Crônicas dos Descendentes: A Escolhida -DEGUSTAÇÃO escrita por Bea B Pereira


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Não me lembro ao certo da minha idade. Sete? Oito anos? Tanto faz, é uma informação irrelevante se comparada ao evento.

Aquela era a primeira vez que acompanhava meu pai em uma de suas obrigações. Ele não foi voando em Magna como normalmente faria, fomos cavalgando. Minha mãe ficou em casa, irritada com meu pai por ele estar me levando para Conmer, a maior cidade comercial das Planícies Alagadas, que fazia fronteira com os Bosques Sussurrantes e o temível Grande Deserto.

Cavalgamos por dias, acampando ao relento, observando as estrelas. De vez em quando, quando parávamos em cidades maiores, os nobres nos hospedavam, pois não era sempre que a mão direita do rei viajava de maneiras convencionais.

Foi uma viagem cansativa até chegarmos ao nosso destino. Chegamos à cidade ao anoitecer do vigésimo dia de viagem. “É uma missão de reconhecimento, logo estaremos em casa novamente”, repetia meu pai toda vez que eu me queixava da viagem.

Estávamos cansados para seguir até o centro da cidade, onde ficaríamos. Por esse motivo e por minhas constantes reclamações de cansaço, resolvemos parar em uma estalagem na entrada da cidade.

Arrumei-me para dormir, mas percebi que meu pai ainda estava vestido. Ele olhava para a janela de forma fixa e concentrada, seus olhos cor de amêndoa estavam inquietos, mas naquela época, eu não sabia disso. Aproximei-me dele e perguntei o que ele estava vendo. Ele desviou o olhar da janela e me encarou fixamente, antes de voltar novamente o olhar para a janela e seu rosto se tornar uma máscara de irritação.

Ele tirou o punhal prateado da bota direita e me entregou.

― Eu vou ter que sair, minha pequena. Se alguém entrar, use-o.

Tentei protestar, mas ele segurou meus ombros e me deu um beijo na testa antes de sair pela porta.

Olhei para a janela que ele encarava e não vi nada de especial. Sentei-me na cama e observei a adaga. Ela tinha o cabo prateado com uma pequena flor em ouro incrustada no cabo. Em sua lâmina, conseguia ver meu reflexo, de tão limpa que estava.

Aconteceu, então, o primeiro grito. Pulei da cama, segurando a adaga com mais força do que o necessário. Observei a janela, mas não vi nada novamente. Outro grito e, em seguida, senti o vidro se partindo e o caco entrando em minha pele. O cheiro de fumaça começou a me sufocar. Olhei o interior do quarto e percebi uma flecha com fogo alojada na cama. Os lençóis começaram a queimar.

Corri para a porta, já começando a tossir. Trancada. Meu pai a tinha trancado para minha própria segurança. Comecei a chutá-la e socá-la, gritando por socorro. O fogo começava a consumir os móveis atrás de mim. A porta se abriu, e um homem portando uma enorme espada entrou. Ele tinha duas enormes cicatrizes no rosto e sangue por toda a roupa. Ele sorria maldosamente. Veio caminhando devagar, me fazendo recuar ainda mais para perto do fogo. E fechou a porta.

― Vai acabar logo, menininha.

Apertei a adaga com mais força, ele levou a mão ao meu rosto. O dele estava próximo de mim.

― Você é muito bonitinha. Se seu pai fez algo certo, isso foi você.

Com a adaga na mão, enfiei em seus olhos.

Ele gritou e soltou a espada. Segurei a adaga ensanguentada e corri até a porta.

Ele a havia trancado. Segurei a adaga novamente e, como Abigail me ensinou, coloquei a faca dentro da fechadura.

Um minuto: minhas costas começavam a queimar, e o homem gritava. Dois minutos: a fumaça me sufocava, e os passos do homem vinham atrás de mim. Finalmente, no terceiro minuto, a tranca fez barulho, e a porta se abriu. Saí do quarto para ver um cenário ainda pior. A estalagem inteira estava em chamas. Fechei a porta com força e comecei a andar para fora.

A madeira estava caindo, e o teto fazia barulho. Observei tudo ao meu redor e tentei me lembrar por onde entrei. Sem saber ao certo a direção correta, segui meus instintos e comecei a rastejar para a direita. Os gritos do homem pararam. Senti os cacos do vidro da janela entrando ainda mais na minha carne.

Escutei alguém gritando meu nome, provavelmente meu pai. Tentei gritar, mas minha voz não passou de um sussurro. Avancei ainda mais e percebi estar bem próxima de uma janela, que despejava ali naquele inferno flamejante uma luz prateada.

Avancei com maior rapidez, porém meus movimentos estavam mais lentos, do mesmo modo que meu raciocínio. Arrastei meu corpo mais alguns metros e consegui tocar a janela, mas meu corpo não estava mais aguentando. Desabei ali mesmo.

Acordei dias depois, em casa, rodeada pelos meus próprios lençóis e com minha mãe adormecida ao meu lado. Ela estava grávida e parecia bem abatida. Chamei-a e fiquei espantada pelo fato de minha voz não passar de um murmúrio.

