A Voz da Morte escrita por Astus Iago


Capítulo 1
A Voz da Morte




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Alexamn Amnex sempre fora coveiro de profissão. Observava os vivos a definhar e vigiava o descanso dos mortos. O bem-estar dos falecidos era a sua maior preocupação. Uma morte deveria ser honrada, fosse quem fosse o morto. Este era o seu princípio básico de vida (quer dizer, trabalho).

Dois cadáveres novos chegaram às mãos de Alexamn. Um adulto e uma criança. É triste quando uma criança, uma cria humana de pura inocência, é encontrada morta. Enfim… se as pessoas deixassem de morrer, Alexamn perderia o emprego. O corpo do adulto estava em muito mau estado e apresentava alguns vestígios de já ter estado enterrado noutro local. Ao que parece, aquilo fora resultado de um assassinato. E que cruel assassinato! A frieza necessária para executar tal ato chegava a impressionar o velho coveiro. Disseram-lhe que o responsável seria oficialmente executado pelo próprio Elson. Ainda bem. Ninguém ficaria feliz se soubesse que um homicida louco se encontrava em liberdade. Como coveiro oficial do Domínio, seria ele a ficar com o cadáver do desgraçado. Até parecia Natal!

Colocando os fanatismos do senhor Amnex de lado, algo de muito estranho se passava. E com “estranho” refiro-me a algo realmente estranho. Absurdo. Bizarro. Nestas últimas noites que passaram, Alexamn tem ouvido vozes vindas do céu. O coveiro, de início, pensou que se tratassem das almas dos falecidos a agradecer o seu bom trabalho e empenho mas, tendo em conta que exercia a sua profissão mesmo muito bem, duvidava que até uma alma conseguisse escapar do caixão (manufaturado por si, com muito amor e dedicação) e fugir para o céu. Fossem as vozes que fossem, Alexamn ouvia-as bem. Mesmo muito bem. Demasiado bem. Quando as ouvia ficava com elas a ressoar dentro da sua cabeça, como os sinos frenéticos de uma igreja num dia de Natal!

Alexamn Amnex decidiu (bastante decidido, para clarificar) que, naquela mesma noite, resolveria o mistério. Pediu ajuda a Fago Timu, um profissional no que consta às “coisas do além e da ciência”. Fago Timu era até bastante jovem. Usava óculos e vestia um fato cavalheiresco e formal, apesar de sujo e desabotoado. Apetrechado com as mais altas tecnologias, incluindo máquinas criadas pelo génio Henriq Feust (do qual o coveiro nunca ouvira falar), aquele enigma já parecia estar prestes a ser resolvido.

A primeira coisa que o recém-chegado fez foi ativar o seu macrosciloscópio, um aparelho digital que capta qualquer tipo de ondas e as analisa através das suas propriedades (frequência, período, comprimento de onda, etc.), isto tudo graças a uma extensa base de dados compilada com imenso trabalho e tempo de vida desperdiçado. Não demorou muito até as supostas vozes aparecerem. Pelos vistos, só Amnex as conseguia ouvir. Apesar disso, o macrosciloscópio marcava a presença das mesmas e, com o seu sistema de triangulação local (que funciona de forma semelhante aos sonares dos barcos de pesca), podia levá-los à fonte sonora. Preparados para tudo, seguiram os sons.

Após não muito longa caminhada, chegaram a uma clareira, no interior da densa floresta que cobria a fronteira oeste do cemitério. Como era noite, não se via muita coisa. Praticamente nada. Mas Timu tinha uma solução: uns óculos especiais a que chamava micróculos. Com lentes de supremo poder de ampliação, aqueles óculos eram capazes de detetar e marcar a agitação corpuscular das partículas que constituem todos os corpos físicos. Captavam até o mínimo movimento das mesmas. Tornando visíveis todas essas agitações (e tendo em conta que todas as partículas se movem) era possível para ele visualizar tudo, independentemente da luminosidade. Não estavam sozinhos.

Estavam ali mais pessoas. Mais três. Os micróculos não eram muito úteis para delinear feições ou expressões faciais mas Fago Timu reconhecia-os. O da frente era um sacerdote, Ardoric Satom. O da direita era um corpulento capitão da guarda de segurança noturna, Laupo Labis. O terceiro homem era Sorlac Iama, um ritualista e colega chegado de Ardoric. Segundo a religião adotada pelo Domínio, a chamada “Arte da Alma” (“Ars Anima” – nome original), cada sacerdote deveria ser acompanhado de um ritualista e, não necessariamente, de um ou mais cultistas para todos os “trabalhos religiosos”. Os sacerdotes (ou “Filhos da Alma” – “Filius Anima”) são encarregados de pregar e espalhar a Palavra; os ritualistas (ou “Mãos da Alma” – “Manibus Anima”) organizam todo o tipo de rituais sagrados segundo a ordem prévia do sacerdote; os cultistas (ou “Corpo da Alma” – “Corpus Anima”) auxiliam o ritualista no seu ofício. Laupo vinha armado com uma arma de fogo, característica do seu cargo. Sorlac empunhava uma faca ritualística (utilizada exclusivamente para fins sacrificiais, normalmente). O sacerdote guiava-os pela clareira. Ele também conseguia ouvir as vozes.

