Sob as asas do Anjo escrita por IsisRaleva


Capítulo 1
Capítulo 1 Não no sangue, mas no laço


Notas iniciais do capítulo

Por favor, informem o que pensam sobre o texto. Escrever é algo que me dá imenso prazer, então postarei de qualquer forma, mas é bacana saber o que as pessoas estão pensando. Coisa de vaidade, penso eu.
Meu tempo é corrido, essa semana devo postar na madrugada de sexta ou durante o final de semana, casa alguém fique interessado em saber.
Abraço!
Isis Raleva



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O sol havia raiado há pouco e seu brilho fresco, dourado, banhava a praia de Copacabana com carinho. Era como ver um casal de enamorados perdidos no brilho do olhar um do outro.

A jovem corria concentrada, olhos brilhando, lábios entreabertos em um quase sorriso. Preso ao top de lycra preto uma réplica de baixa qualidade do velho Ipod.

Era bela. Uma beleza limpa, marcante, discreta. Seu rosto único anunciava sem pestanejar que não havia em si simples doçura, mas equilíbrio. O tipo de equilíbrio que só reside naqueles que são verdadeiramente felizes. A pele clara abrigava o leve dourado de um corpo beijado diariamente pelo sol. Os cabelos, cachos cortados no famigerado estilo “Joãozinho”, abrigavam o tom acobreado de ruivos naturais. Dona de estatura mediana possuía silhueta inapropriada para as passarelas que idolatravam a magreza estrema. Não que isso fosse problema, o manequim que variava entre 38 e 40 era muito bem quisto por si. Amava-se!

Possuía rotina razoavelmente desgastante. Professora de escola pública acordava bem antes das 06h00min para lecionar. Estudante de mestrado em neurociências dormia, quase sempre, após as 00h00min.

Aquela manhã, entretanto, era diferente. Para começar, havia acordado mais tarde. Não muito tarde, pois dificilmente conseguia dormir após as 06h30min, todavia, 06h30min era, definitivamente, mais tarde do que 05h30min. Ajeitara, sem esmero, os curtos cabelos ruivos, calçara os tênis e escolhera um rock qualquer da década de 1950. A corrida matinal diária havia iniciado as 06h50min, horário em que, normalmente, estacionava o Sandero 2012 no pátio da escola em que lecionava.

Janeiro, mês de férias. O primeiro mês de Janeiro que passaria longe de sua família. O primeiro mês de Janeiro completo que passaria na “Cidade maravilhosa” desde que, no dia 29 de Janeiro do ano anterior, havia se mudado de sua terra natal.

Mineira apaixonada, nunca imaginou que teria que deixar BH. A experiência, entretanto, mostrou-se mais prazerosa do que se quer sonhara. Há quase um ano chegara à cidade após receber convite para participar da seleção final para o curso de mestrado em neurociências da UFRJ. Fizera as malas para alguns dias, mas antes de desfazê-las por completo, viu-se procurando um apartamento pequeno e barato para alugar, e buscando designações para cargo de professora do estado. A aprovação no curso de mestrado aos 23 anos, pouquíssimos meses após a conclusão da graduação, foi recebida com carinho e entusiasmo. Desde então, tudo mudou. Morar apenas com o cachorro, perder o contato diário com amigos que a acompanhavam desde a adolescência, sair da casa dos pais, “se virar” para bancar todas as contas. Ainda assim, em seu coração, sentia que tudo valera à pena. Defenderia sua dissertação em meados de novembro e, se tudo desse certo, ingressaria no Doutorado em seguida. Mestre aos 24, doutora aos 28, professora universitária aos 29, antes disso, se fosse boa o bastante. A vida estava pronta, planejada, e só completaria 24 anos em março.

Não conteve o sorriso ao passar, pela enésima vez, seu plano de vida. Sabia que era nova para estar onde estava e que chegaria muitíssimo longe ainda cedo. Sentia orgulho de si. Sentindo, finalmente, a cansaço inicial da corrida, resolveu interromper a atividade. Conferiu o relógio, 08h10min, em lenta caminhada dirigiu-se para o quiosque de Rafa, um adolescente sorridente de pele avermelhada e sorriso largo.

