"Me dê um gole de vida"

A manhã estava fria e nublada. Péssimo dia, apesar de que até dias assim existem sua importância e beleza. Pelo menos eu acho que existe beleza em dias assim. No claro e no escuro, a beleza está nos olhos de quem vê, meu pai sempre diz.

Saí na barraca que eu armava toda noite no quinta da "casa" de nossa família. Preferia dormir ao ar livre ou em uma barraca do que em meu quarto. Ele é grande de mais, com suas paredes brancas frias demais, nas quais minha mãe não deixa eu mexer. Seria mais meu quarto se eu pudesse decorá-lo como bem entendo, mas minha mãe não pensa assim, para ela eu sou uma aberração da moda e decoração. E talvez eu seja mesma, mas isso não me é decepcionante.

  — Marcelina, está acordada? — sua voz aguda e irritada, que todo rico mimado tem, enche meus ouvidos assim que meus dedos descalços pisam na grama — Vá logo tomar um banho, Mark não é apenas o seu motorista e eu preciso dele hoje, falei para seu pai que deveríamos contratar outro motorista, mas...

  — Mãe, eu acabei de acordar — murmurei bocejando, ao passar por ela. Seus cabelos loiros já presos em um coque perfeito, seu rosto entupido de maquiagem e suas joias adornando seu pescoço e pulso — Pode ficar com Mark, eu vou de bicicleta para escola, lembra?

Minha mãe era a unica pessoa que eu conseguia confrontar, talvez por ser a unica que não conseguisse me aceitar como eu realmente sou. Ela sempre me olha e se pergunta onde errou, eu era o seu único projeto de patricinha esnobe, e ela falhou na minha transformação, apesar de ainda não ter aceitado isso.

  — Como preferir — ela revira os olhos, me seguindo pela escada — Apenas achei que  tivesse tirado essa grande ideia da cabeça. O que as pessoas vão pensar? Marcelina Stone, herdeira das empresas Stone, indo de bicicleta para a escola como uma qualquer...

  — Eu não sou nenhuma princesa, mãe, sou uma qualquer! — resmunguei ao parar na porta do banheiro, olhando fixamente para os olhos verdes de minha mãe, idênticos aos meus  — Para eles, sou apenas a Mar. Agora, se me der licença, tenho que me arrumar para escola.

Vencida, ela me deu as costa, fazendo o som de seus saltos ecoar pelo corredor. Abri um sorrisinho vitorioso, apesar de detestar essas brigas matinais que eu sempre tinha com ela e entrei no banheiro. Me lavei rapidamente, não dando a atenção necessária para meus cabelos e os prendendo em uma unica trança frouxa. Vesti minhas calças largas marrons, com boca de sino, minha mãe as odiava, por ela eu nunca chegaria perto de uma dessas, mas eu adorava, principalmente quando eu usava com minha blusa comprida branca. Coloquei alguns colares de pena e pedra e fui até a cozinha, onde Bell estava servindo a mesa.

  — Bom dia — falei antes que ela percebesse que eu tinha entrado no local, olhei para o relógio no canto da sala de jantar. Eu tinha meia hora. — Mamãe já foi? 

  — Não, ela foi falar com o seu pai — Bell disse largando meu prato na mesa  —  O que você aprontou dessa vez?

  — Nadinha, juro — ergui as duas mãos para provar que eu estava sendo sincera, depois peguei o prato e os talheres de meu lugar   — Não vou comer em casa, já estou de saída...

  — Deixe que eu guardo isso, sou paga para essas coisas.

Neguei e levei a louça para a cozinha, onde guardei no lugar. Bell não gostava quando eu fazia as coisas por ela. E digamos que da minha parte era a mesma coisa.