Ninguém Me Ouviu Gritar escrita por Kano Black Jack
chegou. – sussurrei encolhido no quarto escuro ao escutar o portão sendo aberto.
“ele chegou...” meus olhos voltaram a se encher de lágrimas, o pesadelo ia começar novamente. Quando foi que me tornei assim? Quando virei uma pessoa tão fraca? Há quantos anos me vejo no banheiro dele, todo encolhido, molhado e com medo? Por que ainda estou com alguém que me faz tão infeliz?
— Ana. – chamou com o sorriso sádico de sempre. – Não fez nada hoje? Sinceramente, você é uma preguiçosa de primeira categoria.
— Matheus... – falei baixinho.
— quem? De quem esta falando?
— Meu nome... Chame-me de Matheus. – respondi olhando para a janela trancada.
— Outra vez com essa história de ser homem? – acendeu a luz do quarto, só então pude ver o chicote que carregava. Ele se agachou ao meu lado com uma cara de nojo. – O que é isso? – perguntou com a mão em meu peito.
Não respondi.
— O que é isso? – voltou a falar já sem paciência.
— Preciso responder?
- Você é estranha, por isso ninguém além de mim te quer. Se eu não tivesse aparecido na sua vida você estaria perdida. Venha, vamos para a cozinha. – me soltou e voltou para fora do quarto.
Acompanhei.
Ele retirou a camisa de botões e colocou em cima de uma das cadeiras da sala de jantar, pude ver diversas manchas de batom na gola alta.
— Hoje tive uma reunião com um cliente. – Mentira. Perdi as contas de quantas vezes ele falou que tinha um jantar com um cliente e na verdade estava com outra. Era sadismo. Eu via como ele gostava desse poder. – quero vodka. – falou estendendo a mão.
Continuei fazendo o jantar.
— Quero vodka, vamos mulher!
— Já disse que não sou mulher! – estourei, joguei a panela de qualquer jeito no forno, derrubando a colher que estava por perto.
Ele levantou e veio até mim ameaçador. – Cale a boca.
A água fria do chuveiro nos molhava, eu tremia, ele parecia nem sentir. Meu pulso direito ardia como fogo, os cortes já haviam parado de sangrar, agora estava claro todo o estrago que Davi tinha feito com a lâmina.
— Não chore como um bebê, você já tem quinze anos! – podia sentir seu halito quente no meu pescoço.
Soluçava, estava com medo, nunca tinha levantado a voz pra ele. Davi não tinha limites, acho que isso é culpa minha, ele diz que é.
Soltou-me e saiu do banheiro deixando o chuveiro ligado. Fiquei encolhido, ou melhor, encolhidA no chão chorando, meu peito doía e minha barriga roncava. Com as mãos tremulas em forma de concha deixei a água que caia se acumular e bebi, foi um alívio instantâneo sentir o líquido passar por minha garganta seca. Assustei-me com a finura de meus dedos, quando fiquei tão magra? Meus cabelos negros antes sedosos, agora estavam quebradiços e sujos, meus lábios rachados e minha pele escura tinha um tom pálido como a pele de um morto. Mudei para pior, Davi diz que estou feia e gorda, a culpa é exclusivamente minha.
Senti algo fino bater em meu rosto, o homem havia voltado com o chicote. Escutei uma risadinha de deboche da parte dele. – Veremos o quanto você pode gritar...
Engoli em seco sentindo o frio percorrer minha espinha, outra vez senti o couro bater contra meu rosto, ele ria alto e eu me encolhia.
A última coisa de que me recordo foi de sentir um chute nas costelas.
Acordei com a respiração pesada, minha cabeça pesava, podia sentir algo quente descendo pelos fios negros, sangue. Aquele filho da mãe fez o que bem entendeu comigo. Davi dormia tranquilo ao meu lado. Em cima do criado-mudo estava um molho de chaves dos mais variados tamanhos, levantei ignorando a dor que era caminhar e agarrei minhas passagens para o mundo afora. Em breve eu seria livre, meus olhos lacrimejavam ao imaginar a luz do sol em meu rosto novamente.
O apartamento era enorme, esbarrei umas cinco vezes antes de encontrar o corredor que levava a porta da frente. Não me atreveria a acender as luzes, não agora. Sentia as pernas falharem, Davi nunca foi um cavalheiro, mas hoje ele passou se superou em todos os aspectos.
Escutei o som de alguém batendo em algo seguido de um xingamento, ah não... Enfiei uma chave qualquer na fechadura sentindo o pânico me dominar, aquilo não daria certo.
— Pra onde você vai? – a voz perguntou um pouco longe,
Troquei a chave o mais rápido possível já pronta para me render, foi quando a porta abriu. Corri para fora subindo para o andar mais alto com meu último fio de esperança, se fugisse para a outra direção ele me pegaria, também não posso gritar, em casos como este seria eu o mais criticado, foi o que Davi me disse.
Ventava muito do lado de fora, perdi o ar ao me deparar com as estrelas, faz tanto tempo desde a última vez que fiz pedidos a Lua...
– E aí, cansou de brincar? – tentava soar divertido, mas sua voz transmitia a raiva que estava sentindo.
Encarei-o. – Não serei mais sua marionete. – dei dois passos para trás, estava mais perto do parapeito.
Ele pareceu entender. – Ei, nada de medidas desesperadas. – correu até mim, mas eu fui mais rápido.
Pulei para fora do prédio.
A noite estava linda. As luzes da cidade brilhavam. E eu voava como um pássaro.
Cinco anos, cinco anos chorando em silêncio, vivendo com medo, sonhando com este dia. Cinco anos que agora chegavam ao fim...
A última lágrima rolou pelo meu rosto e em seguida soltei o grito final com toda força, mas infelizmente acho que com o caos da cidade grande ninguém foi capaz de escutar minhas últimas palavras.
E nos outros dois segundos eu abracei o chão.
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!