—Uai, e a escola, “minino”? – a pergunta veio acompanhada de um sorriso largo.

—Uai, e a escola, “fêssora”? – Rafael sorriu, com o brilho no olhar que só os adolescentes possuem, ao imitar o sotaque da jovem mulher que se debruçava sobre o balcão e se ajeitava em um dos bancos pouco confortáveis.

—Então... “tô” de férias, né? Professora também tem direito de descansar. – disse enquanto parava a música e apontava para um coco aleatoriamente.

—Então – Rafa começou imitando-a – aluno também tem direito de descansar.

—Descansar trabalhando?! – arregalou os olhos. Expressiva era uma palavra que a definia bem.

—Desde quando praia é trabalho? – outro sorriso de Rafael enquanto a entregava o coco – E de qualquer forma, é só pela manhã. Preciso levantar grana pra faculdade no próximo ano.

—Iniciar a faculdade com grana é importante – disse lembrando-se de seu primeiro ano absurdamente apertado em termos de grana na universidade  - Já ‘tá pensando em cursinho pré – ENEM?

—Isso ‘tá meio foda – Rafael começou de forma reflexiva, apoiando os cotovelos no balcão do quiosque e segurando o queixo com as mãos com expressão sofredora – minha mãe acha que é besteira começar o cursinho já em fevereiro, mas se dependesse de mim, já começaria hoje.

—Rafa, - o sorriso era de quem consola – são 2 de janeiro, amigo.

—E daí, Thaís? – o rapaz passou as mãos pelos cabelos que tocavam os ombros com ar desesperador – estudei a vida inteira em escola pública! Foram, é verdade, boas escolas, mas ainda assim, públicas. E você sabe da diferença discrepante entre instituições de ensino públicas e privadas no Brasil. Explica-me como vou competir com alguém que estudou em uma escola cuja mensalidade é 3.000, 00 por mês, o cara fica o dia inteiro na escola e já viajou o mundo. Minha mãe no Natal estava dizendo que sou mal agradecido, que devia erguer as mãos para o Céu porque minha vida é infinitamente melhor do que de um monte de adolescente por aí. Tenho uma casa boa, faço muito mais de 3 refeições por dia, tenho pais alfabetizados e letrados e só trabalho porque eu quis, nunca foi necessidade, mas mesmo assim, pensa!

Thaís estava com a boca aberta, pronta para pedir calma ao rapaz, apesar de dar razão a ele, mas foi interrompida por um pedido de “com licença” em um inglês com um sotaque não identificável. Rafael, a principio, pareceu perdido, mas logo respondeu ao estranho em seu inglês carregado e americanizado, típicos de cursinhos de idiomas. Apesar de tudo, Thaís parou para pensar, a mãe de Rafael estava certa. Ele era um dos poucos adolescentes brasileiros, estudante de escola pública com algum privilégio. Pensou em seus alunos da escola pública bem menos prestigiada que a de Rafael. Rafa tinha, definitivamente, chances muito melhores. Rafa seria como ela. Pobre, como a maioria dos brasileiros, mas em situação suficientemente confortável para se dedicar aos estudos e poupar-se da preocupação de levar dinheiro para dentro de casa, pois tem família para alimentar.

Seu devaneio foi interrompido por um puxão em seu braço vindo de um Rafael levemente aborrecido. Em seu sotaque de cursinho de idiomas sentia-se completamente à vontade para explicar para o estranho ao seu lado que, apesar de bonita, ela era lerda. Escutou o que parecia a parte final da explicação:

—...O mais engraçado, é que ela trabalha com cérebro. Agora, pense só você: a lerdeza em pessoa trabalhando com cérebro. Vai dar merda.

