário.

Então, o homem que por métodos obscuros controlava o animal beijou-lhe o peito. E, num último aperto da criatura, o volumoso coração da vítima foi-lhe emergindo por entre os lábios. O órgão ainda se contraía e dilatava, agora num ritmo mais lento, estabilizado entre os dentes do seu antigo portador. Um portador que já não respirava. Um portador que nunca mais precisaria dele.

Perante tal espetáculo, Alphonse Grady imaginou o falecido funcionário beijando de livre vontade o seu próprio coração. Refletindo sobre esses seus pensamentos, lambeu os lábios, um hábito seu. E, para finalizar, sorriu.

 

...

 

Ao chegar ao jardim zoológico, a pequena Orianna não estava à espera de ver aquilo. Esperava filas enormes e um amontoado de gente, a mãe falara-lhe disso, avisara-a com antecedência, mas não estava preparada para isto.

Dois corpulentos homens movimentavam com violência um pequeno macaco através do pavimento. Estavam a extraí-lo da jaula onde residiam aprisionados os restantes símios. Estes, ao testemunharem o "rapto" do seu companheiro, talvez amigo de infância ou familiar, gritavam como loucos, esbarrando contra o resistente metal que os separava da tranquilizante ilusão a que chamamos "liberdade". Os homens de uniforme estavam a separá-lo dos outros e Orianna não fazia a mínima ideia da razão para tal. Talvez estivesse doente e tivesse de ser tratado. O macaquinho estava em pânico, saltando agressivamente, esperneando e esbracejando enquanto os tratadores o tentavam dominar.

O macaco era albino. Seu pelo branco contrastava com os olhos pintados de vermelho vivo. Orianna, pelo contrário, era mulata. Seus cabelos eram escuros como a sombra mais negra e seus olhos castanhos como uma folha atormentada pela chegada do outono. Sentira um rasgo de compaixão ao ver o macaquinho sendo arrastado contra a sua vontade. Não tinham o direito de controlar o animalzinho. Ele devia estar livre. Na verdade, deviam estar todos livres. Porque é que o mundo não funciona assim?

Não foi capaz de conter as lágrimas. A mãe logo a limpou com um lenço branco.

"Pronto, não te preocupes. Vai passar."

Mas não vai passar.

"Porque viemos? Eu não quero ver os animaizinhos assim..."

"Os animais têm de estar presos. Senão, poderiam magoar as pessoas."

Mas Orianna sabia-o do fundo do coração: os animais não queriam fazer mal a ninguém, só queriam ser livres.

Correu. Deixou a mão da sua adorada mãe e fugiu para longe. Não queria estar no meio daquelas pessoas. Não queria ver o mal que estavam a fazer ao pobre macaco. Deixou-se ficar no interior de um arbusto denso. A mãe procurá-la-ia, mas não seria capaz de a encontrar. De certeza que não.

De repente uma mão pressionou-lhe o ombro. Orianna virou-se. Era um rapaz, um jovem adulto. Para além das calças camufladas, verdejantes, não vestia qualquer roupa. Seus cabelos eram loiros, da cor do trigo. Sua visão era de um hipnotizante verde-esmeralda. Era magro, ligeiramente afeminado, e possuía sempre no rosto um esgar sarcástico.

"Estás perdida?"

"Não..."

Orianna falava com relutância. A mãe disse-lhe para não falar com estranhos. Todavia, também tinha dito para nunca lhe largar a mão em sítios desconhecidos como aquele. A súbita memória fê-la estremecer.

"Está tudo bem?"

"Sim..."

O homem esboçou um sorriso animado.

"Vem comigo. Eu levo-te à tua mãe."

E ofereceu à menina a palma aberta da sua mão.

Devia aceitar, não devia? A mamã já devia estar preocupada com ela. Não devia ter desaparecido daquela forma. Pensar nisso até lhe dava vontade de chorar. Não queria que a mãe ralhasse.

Aceitou a mão do desconhecido. Este iria conduzi-la em segurança através da multidão. A mamã ficaria alegre e reconfortada ao vê-la, tinha quase a certeza disso.

Contudo, não foi até à sua mãe que ele a levou. Estavam agora num cubículo estranho e levemente claustrofóbico. O corpo de um homem, um funcionário do zoo, repousava junto a uma das paredes, ao lado das enormes prateleiras com material de manutenção. Era como se estivesse a dormir, mas algo lhe dizia que esse não era o caso. Começava a sentir-se assustada com tudo isto. À sua frente, um numeroso conjunto de monitores, cada um conectado a uma das múltiplas câmeras de vigilância do recinto. Algo nisso a preocupou ainda mais: a multidão havia desaparecido. Os amontoados de gente desapareceram dos locais de onde há poucos minutos observavam os animais enclausurados.