Ela acordou em um sobressalto e, ao me ver acordada, segurou minha mão e beijou minha testa. Disse que quase a matei de susto. Abigail entrou no mesmo momento, vindo em minha direção. Minha mãe pediu a ela para ir chamar meu pai.

A loira sorriu e mexeu no meu cabelo, dizendo que eu nasci de novo e deveria agradecer por isso.

Quando Abigail voltou, trouxe meu pai com expressão de felicidade. Ele me abraçou e disse que nunca mais me deixaria desprotegida: iria encontrar um guarda-costas para mim.

Aquilo, de alguma maneira, me irritou. O afastei e o encarei brava. Lembro até hoje as palavras que disse:

― Eu não quero um guarda-costas, quero aprender a me defender sozinha. Sem depender de ninguém. Quero ser como você, pai.

Todos na sala me olharam espantados. Minha mãe logo começou a protestar, mas percebi o sorriso discreto de Abigail e os olhos brilhantes do meu pai. Ele beijou minha testa e disse que pensaria no assunto, e que, enquanto ele fazia isso, eu deveria descansar.

Deitei-me com a coberta até o queixo e adormeci olhando para aquelas três pessoas.

***

Anos se passaram após aquele episódio. Meu pai havia pensado no assunto e agora, devido a sua resposta, prefiro explorar a Floresta Perdida, cavalgar e lutar... “É por esse motivo que não é cortejada”, não cansa de repetir minha mãe toda vez que volto com as botas sujas de lama.

Vivo em Merindell, lindo reino para se visitar, antes que eu nascesse. Era considerado o “Reino dos Dragões”, porém, nos dias atuais, existem apenas dois dragões vivos: a do meu pai, Magna, e Durna, o dragão do rei. O restante foi morto ou desapareceu depois de um golpe de estado que colocou o novo rei no poder. Algumas das pessoas mais antigas acreditam que ainda existem três ovos perdidos no reino, esperando o humano que irá se tornar sua ligação.

Rei Damon Werneck fez com que a antiga família real assim como o antigo rei desaparecessem da face da terra. Aqueles que não têm limites na língua nem medo das patrulhas afirmam que os antigos monarcas estão debaixo da terra.

Para somar ainda mais ao lindo panorama em que se encontra o reino, devido às diversas revoltas populares que ocorrem no extremo norte, a grande maioria da população vem passando fome.

Por esse motivo, venho caçando na Floresta, o que, para minha mãe, é um pesadelo. O melhor momento para fazer isso é ao anoitecer, quando a maioria dos caçadores está dormindo, mas os animais ainda estão acordados.

Pego minha capa e coloco o capuz, enfio as botas por cima da calça. Na cintura, prendo minha espada e escondo minha adaga na bota direita, uma velha mania que aprendi com meu pai. Pego minha corda de lençóis improvisada debaixo da cama e a jogo para fora da janela. Estou me virando para descer.

― Eu vou contar para a mamãe ― fala Caleb, meu irmão de dez anos.

Ele é loiro, com algumas sardas na região das bochechas. Seus olhos são castanhos, nossa única semelhança são as sardas.

Eu o encaro.

― Você não vai contar. Se fizer isso, não te dou amoras.

― Eu não quero amoras.

― Então o que você quer?

Ele leva o dedo à boca e fica com ar pensativo por alguns minutos.

― Eu quero cinco moedas.

― Eu te dou três.

― Cinco ou eu grito.

Bufo.

― Tudo bem. Quando eu voltar, te dou.

― Eu quero agora ― diz, teimoso.

― Eu vou te dar depois.

― Eu vou gritar. ― Ele aumenta um pouco a voz. ― Mãe!

― Tudo bem ― digo, tapando sua boca com as mãos.

Pego as moedas de dentro do meu armário e lhe entrego.

― Aqui estão as moedas, agora some daqui.

― Obrigado... ― Ele está saindo do quarto quando se vira. ― E eu também quero as amoras ― completa com um sorriso, mostrando os dentes faltando.

Eu o xingo baixo. Pequeno mercenário! Ele não me ouve e sai saltitando para o próprio quarto.

Tranco a porta do quarto e desço.

No chão, encontro rapidamente os traços de um animal de porte médio. Sigo sua trilha e encontro um cervo bebericando água em um pequeno riacho. Tiro minha flecha da aljava e o miro. Respiro fundo e solto a corda do arco. Alvejo a cabeça do animal.

Vou ao seu encontro e retiro a flecha, limpando-a no córrego. Tiro as cordas da mochila e amarro as patas do cervo. Coloco a outra ponta nas costas e começo a andar na direção do vilarejo mais próximo.

Não demoro muito para ver as tochas recém-acesas e para que a triste realidade daquelas pessoas chegue até mim. As crianças são magras demais; os homens, sujos demais; as mulheres, tristes demais. Todas as misérias ali são demais.

Vou até o açougue de uma das áreas mais próximas da floresta, a área que normalmente ajudo, e chamo Frank para fora, não é surpresa para ele que lhe traga um pedaço de carne novo. E ele já sabe o que fazer: limpar, cortar e distribui-la para os habitantes. Ele agradece algumas milhões de vezes antes de entrar com o veado e começar o trabalho.