O estranho sorriu alto. A gargalhada doce e musical chamou sua atenção e, ao se deparar com alhos amendoados teve a leve impressão de reconhecimento. Agitou a cabeça. O rosto era inesquecível demais, não fazia sentido conhece-lo. Sobrancelhas grosas e bem desenhadas, barba por fazer, cabelo descolorido e piercings, muitos piercings pelo rosto. Por um instante teve a breve visão, como em desenho animado, do belo homem ao seu lado tomando um gole de água e o liquido jorrando por todos aqueles buraquinhos. Agitou, mais uma vez, a cabeça. Dessa vez para expulsar a visão. E, como se quisesse provar que Rafael estava certo, disse com um sorriso de criança perdida:

—Eu sou lerda mesmo.

O homem de gargalhada melodiosa sorriu novamente e, por alguma razão inexplicável, o sorriso a contagiou de tal forma que ela sorriu junto. Não uma gargalhada, mas um movimento de lábios fechados que expunha uma pequenina covinha em sua bochecha esquerda enquanto o rosto ganhava o tom de rosa claro que só quem é capaz de rir de si com o outro apresenta.

—O que foi? – A frase saiu cantada, arrastada, adocicada, pedia sincero esclarecimento ao outro.

—Eu não sei. – o sotaque desconhecido. De onde ele era? – Você é doce e fofa. Realmente não sei. Fez-me querer sorrir. Não de você! – ele foi rápido ao ver a face da jovem mudar para uma expressão de espanto – Foi como se de repente eu me sentisse em casa – ele mordeu os lábios ao vê-la abrir os olhos pequenos infinitamente – Céus! Eu só falo merda! – Foi um sussurro desesperado com direito a mão na testa. – Posso recomeçar?

—Por favor! – a essa altura, ela já estava às gargalhadas.

—Ok. Vamos nos ajeitar! Você volta para sua posição e eu pra minha. – disse rápido enquanto ajeitava o tronco no banco desconfortável – No três, ok? Tente escutar dessa vez. Uma, dois, três, foi! – e ele recomeçou exatamente como havia sido – Bacana sua tatuagem – o dedo indicador esquerdo e comprido dele, apontava para a parte externa do punho esquerdo dela.

—Ah, foi isso que você falou? – sua voz era um tanto sonhadora, o que o fez gargalhar outra vez. – Então - ela prosseguiu em seu tom de Luna Lovegood que só ela possuía – sou professora e super fã de Harry Potter. – Ela tocou leve os 5 pequeninos desenhos que enfeitavam seu pulso: uma lousa, uma caneta, um caderno, uma maçã e o símbolo das relíquias da morte.

—Na verdade, - o tom dele era delicado – o desenho deixa meio obvio que você é professora e gosta de Harry Potter.

—Pois é – ela suspirou – eu tenho outra, olha! – virou-se de costas para ele, de modo que o estranho incrivelmente familiar pudesse ver em seu ombro direito um galho de árvore, rodeado por pássaros, que trazia entre suas folhas objetos escolares.

—OK. – o sorriso do estranho era leve – você realmente gosta da sua profissão!

—Eu sou apaixonada! – os olhos dela brilharam tão intensamente, que os dele responderam ao brilho.

—Do jeito que você me olha, vai dar namoro. _ Rafael cantarolou em perfeito português de dentro do quiosque e ela, que sentia-se estranhamente à vontade ao lado do estranho, atirou o dedo do meio para o adolescente. Rafa, em sofrível inglês, disparou – Ouo, professora! – e os três, de maneira estranhamente familiar, sorriram.

E antes que ela pudesse se perguntar como, a conversa fluiu. Descobriu que o estranho cheio de tatuagens e piercings era Bill. Alemão residente de Los Angeles há alguns anos, isso explicava o sotaque indefinido. Bill tinha 27 anos. Bill tinha um irmão gêmeo. Bill tinha cachorros. Bill estava de férias. Bill estava com problemas em seu relacionamento. Bill era bem sucedido para sua pouca idade, mesmo que não tenha tocado diretamente nesse ponto. Bill também era viajado, conhecia todos os continentes. Bill era doce. Bill era divertido. Bill era confiável. Bill parecia uma criança descobrindo o mundo quando sorria.