De súbito, o guarda percebeu a presença dos dois desconhecidos e atirou no escuro. Surpreso, o coveiro saltou e escondeu-se num arbusto. Fago Timu correu para trás de uma árvore. Ouvindo o barulho de passos e de folhas a mexer-se, Laupo começou a gritar e continuou a disparar desenfreadamente, sem qualquer alvo delineado. Limitava-se mesmo a atirar (esperando matar qualquer coisa).

Alexamn, que trouxera a sua pá favorita consigo, compreendeu que estava a ser atacado. Os seus selvagens e apurados sentidos conseguiam muito bem orientá-lo por entre as sombras noturnas. O medo que sentia só o tornava mais forte. Medo? Qual medo? É natural um coveiro não saber lidar com vivos mas com mortos é diferente. Bastava arranjar alguns mortos…

Furtivamente, movimentou-se até aos três homens (seguindo a gritaria de Laupo). Timu observava, de coração acelerado. Esgueirou-se por trás do guarda (que continuava a disparar e gritar como se a sua vida dependesse disso) e atingiu-lhe fatalmente a nuca. Tomando conhecimento da sua presença ali, saltou-lhe para cima o ritualista de faca em punho. Fago Timu ganhou coragem (e ainda bem pois o coveiro encontrava-se numa situação um tanto desesperada). Deixou o seu esconderijo e decidiu testar o protótipo da sua invenção pessoal: o “Erazer”, uma pistola de longo alcance que disparava balas elevadamente eletrizadas ou eletrificadas ou outra palavra parecida com essas duas. Disparou. E atingiu o seu alvo. Sorlac caiu, sofrendo espasmos deveras desagradáveis. O sacerdote foi o único que sobrou.

Enquanto os seus aliados lutavam, Ardoric Satom fugira e continuara a seguir a voz que pensava ser um chamamento divino. Acreditando ser o “Iluminado” (“Illuminatum”), uma espécie de messias, o derradeiro profeta previsto pelas escrituras ancestrais da sua religião, considerava-se o único digno de receber a mensagem. Corria atrás do som o mais rápido que podia mas já estava velho para tamanhos esforços. Fago Timu e Alexamn Amnex já se encontravam no seu encalço. Receando não haver outra opção, o sacerdote procurou algo nas suas vestes cerimoniais. Era uma pequena pistola, tão pequena que só carregava uma única bala. Mas essa bala foi suficiente para atingir em cheio a barriga de Alexamn. Para um homem do seu tamanho e resistência aquilo não passava de um mero arranhão (achava ele). Continuaram a avançar em direção ao incrédulo religioso que se ajoelhou, rezando e pedindo misericórdia. O ferido Amnex ainda pensou em matá-lo mas Timu relembrou-lhe as suas prioridades. A noite estava prestes a terminar e as vozes cessariam consigo. Tinham de se apressar.

Inesperadamente, Ardoric começou a gritar. Gritos de terror. Gritos de medo. Medo da morte. Os seus ouvidos começaram a sangrar e, antes que os outros dois pudessem fazer alguma coisa para ajudar, este já havia dado o seu último suspiro. Os seus olhos, abertos de pânico, refletiam o céu e as suas trevas. As suas feições expressavam um profundo terror. Alexamn não sabia o que dizer, limitou-se a libertar uma jovial gargalhada. Já sabia que teria de ser ele a tratar daquele corpo. Esta noite, já arranjara mais três. Era quase Natal! Fago Timu ficou curioso no que consta à causa da morte mas domou essa mesma curiosidade. Prioridades.

A ferida do coveiro fora rapidamente examinada pelo seu companheiro, que percebia de medicina. Não parecia ser grave. Por isso, deram continuação à sua demanda. Não demorou muito até a sua busca chegar ao fim. Chegaram a um ponto em que a voz aparentava vir… de baixo do solo? Amnex cavou e cavou até atingir algo que não era certamente terra ou pedra ou ouro (para infelicidade sua). Era algo resistente. Era… um crânio? Não! Era um cadáver completo! Alexamn examinou-o com os seus olhos adaptados à morte. Era um homem, um macho, fardado. Morrera com a cortesia de um tiro certeiro na cabeça. Até possuía um cartão de identificação. “Matus Ieugef”. Pobre rapaz! Trazia, na sua mão fechada, um estranho dispositivo eletrónico e um bilhete com coordenadas geográficas inscritas. Fago Timu matutou sobre o aparelho. Analisou-o com o auxílio das suas ferramentas de trabalho e, quando se sentiu satisfeito, pediu ao colega que retirasse o seu velho chapéu da cabeça. Este último assim o fez. Tal como imaginara. Preso à orelha do coveiro estava um dispositivo recetor. O aparelho que acabaram de encontrar não passava de um transmissor de mensagens à distância. Um emissor de som que emitia mensagens sonoras direcionadas a qualquer recetor especificamente programado para as receber. Recetores que nem o seu macrosciloscópio conseguia detetar. Talvez o sacerdote também tivesse um recetor. Talvez tenha sido o seu recetor a matá-lo, através de um som suficientemente poderoso! Censurando-se por não ter pensado nessa hipótese mais cedo, Timu perguntou ao seu colega aquilo que já devia ter perguntado no início desta aventura: o que dizia a voz? Alexamn respondeu: “Venham apanhar-me, mortais! O jogo ainda agora começou…”


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