Normalmente eu não tenho tanta sorte em achar animais grandes que darão para várias semanas, portanto, para comemorar o feito, decido ir até a taverna em que Abigail trabalha.

Depois de atingir a maioridade, ela resolveu mudar um pouco os ares, deixando de trabalhar em casa e encontrando um emprego na taverna da cidade, porém todo fim de semana vai para casa para ficar com a mãe e com o restante da família. Ela foi criada aqui, é quase uma irmã para mim.

Assim que me aproximo da janela da taverna, percebo que os guardas dali se embebedam e, por isso, estão importunando as garçonetes que trabalham ali, incluindo Abigail. Já havia me metido em umas três brigas por causa disso. Eles as desrespeitam, e eu lhes dou boas lições, geralmente na base da violência. Meu pai é chamado sempre e, na frente dos seus subordinados, ele me dá uma bronca. Pelas trocas de olhar, os soldados parecem felizes, mas em segredo meu pai me parabeniza por ter colocado aqueles idiotas na linha. Abigail e eu sempre rimos da cara que os soldadinhos ficam depois que perdem para mim.

Os soldados têm medo de mim, tanto que, assim que entro no bar, as risadas desaparecem. Eles começam a beber em silêncio.

Sento-me no balcão, e Abigail vem me atender. Ela é muito bonita, tem um lindo cabelo loiro brilhante e grandes olhos castanhos, emoldurados por cílios grandes e pretos.

― Oi, Abby.

― Lua! ― Ela me abraça rapidamente, mas logo volta ao trabalho. ― Então, o que vai querer?

― O de sempre, Abby.

Coloco as moedas no balcão, e ela me entrega uma caneca de vinho, com aquele sorriso divertido nos lábios, no entanto algo em seus olhos está inquieto. Conheço-a bem demais para não ler nas entrelinhas.

― Está tudo bem com você?

― Sim. ― Ela me entrega um papel. ― Mas acho que você é muito nova para beber esse tipo de coisa.

― O que é isso?

― Penso seriamente em contar isso para seus pais.

― Abigail, o que é isso?

― Você só poderá ler quando estiver fora daqui. Prometa-me! ― sussurra ela, segurando minhas mãos com força.

― Abby, o que está acontecendo? Você está agindo estranho.

― Só me prometa, Luna. É importante. ― Ela nunca me chama de Luna, por esse motivo percebo que é sério.

― Tudo bem, eu prometo.

Ela sorri, mas seu sorriso não me convence. Um dos casais que está ali a chama, ela diz que já volta. Tomo apenas um gole e vejo um homem com as roupas de tenente se aproximando da taverna. Coloco meu capuz. Se ele me vir aqui, provavelmente irá correndo contar para meus pais que eu não estou em um “ambiente para damas da minha classe social”. Portanto, apenas o observo: é Tyler Hunter, um dos tenentes mais próximos do rei Damon. Ele é o segundo no comando depois do meu pai.

Ele entra na taverna gritando por Abigail. Ela se aproxima dele e, sem mais nem menos, ele a segura pelo cabelo. Quase me levanto, mas os olhos dela me mantêm na cadeira. Ela me encara com tamanha intensidade, que meu corpo não consegue se mexer. É um pedido silencioso para fazer o que ela diz sempre: “não me meter”.

― Esta mulher é acusada de tramar contra o rei ― diz o tenente. Ele dá um tapa em sua face, novamente tenho que lutar contra meus impulsos para não me levantar.

Ele a arrasta até o lado de fora da taverna, com os soldados aos seus calcanhares. Em seguida, apenas ouço o barulho da lâmina sendo puxada. Saio da taverna a tempo de ver o sangue dela esparramando-se pelo chão enlameado, seu corpo inerte jogado ao chão, com o rosto para baixo. Lágrimas silenciosas escorrem pela minha face.

― Que isso sirva de aviso a todos que tentarem tramar contra seu nobre rei.

Foi isso, ele monta no cavalo e sai dali, deixando o corpo de Abigail para trás. Os soldados seguem o tenente, e as poucas pessoas que ainda estão acordadas se recolhem. Ninguém chega perto do corpo da minha irmã, é como se fosse algo contaminado.

Ajoelho-me e tiro seu lindo rosto do chão. Ela não merece isso, ela deveria ter se casado com Austin, o garoto com quem ela estava trocando correspondências, morrido de velhice, rodeada por netos. Não assim, com o sangue correndo pelo chão, com o rosto cheio de lama. Ela nem teve chance de defesa.

Choro com ela em meus braços, embalando seu corpo como se fosse o de uma criança. Homens da taverna se aproximam de mim, eu os encaro e, quando eles tentam tirá-la de mim, grito e lanço golpes ao acaso. É preciso que Frank venha me acalmar. Vejo-os se afastar com Abigail.

Só então me lembro do papel que ela me deu. Existem apenas duas palavras ali: “Vá nadar.” Apenas isso. Amasso o papel com força e o jogo longe.


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