Bill descobriu muito sobre ela também. Thaís era amante do saber e possuía formação acadêmica infinitamente superior à dele e isso, por alguns minutos, o constrangeu. O medo bobo de quem tem medo de parecer tolo na frente de quem se admira, mesmo que inexplicavelmente, como era o caso. Thaís era mineira e usava, com frequência, a palavra o uai, mania que o fez pensar por diversas vezes que ela estava perguntando o “por que?” de algo. Thaís morava sozinha há alguns quarteirões atrás da praia. Thaís morava em um apartamento barato e pequeno com seu cachorro chamado Feliz. Thaís podia ser chamada de Tha ou Tata, mas nunca de Tatá. Thaís possuía uma pequena coleção de 1.300 e alguns livros. Thaís saíra de sua cidade para estudar. Thaís amava uma cidade chamada Ouro Preto. Thaís não acreditava em amor à primeira vista. Thaís não queria namorar, pois tinha um plano de vida bem definido. Thaís era gentil. Thaís era “avoada”. Thaís era decidida. Thaís possuía riso fácil.

Apaixonaram-se. Não uma paixão carnal ou a que premedita um “amor eterno”. Apaixonara-se pela alma um do outro, pelo papo fácil, pela amizade profunda iniciada sem motivo algum. Apaixonaram-se pela doçura que reconheceram um no outro, pela familiaridade dos olhares e sorrisos, pela facilidade de tocarem-se. Apaixonaram-se profundamente e, mesmo que tenham guardado só para si, souberam quase que no mesmo instante que independente do que acontecesse, havia entre os dois um laço que os uniria eternamente qualquer que fosse a distância, qualquer fosse o tempo que se estendesse entre ambos quando um dos dois, finalmente, se levantasse naquele dia 2 de Janeiro e decidisse que precisava fazer qualquer outra coisa.

Estavam no meio de uma conversa complicada em que Thaís tentava explicar para Bill o que eram ondas cerebrais quando foram surpreendidos, muito discretamente, por um assaltante. O rapaz, que não deveria ser mais velho que Rafael, encostou uma peça de vidro afiada no dorso de Bill enquanto, com gestos, indicava que queria os pertences do “gringo”. Bill, com calmaria extrema, retirou piercings, correntes, anéis, a camisa que trazia dependurada na presilha da bermuda, Iphone e dinheiro e entregou para o outro. Thaís, em top de lycra e bermuda de tectel curta mostrou que possuía pouco mais de 10,00 no bolso e a replica de baixa qualidade do velho Ipod. Sem retirar o vidro do dorso de Bill, o rapaz recolheu tudo e fez um gesto discreto para o amigo que abordava outros turistas que estavam no quiosque.

Quando os dois estavam a uma distancia segura, Bill finalmente deixou o corpo cair sobre o balcão do quiosque e falou baixo em um alemão que, na cabeça de Thaís, só podia ser perfeito, mas mesmo assim, incompreensível.

—Bill, - ela disse calma tocando seu ombro direito – você pode repetir? Não falo Alemão.

—Meu irmão. Preciso do meu irmão. – Quando levantou a cabeça, sua expressão era profundamente assustada.

—Ok. – Thaís tentou suavizar sua expressão, afinal, não havia sido ela que perdera diversos pertences em um assalto – Olha, eu morro há dois quarteirões para trás do calçadão. É o lugar mais seguro e com mais recursos para você entrar em contato com seu irmão. – parou para pensar - Ou, o que talvez seja mais sensato, podemos parar um taxi e te mandar para seu hotel.

—Não. – Bill disse em um muxoxo – Acho que estou meio assustado para ficar sozinho em um taxi com alguém que eu não conheço. Não é frescura, simplesmente medo. Você se importa se eu for pra sua casa?

—Claro que não. – a resposta foi doce. Em seguida, virou-se para Rafael – Rafa, para algum policial e liga para o proprietário do quiosque. Fique atento e qualquer coisa, corra pra sua casa ou pra minha. A mais próxima. – O jovem fez um sinal de ok com a mão e, também assustado, acenou um tchau para os dois.

O caminho da paia à casa de Thaís foi curto, mas a subida até o apartamento 503 foi cansativa. Como se não quisesse perder a piada, ao parar em frente à porta de carvalho com números dourados, Bill comentou:

—Você mora em um prédio sem elevador e, só pra ser feliz, escolhe o último andar para morar? – Estava levemente ofegante.

