Receita para a Alegria escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Receita para a Alegria




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Frederik abrira a porta do carro. Suas mãos repousavam agora, inertes, sobre o volante redondo. Mentira. A direita afastou-se um pouco, erguendo-se no ar com um aceno. Lá fora, sua esposa sorria-lhe, Bettany Dilmore, mãe dos seus filhos. Em breve estariam rodas a rodar, pneus friccionando calorosamente o asfalto. Motor rangendo no seu peculiar ranger, aquele rir rouco que toda a maquinaria faz. Doce tecnologia, teu fumo belo polui-nos a vista num prazer viciante. Tu e só tu para conseguires ser tão amada por meios tão desumanos, literalmente alheios à humanidade pois a carne com que trabalhas é outra. A estrada sendo devorada pelo lento avançar do veículo. Frederik permanece sentado. Enquanto isso, o mundo move-se, conduzindo-o passo a passo na sua rota. Ele senta-se, o mundo move-se.

Seu pensamento circulava por cantos obscuros ao mesmo tempo que se guiava até ao edifício titânico da multinacional onde trabalhava. Seus escuros olhos fixos na curiosa falta de trânsito que parecia marcar aquela amena manhã.

Até ali, até à peculiar ausência de engarrafamentos com carros e mais carros, o dia parecera rigorosamente normal. Fora acordado pelos gritos entusiasmados do seu filho mais novo, Benjamim de cinco anos, que brincava à apanhada com o irmão Zack, de doze. Levantara o cobertor, vestindo com a ligeireza do hábito o seu formal fato negro. No momento certo, os braços de Bettany envolveram-lhe o pescoço, atando com prontidão o nó da gravata azul. Mais um dia. Era só mais um dia. Mais um beijo representativo de mais uma manhã. Na cozinha, o caseiro pequeno-almoço: um ovo estrelado e uma torrada com um copo de sumo natural. Um beijinho na testa de cada filho seguido da já comum despedida da sua esposa. Acena-lhe com a mão. E dirige-se ao trabalho. Um dia normal.

Até ali. Até ao incómodo vibrar do telemóvel. Uma mensagem. De quem? De Bettany Dilmore. Será que se esquecera de algo em casa? A mala, por exemplo. Já esqueceu a mala uma vez no mês passado. Mas não, ela estava ali, no banco, descansada à sua direita. A pasta? Não, estava na mala. A carteira onde guardava os documentos? Não, estava no bolso. Então o quê? Do que me terei esquecido? Talvez estivesse a exagerar. Talvez não se tivesse esquecido de nada. Decidiu pensar nisso e em tudo mais apenas depois de ter lido a mensagem.

Mensagem de Bettany Dilmore: uma foto. Uma foto dela e dele, dormindo juntos na cama da sua casa. Mas, se Bettany estava na foto, quem...

Rapidamente chegaram outras duas mensagens do mesmo número: mais duas fotografias. Numa estava ele, no seu carro, acenando a Bettany, que estava cá fora. A foto fora tirada de dentro de casa, através da janela da cozinha. Na segunda, via-se a mulher, sentada na mesa da cozinha, fitando diretamente a câmara que estava num plano mais elevado, de olhos arregalados num esgar que só poderia ser interpretado como medo. Mas...

Quem estaria a tirar as fotos? Quem lhe estaria a enviar fotos do telemóvel da mulher? Acabara de a deixar com os filhos, sós, naquela casa. Algo a tinha apanhado. Algo ou alguém tem andado a vigiá-los. Está alguém escondido na minha própria casa, ameaçando a vida dos meus entes queridos. Algo ou alguém. Observando-me constantemente, sempre lá, até nos momentos mais íntimos. A mim, a ela, aos meus filhos. Vestidos, nus, seja de que forma for. Algo ou alguém. Não, não, não...

O clarear do céu é um presente àqueles que nele rumam. Como que um convite. Não queres entrar? Não queres conhecer a minha casa? Não tens um mínimo que seja de curiosidade? Eu responderei "não". Eu terei medo de o fazer. O céu é seu, o mar é seu. Fique com eles só para si, deixe-me em paz. A hospitalidade, toda ela, quer escravizar-me a respiração. Querem que neles entre para depois ser furiosamente penetrado na própria teia da aranha. Quem será o parasita nesse momento em que o meu corpo se perde nas mãos do outro? De quem será por direito a casa? De quem serei eu?