"Onda está a mamã?"

"Não te preocupes, querida. Ela está mesmo aqui. Vês?"

E apontou para um dos monitores da fileira mais abaixo. Era da câmera que vigiava a sala onde guardavam algumas jaulas que não eram utilizadas. Presos nas mesmas estavam os visitantes do jardim zoológico, amontoados naqueles minúsculos espaços entre grades de aço. Ele, o homem desconhecido, não lhe mentia. A mamã estava mesmo ali. Desesperada, gritava o seu nome.

"Orianna! Orianna!"

"Mamã! Eu estou aqui! Estou aqui!"

"Ela não te consegue ouvir, pequenina."

O desconhecido. A culpa era dele. Só podia ser dele.

"Ei! Pequenina! Olha para aqui."

E apontou para outro monitor. Nele, via-se uma das muitas regiões do parque. Aquela era próxima das jaulas onde dormiam os fascinantes leões e os seus primos tigres. Diversas pessoas de uniforme estavam lá, deitadas no chão, imóveis e incapazes. Estavam mortas. Dois ainda se mantinham de pé, um empunhando uma arma de fogo.

Primeiro, pensou que aqueles dois homens que via na gravação eram os maus, que estivessem a trair os seus companheiros. Depressa percebeu o seu engano.

Um deles, o desarmado, levou as mãos ao pescoço. Algo estava errado. Abria a boca como um peixe fora de água. Era isso: não conseguia respirar. Algo o impedia, algo lhe obstruía os canais respiratórios. Seus olhos incharam, injetados de sangue fresco. Caiu sobre os joelhos, provavelmente magoando-os visto que o chão era de pedra. Só segundos depois desistiu finalmente, quando os seus braços largaram o pescoço e relaxaram, pendendo nas extremidades do corpo morto. Da sua boca aberta, saiu um ensanguentado macaco branco.

O restante homem disparou dois tiros, tentando atingir o esquivo primata. Mas era impossível. Era demasiado rápido e diminuto. Subindo pelas pernas da sua vítima, o peludo homicida instalou-se na sua cara, arranhando-a em fúria. Gritando de dor, o funcionário tentou pegar no animal. Estava preso à sua pele com as garras. Ao tentar puxá-lo, arriscava despedaçar a sua face, fazendo saltar densos pedaços de carne. Isto exigiu medidas desesperadas. Pegou na arma. Restavam-lhe duas balas. Colocando o cano na vertical, rente ao seu queixo suado, disparou.

O macaco caiu por terra. Não estava ferido, limitou-se a saltar e evitar o tiro. Pelo contrário, a munição havia raspado a cara do humano. Arrancara violentamente os seus lábios e o nariz, outrora notável, havia sido parcialmente despedaçado. Gritava com a imensa dor. Com as mãos enluvadas, cobria o rosto, tentando travar a potente hemorragia. Naquela altura, tinha os olhos tapados. Mas, se tivesse estado atento, podia ter visto o albino símio a mudar de forma. O seu corpo alongou e tornou-se mais musculado. O excesso de pelagem desapareceu. Era agora um verdadeiro humano que o ameaçava. Um homem vestindo um casaco de pelo falso, umas jeans apertadas e umas botas de couro. Era aquele homem albino que se chamava Alphonse Grady. É claro que o funcionário não o sabia nem viria a saber. A única coisa que mais fez foi morrer quando o seu assassino pegou na arma que deixara cair e a disparou diretamente à cabeça.

Se Orianna já soubesse ler, poderia ter lido o relatório que se encontrava na secretária em frente aos ecrãs. Segundo os papéis, aquele macaco andava a apresentar um comportamento agressivo para com os tratadores. Estes temiam que exibisse as mesmas atitudes para com os restantes animais e, apenas por isso, tentaram separá-lo deles, isolá-lo até se acalmar um pouco. Escusado será dizer que o bicho não se acalmou.

Pouco demorou até Alphonse entrar na sala de controlo onde Orianna contemplava estarrecida os monitores. Ao olhar a menina, cofiou um pouco a barba e lambeu os lábios, hábito que adquirira ao conviver de perto com o rapaz das calças camufladas. Na sua mão, trazia a querida bengala de osso esculpido. Servy "Naja" Pentagon, o loiro semi-nu, metamorfoseou-se. Odiava com sinceridade a sua forma humana. Seu escamoso e húmido corpo de cobra trepou a bengala, enrolando-se nela. Sua língua serpenteava, produzindo aquele temível sibilar característico dos membros da sua espécie.