Thaís, acostumada com a subida, respondeu em folego perfeito.

—Tudo bela saúde.

Ao girar a chave no trinco, os dois foram surpreendidos por um pequeno vulto que pulou na barriga de Thaís. O pequeno cãozinho claro imensamente peludo saudava sua humana com pulos estranhamente altos para um cão tão pequeno e latidos alegres.

—Ouo! – Bill gritou enquanto caia de joelhos para acolher o cãozinho – Ele é absurdamente fofo! – e com uma voz infantilizada, conversou com o animal – Você é um fofo, Feliz, você é a coisa mais fofa do mundo inteiro.

Em resposta ao entusiasmo, Feliz respondeu com uma lambida no rosto de Bill.

Thaís trancou a porta, depositou as chaves nos ganchos que ficavam ao lado esquerdo  da porta e jogou-se no sofá confortável localizado no centro da sala. Pegou o controle remoto e apontou para a TV, não para assistir de fato, mas muito mais para escutar as vozes, gostava da companhia, do barulho. Costume adquirido desde que começara a morar sozinha. Observou Bill brincar com Feliz e, sentindo-se demasiadamente confortável com um estranho em sua casa, pegou um livro qualquer de King que estava na mesinha localizada ao lado do sofá. Bill, como se tivesse se esquecido de que fora assaltado e estava na casa de uma estranha, jogou-se no tapete e rolou com Feliz.

Após um tempo desproporcionalmente longo para a situação presente, Bill, apenas de bermudas, Thaís perguntou-se quando ele havia tirado o para de tênis, ergueu o tronco nu e sentado no tapete branco e felpudo observou o quarto à direita do apartamento que tinha a porta aberta e mostrava alguns armários, mesa de estudos e prateleiras de livros.

—Não imaginei que 1.300 e poucos livros fossem tantos livros.

Thaís sorriu antes de responder:

—É um número bom o suficiente para me manter entretida. Com fome? Já são 12h20min.

O sorriso de Bill abriu-se de forma ainda mais magnifica e Thaís percebeu que havia, por qualquer que fosse a razão, o sorriso da rua, que todos podiam ver, e o sorriso de casa, reservado para lugares e, talvez pessoas, em que ele se sentisse seguro. Thaís havia acertado.

—Eu quero comer – Bill respondeu com a velocidade de um tiro – mas preciso falar com Tom. Posso usar seu telefone?

—Minha casa é sua casa!

Thaís fez um gesto e apontou para o modelo de aparelho telefônico retrô de cor azul piscina que ficava sobre a mesa ao lado do sofá. Bill levantou-se com a graciosidade de uma girafa, o que arrancou gargalhadas do jovem, e aos tropeços, agarrou o telefone. Desejando dar privacidade para o rapaz, Thaís se dirigiu para a cozinha, um cômodo pequeno que ficava atrás da sala. Infelizmente, o apartamento não era grande o suficiente para que a fala rápida de Bill não fosse ouvida. Felizmente, mesmo que Thaís falasse Alemão, jamais seria capaz de compreender qualquer coisa naquela velocidade.

Poucos minutos depois, Bill estava ao seu lado na cozinha, surpreendentemente à vontade, abrindo os armários sobre a pia e retirando facas enquanto perguntava com o que podia ajudar. Thaís, com um sorriso sacana, entregou duas cebolas e disse que ele podia cortá-la em cubos mínimos. Após tempo demais para qualquer cozinheiro experiente, havia macarrão alho e óleo com pedaços generosos de bacon suficiente para um batalhão. Ao ver a refeição pronta e relativamente saborosa, Thaís declarou em tom matreiro que aquele era o único prato que tinha coragem de fazer. Thaís, observadora, notou o olhar demorado de Bill para o Bacon, quando ele se serviu, e o seu leve dar de ombros seguido de um olhar que dizia “estou seguro”, mas não comentou.