A violação das propriedades, o toque impuro do criminoso sobre a carne pura. Troca de domínios, troca de objetos, circulação de matéria. O abuso, a sensação da alma deixando-nos o corpo. Imaginando a nossa privacidade nas mãos sujas do desconhecido. Tocando cada milímetro de nós, passando os dedos grossos sobre as nossas bocas abertas, que tentam falar ou gritar ou o que seja. Sentindo-nos os lábios, deixando-os húmidos o suficiente para o passo seguinte. Furtou-nos o corpo. Agora, roubar-nos-á a essência. Seremos levados a provar a sua imundice. Ele terá deixado as brincadeiras para passar ao ataque. Cansar-se-á de rodeios. Tem o fora, consumirá o dentro. Os dedos irrompendo-nos pela garganta abaixo, alargando, alargando, alargando...

Não! Por favor, não!

A preocupação tolda-lhe possivelmente qualquer réstia de razão. Seu veículo range valentemente, ansiando agressão, dali até à amaldiçoada vivenda. A porta escancarada. Aberta. As profundezas do edifício manifestam-se com uma visão digna do derradeiro abismo infernal. A minha casa. Esta é a minha casa. Esta casa é minha. Sai! Por amor de Deus, sai!

Bett? Ben? Zack? Silêncio. Mais gritos para mais um silêncio. Mais e mais.
Engolido pela penumbra, Frederik Dilmore procurou. Foi à sala, desceu à cave, ligeiramente sinistra cave, subiu aos quartos. A sua família havia desaparecido. Sinais deles não existiam. Nenhuma evidência da sua presença. Nenhum barulho, nenhum som...

Um som. A cozinha. Claro, a cozinha. O lento abrir da lenta porta.

O salgado suor manchando-lhe as têmporas, a garganta seca. Sua mente corria mais veloz que as suas pernas. Num instante, estava ainda ele a descer as escadas, sua mente já na cozinha se deleitava com uma visão dos mais carnais horrores cuja compreensão é permitida ao cérebro humano. Nada disso era real, sabia ele. Nada disso é certo. É apenas uma hipótese, uma possibilidade, uma questão de quântica. Mas é tentador pensar nela, refletir nela, estar nela, sê-la, abraçá-la, beijá-la, devorá-la...

A loucura, como gasolina, começava a fluir através daquele corpo tenso, queimando-o por dentro. Cada circuito, cada vaso, cada válvula. Todos ardendo. Todos queimando.

Finalmente, a cozinha, o mais normal possível. Nada fora do seu lugar. Tudo arrumadinho, tudo limpinho. Cada lugar com a sua coisa, cada coisa com o seu lugar.

Mas faltava algo. Um momento súbito de consciência. Um clique de mórbida curiosidade. O olhar moveu-se, saltando com graciosidade através da divisão, de uma ponta ao topo. O ângulo de câmera. A foto tirada de cima. O móvel mais alto da cozinha. Sobre ele estava a resposta. Sobre ele estava uma pitada de vida associada a um saboroso pedaço de morte.

Benjamim Dilmore, a cria nos seus tenros cinco anos de idade, no seu estado de mais sagrada inocência. Sentado confortavelmente sobre o móvel, as pernas balançando. Suas feições denotavam aquela alegre ignorância característica da infância. "Olá papá!" exclamava ele. Mas o som saiu-lhe abafado da boca e Frederik não conseguiu percebê-lo bem. Isto porque, enquanto falava, mastigava sonoramente o topo cabeludo da cabeça da sua mãe, decapitada, que se encontrava nas suas mãos. Entre os dedos pequeninos e gorduchos estavam aquelas bochechas exangues, húmidas do sangue que pela testa escorria. Devorava-a, chupando os dedos molhados de vez em quando para reter o sabor.

Gemeu. A cabeça, supostamente morta, agiu. As pálpebras ergueram-se trémulas e a boca abriu. Um som saiu, tentativa de uma palavra. Talvez "socorro" ou "ajuda-me". Daquela garganta para fora só fluiu mais uma golfada de sangue vermelho férreo. E nada mais. Os olhos perderam a sua cor.
Frederik caiu de joelhos, sua mente pairando sobre as nuvens da razão, muito para além delas. Algo estava errado. Algo aqui não...

"O mano disse-me que assim eu e a mamã seriamos um só e estaríamos juntos para sempre. Também quero ficar contigo para sempre, papá. Também te adoro muito, paizinho!"

O pai não responderia. Ficaria ali especado, contemplando cegamente o horizonte.

"O que achas da ideia, papá? Também queres brincar connosco?"

Uma nova voz. Atrás de si. Duas mãos jovens segurando firmemente um taco de baseball. Era Zack.

E Frederik, esse, já não o era mais. Já não era mais Frederik. No segundo seguinte, seria um aglomerado de carnes desconstruídas e avermelhadas, todas misturadas numa única poça digna de nojo. Esse era agora Frederik. O novo Frederik. Isso. Isso e nada mais. Nada mais...


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