"Bom dia, minha menina. O meu nome é Grady. Já nos conhecemos antes."

Apresentou-lhe a sua mão, estendendo-lhe os dedos cobertos por uma penugem quase invisível, esperando que ela a apertasse com a sua. Mas não o fez. A mamã tinha razão. Não se aperta a mão a desconhecidos, não se fala com desconhecidos. Não lhe responderia, acontecesse o que acontecesse.

Surpreendido pela exagerada relutância, recolheu a mão.

"Mostraste-lhe os monitores, não foi, Naja? Eu disse-te para não fazeres isso."

Declarou isto quase sussurrando, acariciando com um só dedo o pescoço da cobra, se é que podemos chamar pescoço à região inferior ao seu focinho. Naja não respondeu. Sabia tratar-se de uma pergunta retórica. Não resistira a mostrar toda a carnificina àquela jovem criança. Testemunhara tudo em tempo real. Isso fê-lo sentir-se tão bem...

Rastejou lentamente até ao pescoço do seu amigo, talvez amante, sibilando de prazer enquanto o fazia.

"E agora? O que fazemos?"

Tratava-se novamente de uma pergunta retórica. Grady sabia exatamente o que queria fazer.

Debaixo dos monitores de segurança existiam duas alavancas de emergência, protegidas por redomas de vidro. Uma abria automaticamente as jaulas de reserva. A outra comandava as jaulas principais.

"Esta é a tua oportunidade de brilhar, minha menina. Só tens de puxar uma das alavancas. Não tenhas medo. Nada de mal te vai acontecer. É só fazeres a escolha certa."

Orianna mirou os dois objetos, o doce mecanismo descoberto por Arquimedes no terceiro século antes de Cristo. "Dê-me uma alavanca longa o suficiente e um suporte forte o suficiente que eu poderei sozinho movimentar o mundo". Fortes palavras para um sábio já morto.

Os animaizinhos estão presos. Eles não merecem estar presos. Eles são como nós e querem estar em liberdade.

«Os animais têm de estar presos. Senão, poderiam magoar as pessoas.»

A voz da mãe vinha-lhe à memória. Sim, ela tinha-lhe dito isso. Não chegou a explicá-lo com pormenor porque não tivera tempo. Porque ela fugira como a estúpida e imatura criança que era. Essa ideia deixou-a triste.

Mas ela tinha a certeza de que os animais não fariam mal a ninguém. O seu coraçãozinho dizia-lhe isso. Mas... e se estivesse enganada? Não podia correr o risco ou...

"Pensa depressa. Não temos muito tempo."

E a jibóia falou, complementando a ideia:

"A tua mãe não tem muito tempo."

Iriam fazer-lhe mal? Prometeram que não me fariam mal, mas a minha mãe...

Eureka

E pressionou a alavanca. As jaulas abriram mesmo. E os humanos puderam sair em liberdade.

"É uma pena. Eu tinha esperanças que..."

Alphonse não conseguiu acabar a frase, Servy era um rapaz impulsivo. Num instante estava confortavelmente agarrado ao seu pescoço, no instante seguinte estava a morder ferozmente o pescoço da chorosa criança. Ao libertar os perfurantes dentes, um grande pedaço de carne tenra saiu.

"Pobre menina, pobre menina..."

Murmurava estas palavras enquanto esfregava compulsivamente a sua bengala, observando o corpo inerte da rapariga caindo contra o solo de cimento. Imaginou o seu cadáver feminino levitando sobre um mar de sangue para depois mergulhar sobre essas águas carmesim. Refletindo sobre esses seus mórbidos pensamentos, lambeu os lábios. Por fim, sorriu.

Pressionou a outra alavanca. O furioso gritar dos animais passou a ofuscar a voz esganiçada das pessoas que lenta e violentamente eram mutiladas por garras e dentes treinados para semelhante exibição.

"Vamos, Naja. Ainda temos muito trabalho a fazer..."

E deixaram Orianna gorgolejando, ainda viva, naquele cubículo escuro. Enquanto se sentia morrer, vislumbrou novamente o corpo do tratador que morreu no início desta história. Só agora teve a oportunidade de contemplar o seu olhar vazio. Só agora tinha finalmente a certeza de que não estava a dormir. Estava definitivamente morto.


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