Os dois comeram, sem cerimônia, assistindo a uma série qualquer na Netflix. A TV, outra vez, apenas cedeu vozes para o ambiente, uma vez que os dois, sentados no chão com os pratos no colo, estavam mais interessados na conversa que mantinham. Thaís estava na cozinha, servindo seu terceiro prato, escutando de Bill que havia séculos que ele não via uma garota comer macarrão sem medo, quando a campainha soou.

 A jovem, entre risos e desaforos, pediu a Bill que abrisse a porta e, quando se virou para voltar para a sala, encontrou um rosto com uma beleza profunda e rude. Sorriu um sorriso cheio de macarrão, o que arrancou gargalhadas de Bill e um tímido sorriso do homem de barba que, gentilmente, fez um gesto leve para indicar que a jovem possuía macarrão em seu sorriso. Para provocar, Bill, não o homem absolutamente lindo, Thaís mostrou a língua com restos de alimento. A gargalhada do loiro se elevou, enquanto o moreno permitiu-se, brevemente, abrir um sorriso maior. Recuperando a boa educação, a brasileira falou em inglês sereno:

—Fizemos macarrão. Você aceita?

—Aceite, Tom. É o único prato saboroso que ela sabe fazer. Está realmente bom. Tem bacon. – Bill sorria largamente.

—Bacon? – Tom levantou as sobrancelhas. – Certeza?

—Muita! – Bill era só sorrisos – Vou colocar para você. – Entregou o prato para a anfitriã e sem cerimonia, Bill apanhou prato e talheres e serviu uma porção generosa para o irmão e, antes de qualquer protesto, entregou o prato de Tom nas mãos dele e apanhou seu próprio prato nas mãos de Thaís. Finalmente, em um andado que por alguma razão fez a garota pensar em Michael Jackson, voltou para a sala e sentou-se no sofá com os pés apoiados na mesa de centro.

Tom, meio abobalhado, olhou para Thaís e estendendo a mão disse displicente:

—Sou Tom. O irmão mais velho que veio socorrê-lo do assalto. Não que ele precise. – maneou a cabeça em um gesto de negação, controverso ao sorriso carinhoso em seus lábios.

—Thaís. A brasileira que o salvou do assalto. – Sorriu seu sorriso doce.

—Tha o que? – Tom pareceu confuso.

—Thaís – a jovem repetiu com ternura – mas pode ser Tah ou Tata.

—Gosto de Tata. – E, desde que chegara, Tom sorriu largamente pela primeira vez – A proposito, seu apartamento é absurdamente parecido com o de Mônica.

—Monica? – Thaís pareceu confusa.

—Sim. A de Friends.

—Ah! Eu sei. Foi por isso que o escolhi. Gostaria de ter a porta verde também. – E, dizendo isso, a jovem foi sentar-se ao lado de Bill. Sentou-se próxima, os braços tocando. Tom observou a cena e sorriu um sorriso de alívio. Era a primeira vez, em anos, que o irmão deixava alguém se aproximar verdadeiramente. Talvez ele também devesse se permitir. Proximidade real, como a amizade construída em tão poucas horas que estava à frente dele, fazia falta.

Tom suspirou, empurrou de seus pés as yellowboots, olhou para o prato cheio de macarrão e bacon e levantou, minimamente, os cantos da boca. Sentia esperança. E, como se quisesse esclarecer para Tom que, finalmente, ele pisava em solo seguro, o pequeno cão levantou para ele a pata dianteira direita antes de se jogar no chão com a barriga para cima em expressão travessa. Tom quase pôde escutar o animal dizer “Aqui você se sentirá em casa”.

Com o coração aos pulos, Tom se dirigiu para o sofá, sentou-se ao lado de Thaís e imitou o irmão e a garota ao apoiar os pés sobre a mesa de centro. Olhando para sua direita, observou a inesperada e intensa amizade que havia se formado entre a brasileira e o irmão. E, antes de levar a primeira garfada à boca, parou os olhos discretamente no rosto da garota ao seu lado. Era uma beleza sem precedentes, crua, real. Tom sorriu. Estava, finalmente, em casa.


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Notas finais do capítulo

Bom ou Ruim? São poucas letras.



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